Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

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Capítulo 1 – A Seletiva

Domingo, dia 27 de março de 55, foi um dia especial no Centro de Lançamento de Alcântara. 29 Homens vindos do Brasil todo se apresentavam na base, carregando uma mala suficiente para passar um mês. Havia também uma única mulher, Ada Rogato, para completar os 30 pré-selecionados para o Programa de Aviões Experimentais para Grande Altitude e Velocidade, também conhecido como Programa dos Grandiosos Aviões, que foi encurtado para Programa Gaviões.

Como esperado, a grande maioria eram jovens pilotos da aeronáutica: 5 Primeiros-Tenentes, 10 capitães, 6 Majores e 2 Tenentes-Coronéis, todos em plena atividade, acumulando de 8 a 28 anos de carreira. No total, eram 23 aviadores militares.

Os 7 restantes eram civis, sendo 4 deles pilotos de teste de companhias aéreas brasileiras: a PanAir, a Varig, a Vasp e a Cruzeiro do Sul. Os outros 3 vinham de aeroclubes e participavam de grupos de demonstrações acrobáticas. Esse era o caso da Ada.

Ela fora a primeira mulher brevetada pelo Aeroclube de São Paulo, em 1936 (brevê é o nome da carteira de motorista de aviões). Durante os anos 40, Ada participava de shows aéreos pela América do Sul, além de fazer demonstrações de paraquedismo.

Com seus 45 anos, Ada era a minoria, da minoria, da minoria. Civil, única mulher e a mais velha do grupo. Ela atraía olhares e risadinhas pelos corredores, para alguns aquilo era uma brincadeira de mau-gosto da FAB:

— Quem vai levar a vovó pra dar um passeio de avião?

Havia outros, porém, que tinham ouvido falar nos feitos da Ada e se aproximavam para ouvir suas histórias.

— Sim, era um Paulistinha CAP-4 de 65 cavalos. Me falaram que era impossível cruzar os Andes com aquele avião… pfff, falei pra eles: ah é, segura minha caipirinha aqui. Fui e voltei tranquilo. Bom, ok, tranquilo não foi, mas isso fica pra outra história.

Na segunda-feira cedinho, os 30 pré-selecionados se apresentaram para os testes físicos: foi uma semana pesada que começou com uma bateria de exames (sangue, pressão arterial, visão, audição) e seguiu para avaliação cardiovascular: uma corridinha básica de 10km seguida de natação por 1km.

Ada sofreu bastante e conseguiu finalizar apenas 4 minutos antes do limite. 3 candidatos não tiveram a mesma sorte e já foram cortados: 2 deles não sabiam nadar e 1 não terminou a tempo.

Na quarta-feira foram os testes de força e flexibilidade. Ada penou muito nas flexões de braço e por pouco não foi cortada:

— Mais uma, só mais uma, vamo Ada, vamooo… Aee boa!

— Ah ah, foi… foi… 

2 outros candidatos falharam na parte do alongamento e foram excluídos.

Na quinta-feira foram os testes de equilíbrio e coordenação. Nenhum deles teve dificuldade em andar sobre a trave ou arremessar bolinhas nos alvos. Pilotos, em geral, têm uma coordenação excepcional comparado à média.

À tarde eles fizeram o teste de apneia. Ada aguentou 3 minutos e 22 segundos sem respirar, bem acima dos 2 minutos de corte, mas outros 2 candidatos falharam.

Na sexta-feira seria o famigerado teste de força-G. Aqui vale explicar o que é isso.

Quando estamos sentados numa cadeira, nosso corpo está recebendo a força da gravidade do planeta puxando a gente para baixo e é por isso que a gente não sai voando. Quando um piloto está sentado no cockpit de um avião, ele também sente a mesma força. Mas, no momento que o avião faz uma guinada para cima, o piloto sente uma força extra para baixo que se soma à gravidade. É a mesma coisa que acontece quando o carro faz uma curva fechada e a gente sente uma força para o lado, mas, nesse caso, a força é para baixo. Quanto mais forte o piloto puxa o manche, maior é a força que ele sente puxando para baixo e a gente mede isso em número de gravidades. 2G significa que o piloto sente uma gravidade duas vezes maior que o normal. 3G é três vezes, 4G é sinal de celular, não, é 4 vezes e assim por diante. Agora imagina vocês sentindo uma gravidade 4 vezes maior? A gente se afunda na cadeira como se pesasse 4 vezes mais. O peso no peito é tão grande que fica difícil de respirar. O sangue também é puxado com força para baixo e se concentra nas pernas. O coração não consegue bombear sangue suficiente para o cérebro e a pessoa apaga, o que seria desastroso quando você é o piloto do avião. Existe uma roupa que os pilotos podem vestir que comprime as pernas para manter mais sangue disponível na cabeça, mas, mesmo assim, um piloto de teste precisa contrair com força os músculos do corpo para aguentar acelerações absurdas de 7, 8, 9Gs.

Agora que a gente sabe tudo isso, vamos voltar para o teste.

Construíram uma centrífuga gigante em Alcântara para o treinamento do programa tripulado, e ela seria usada para testar nossos candidatos.

Centrífuga para treinamento de pilotos

São 4 passadas. Em cada uma o participante é submetido a uma força G por 30 segundos e precisa, a cada 10 segundos, apertar 3 botões no painel, numa sequência correta, para garantir que eles estão conscientes e capazes de pilotar um avião.

Para ser aprovado, o participante precisa passar nas duas primeiras passadas, com 6 e 7Gs. As últimas duas passadas, com 8 e 9Gs rendem pontos extras para o piloto que conseguir.

Todos os candidatos passaram na primeira passada, mas 5 apagaram durante a segunda passada e foram eliminados. Ada estava tranquila e passou sem dificuldade pelos 7Gs, mas agora começava o verdadeiro desafio.

Metade não aguentou os 8Gs. Alguns apagaram, outros apenas não conseguiram apertar os botões na ordem correta, pois estavam lutando com todas as forças para suportar o esforço. Ada foi uma das que passou.

Agora era a passada final, com 9x a gravidade. Ada sentia a cabeça mergulhando num oceano, a visão se estreitando e ficando distante, como se estivesse num túnel. Os sons foram diminuindo, se apertando, o mundo ficou em câmera lenta. Ela mal sentia a ponta dos dedos apertando os botões. Respirar parecia impossível, mas ela tinha que fazê-lo ou apagaria em segundos.

Uma força extrema guiava sua mão enquanto ela mantinha todos os músculos das pernas e da barriga contraídos, lutando contra a gravidade implacável. Cada gota de vontade dela foi espremida naquela centrífuga, porque ela queria aquilo mais que tudo, provar para aquele bando de garotinhos o que uma mulher era capaz de fazer.

— Aaaaaaaaaaaaaaa!

E ela passou. Além de Ada, apenas um outro piloto aguentou a última passada, o major do 1°Grupo de Aviação de Caça, o mineiro Ivo Lopes, de 39 anos. Parece que os jovens cheios de testosterona   não estavam acompanhando os vovôs.

Terminada a primeira fase, 12 homens se despediram de Alcântara – sobraram 17 homens e uma mulher.

Na pontuação total, Ivo despontava em primeiro lugar e Ada vinha abaixo da média. Embora tivesse ganho muitos pontos nos testes de força G e apneia, ela tinha ido mal nos de força e resistência.

No final do dia, o comandante Lacerda os chamou:

— Parabéns candidatos, foi uma semana muito intensa e vocês todos foram muito bem. Esse é um teste para selecionar os melhores dos melhores e uma fase já se foi, faltam duas. Semana que vem será a avaliação de conhecimentos aeronáuticos. Quem tirar menos de 7 será reprovado. Descansem e estudem.

Foram 3 provas, uma sobre fundamentos da aviação, com perguntas sobre sustentação de asa, arrasto, ângulo de ataque, ângulo de estol etc. A segunda sobre procedimentos de voo, pouso, decolagem, flaps etc. E a terceira sobre procedimentos de emergência, ejeção, paraquedas e até de sobrevivência em florestas. O fato de colocarem uma prova em separado para emergência, dava uma mensagem clara a todos de que ali eles eram pilotos de teste e acidentes eram uma possibilidade real.

Todos passaram nas provas e, tirando uns 2 ou 3, as notas foram muito altas, de forma que o ranking continuava praticamente o mesmo dos testes físicos. Ada estava em 12° lugar e passou a ficar muito preocupada depois do anúncio do Lacerda:

— Vocês me encheram de orgulho, até agora. Na próxima semana será o teste de habilidade, onde a gente vai descobrir se vocês são tão bons pilotos como dizem que são. Tô cansado de ouvir histórias nos corredores. Agora é pra valer. Ah, só mais uma coisa. Decidimos que o programa só precisa de 2 pilotos de teste por enquanto, então se esforcem para ficar em primeiro ou segundo lugar. Boa sorte, Vai Filhão!

A semana começou tranquila. Na segunda, cada um deles se revezou a bordo de um T-6, um avião monomotor de treinamento capaz de fazer manobras. O objetivo era se familiarizar com o avião e mostrar perícias básicas de voo. Após a decolagem, bastava seguir um percurso estipulado, que envolvia algumas curvas, e depois pousar. Pontos eram perdidos por imprecisões, mas ninguém cometeu nenhuma gafe.

Na terça foi o teste de acrobacia. Cada piloto tinha que fazer uma série de manobras e ganhava pontos extras se conseguisse emendar uma na outra. Ada deslizava no ar, como um pássaro de tão leve. Um oito cubano se transformava num trevo de 4 folhas, seguido de um split-S, ganhando velocidade e entrando num longo snap roll invertido que faz o avião entrar em estol, que Ada perfeitamente transforma num parafuso descendente, acelerando perto do chão. O avião passa próximo da pista de lado, com uma das asas quase tocando o solo, para então subir num immelmann perfeito.

Lacerda tava puto, não era para os pilotos baixarem de 50m.

— Quem ela pensa que é?

— É simplesmente um pássaro… senhor.

— Pode tirar 10 pontos pela infração.

— Mas… senhor, posso colocar +20 como bônus pela ligação das manobras?

— Tá vai, pode… mas tira os 10!

— Claro, claro.

Ada prossegue seu espetáculo aéreo de maneira impecável. Sua base de piloto acrobático fazia toda a diferença. Os militares treinavam manobras de combate, que eram eficientes, precisas. Mas Ada passou 10 anos fazendo shows acrobáticos em toda a América do Sul, ganhando muito prestígio por onde passava.

Ada Rogato em 1936.

— Desculpa, xerife Lacerda.

— Comandante Lacerda!

— Ops, eu sempre me confundo com essas patentes… mas, eu tava lá voando e por um segundo eu esqueci que tava num teste, olha só que coisa. O Téssio respondia tão bem que deixei ele livre, pra fazer o que tava sentindo. Ele queria muito fazer aquela faca sobre a pista.

— Quem é Téssio, do que você tá falando?

— Ah, é o nome do avião: T-6… Téssio, sacou? Eles voam com muito mais vontade quando a gente dá um nome, sabe?

— Era só o que me faltava. Fala lá pro Téssio então que, na próxima vez que ele sentir vontade de sair do regulamento, a senhorita estará desclassificada, tá ouvindo?

Mesmo com a penalidade, Ada subiu 4 posições e estava em oitavo agora.

O próximo teste era de voo visual, sem instrumentos. Os aviões experimentais já têm poucos mostradores e eles podem parar de funcionar por conta das situações extremas. Um piloto de teste tem que saber pilotar só no olho. Colocaram várias fitas cobrindo os mostradores do Téssio, e lá foi a Ada dar mais um passeio nos céus. Ela já tinha atravessado as Américas com um avião que nem rádio tinha, tendo que contar apenas com seus mapas, uma bússola, e seus olhos para fazer essa e outras travessias. Os outros pilotos todos estavam acostumados com dezenas de ponteiros e tiveram dificuldade em navegar só no olho. Ada, ao contrário, inclinava o Téssio para a direita ou à esquerda, para aumentar a visibilidade, e seguia marco após marco sem hesitar. Para quem foi até o Alasca e voltou naquelas condições, aquilo era um passeio no parque. Ela fez o menor tempo disparado e agora já estava na quinta posição geral.

Ada Rogato ao lado do seu Cessna que atravessou as américas, todo grafitado com os registros de cada lugar que ela foi.

Na quinta-feira fizeram saltos de paraquedas e muitos pilotos pousaram fora da marca. Ada já tinha sido campeã paulista e brasileira de paraquedas, aquilo era brincadeira de criança. Naquele dia, à noite, fizeram um voo noturno para representar situações adversas. Ivo foi o melhor, mas Ada não ficou longe. Ao final do dia, Ivo ainda estava em primeiro com Ada em terceiro na classificação geral.

O último dia seria o teste surpresa, ninguém sabia o que esperar:

— Preciso contar pra vocês um segredo do nosso programa. O avião experimental terá um motor de foguete, que só dura 5 minutos. Depois disso, acaba o combustível e o piloto tem que pousar na banguela, igual um planador. Então, o último teste será desligar o motor do T-6 a 1000m de altura e ficar o máximo de tempo no ar e pousar em segurança.

Nessa hora Ada abriu um sorriso. Antes mesmo de ser piloto de avião, ela foi a primeira brasileira brevetada no voo a vela, que é o nome técnico para voo de planador. Ela, inclusive, já tinha sido piloto de teste de planador por alguns anos e, se tinha uma coisa que ela sabia fazer bem, era surfar o vento.

Todos ficaram boquiabertos ao ver o que ela era capaz de fazer com o T-6, quer dizer, com o Téssio. O avião descia numa espiral suave, parecia em câmera lenta. Ela ia caçando o vento, buscando as rajadas mais fortes, dançando sobre as nuvens, nesse balé das alturas.

Até o Lacerda não conseguiu se segurar:

— Como é possível isso, da onde veio essa mulher?

— É… pelos registros, ela veio de São Paulo, senhor!

Ao se aproximar do pouso, o vento vinha de atravessado na pista. Ada não pensou duas vezes, desceu alinhada com o vento, deixando todos chocados de pavor. Ela deveria descer alinhada com a pista, mas o Téssio vinha de lado, não fazia sentido. Ela sentiu que o vento era forte e, por isso, conseguiu reduzir a velocidade do avião de tal maneira que, pouco antes de tocar o solo, ela pisou no pedal do leme e endireitou o Téssio com a pista, arrancando aplausos até mesmo dos adversários.

No fim, Ada passou Ivo e ficou em primeiro. No dia 26 de abril de 55, os seus nomes foram publicados no Diário Oficial, agora eram oficialmente os pilotos de teste do programa Gaviões.

Capítulo 2 – O Super Avião

Nos 2 meses seguintes, passariam por um rigoroso treinamento para se familiarizar com a cabine do novo avião que tinha ficado pronto. O S-1 era um avião muito inusitado. À primeira vista, se notam as duas asas que apontam para frente. Sim, isso mesmo: imagine as asas como os braços de uma pessoa. Em vez dos braços estarem esticados para o lado ou numa diagonal para trás, eles estão numa diagonal para frente. Por que isso?

Richard estudou tudo que havia de mais atual em aerodinâmica e resolveu tentar uma ideia que já estava sendo explorada antes mesmo da Segunda Guerra. As asas para frente criam um fluxo de ar que vai das pontas das asas para o centro do avião, o que cria menos vórtices e diminui o arrasto.

Mas afinal, o que é o arrasto?

Arrasto é a força que o vento causa empurrando as coisas para trás. Imagine-se correndo contra um vento forte. Você vai ter que se esforçar muito mais para conseguir manter a mesma velocidade. Essa força que te empurra pra trás é o arrasto.

Quanto mais rápido um avião voa, mais rápido é o vento que ele sente, e maior é o arrasto. Isso quer dizer que, quanto mais rápido o avião vai, mais difícil fica para ele acelerar mais. Por isso, todo avião tem uma velocidade limite, que é quando o arrasto fica tão grande que o motor não consegue acelerar mais o avião, só consegue manter a velocidade.

Mas quando a gente quer fazer aviões supersônicos, que vão tentar voar a velocidades insanas, o arrasto é o seu maior inimigo. Você quer fazer o avião com o menor arrasto possível. As asas para frente ajudam nisso.

Outro jeito de diminuir o arrasto é ter asas pequenas. Quanto maior o tamanho das asas, mais arrasto elas causam. O S-1 tinha asas pequenas, além de pra frente.

Mas qual é o problema de usar uma asa pequena?

As asas servem para dar sustentação ao avião. Quanto maior a asa, mais força pra cima o avião recebe. Um avião sem asa simplesmente não levanta voo. Porém, não é só o tamanho da asa que influencia na sustentação. Quanto mais rápido o avião voa, maior é a força pra cima que a asa produz. Por isso que, ao decolar, o avião precisa primeiro acelerar bastante na pista, e só depois ele pode subir. Um avião parado, não importa o tamanho da asa, nunca levanta voo.

Ótimo, isso quer dizer que, quanto mais rápido o avião vai, menor é a asa que ele precisa para voar, certo? É o melhor dos mundos. Você faz um avião com asa pequena que causa menos arrasto, e que por isso permite ele ir mais rápido, o que faz a sustentação aumentar a ponto de mantê-lo no ar. Perfeito.

Só tem um problema… em algum momento esse avião vai ter que pousar. E nessa hora ele tem que diminuir de velocidade. Mas se as asas são pequenas, em baixa velocidade elas param de produzir tanta sustentação e o avião despenca.

Existe um jeito de contornar esse problema, os chamados flaps. Flaps são painéis nas asas que se inclinam e conseguem empurrar mais ar para baixo, aumentando a sustentação, ao mesmo tempo que aumentam também o arrasto. Ao pousar, os aviões abaixam os flaps e podem tocar o chão mais devagar e sem despencar no processo.

Só que o S-1 não tinha flaps. Colocar flaps adiciona mais complexidade e, pior, adiciona mais volume nas asas, o que, adivinhem, adiciona arrasto. Richard queria fazer um avião muito simples e com o menor arrasto possível. O S-1 foi desenhado para voar em altíssima velocidade. E pra pousar? Bom, é por isso que ele precisa dos melhores pilotos.

Voltemos ao S-1. Além das suas asas serem pequenas e voltadas para frente, elas eram posicionadas na parte de trás do avião. Não era como um avião convencional que, na parte de trás, tem aquelas asinhas menores (chamados de estabilizadores horizontais). Na verdade, essas asinhas estavam colocadas na parte da frente do avião. Imagine duas barbatanas saindo do focinho do S-1, cada uma para um lado. Essa configuração a gente chama de “canard”, que é pato em francês, e o motivo é porque quem inventou isso foi, adivinhem só,  o Santos Dumont no seu primeiro avião, o 14-Bis. Os franceses, ao olhar aquela estrutura na frente do avião, acharam que parecia o pescoço de um pato esticado e deram o nome de “canard”.

Enfim, fato é que, usar o “canard” traz mais sustentação para o avião do que usar o estabilizador horizontal, que tira sustentação. Como o Richard queria espremer o máximo de performance possível, ele optou por essa configuração.

Mas o maior motivo para ele usar o “canard” era outro. O S-1 era um avião para voar alto, acima da estratosfera, onde o ar é muito rarefeito. Com pouco ar, os controles do avião não funcionam direito. É preciso ar para que os controles apliquem alguma força e façam o avião se inclinar. Já que tem pouco ar, então a ideia é usar uma alavanca maior. Ao jogar as asas lá para trás e o canard lá para frente, Richard criou a maior alavanca possível. Esse avião seria capaz de se inclinar para cima mesmo com pouco ar.

Pronto, agora você entendeu tudo do S-1, para finalizar, basta dizer que ele foi pintado pelo nosso querido carnavalesco da Unidos dos Telégrafos e ficou lindão:

Da cabine prateada surgem linhas douradas que se abrem em leque no comprimento da fuselagem. Os vãos das linhas são preenchidos com o icônico azul metalizado, que também recobre as asas, os canards e o estabilizador vertical. Neste último, estão estampadas as asas da Força Aérea. Na parte de cima do corpo aparece o logo da AEB acompanhado da bandeira do Brasil. Na lateral, em branco, está escrito APOENA. Sim, esse é o nome da nave, que significa “Aquele que vê mais longe” em Tupi. Já que é um avião para voar mais alto do que todos os outros, o nome faz sentido.

Capítulo 3 – Supersônico

Na manhã do dia 14 de julho de 55 estavam todos tensos. Lacerda fumava igual uma chaminé. Jayme checava com Ada cada procedimento e repassava a missão em detalhe. Ivo Lopes estava junto, ele era o suplente de Ada, mas parecia mais nervoso do que ela:

— Ada, lembra que o trem de pouso tá emperrando e tem que baixar manualmente.

— Pode deixar, Ivo, já coloquei uma fita vermelha no botão.

— Vai lá, Ada, faz o seu show… Boa sorte, Gaivota Solitária.

— Tô sozinha não, o Apoena tá comigo. Brigada Ivo.

Como Apoena usava um motor de foguete super faminto, que consumia todos os 2000kg de álcool e os 1700kg de oxigênio líquido em apenas 5 minutos na potência máxima, a ideia seria partir com ele já do alto, assim ele não gastaria tempo precioso decolando. Além do mais, por ser um avião nunca testado, se desse algum problema sério na decolagem seria  uma catástrofe certa. Mas, se ele já começasse em 9km de altura, haveria tempo para recuperar os controles antes de atingir o solo, ou no mínimo ejetar do avião.

Por isso, eles estavam prendendo o Apoena na parte debaixo do bombardeiro B-17 de quatro motores, que a FAB tinha disponibilizado para isso.

Zé e Richard checavam cada instrumento, cada componente, cada parafuso. Ada embarcou no Apoena, que por sua vez estava embarcado no B-17, que enfim decolou para a primeira missão do programa, testar o regime supersônico.

Quando estava a 9100m de altura, o B-17 liberou o Apoena, que despencou instantaneamente. Naquela velocidade de 420 km/h, as pequenas asas eram incapazes de segurar o avião de 5,3t no ar.

Ada dá a ignição no motor XLR-11, que acende furiosamente as 4 câmaras de combustão, projetando um total de 26,7kN de força, quase o dobro do motor a jato do Meteoro de Gloster. O tranco faz Ada afundar no assento.

— Uou, segura aí Apoena… não precisa ter pressa, a diversão só tá começando.

Na torre de comando estava nosso locutor oficial, Sergio Cassani, narrando o voo para todo o Brasil:

— Atenção, o Apoena se desprendeu do avião cargueiro e… partiu! Vaaaaaai Filhão… O motor acendeu com sucesso e o Apoena raaaaaaasga os céus numa velocidade impressionante. Lembrando que essa é uma missão para cruzar a barreira do som, um feito inédito aqui no Brasil.

A velocidade vai aumentando de maneira impressionante. Ada rapidamente embica o Apoena para cima para alcançar uma altura em que o ar é mais rarefeito e, portanto, o arrasto é menor.

Passando dos 20km de altura, onde nenhum outro avião brasileiro poderia chegar, Ada se alinha com o horizonte e aplica máxima potência.

— Agora você tá livre Apoena, vai com tudo!

— Olha só galera, a velocidade tá subindo. Será que vai passar a barreira do som? Nessa altura que a Ada tá, a velocidade do som é 1060km/h. A telemetria tá marcando 1020. Falta pouco… é muita emoção. Atenção, 1050, 1055, 1056, 1057… Eita, tá parando. Será que não vai?

Quando um avião se aproxima da velocidade do som, as ondas sonoras se acumulam em alguns pontos da fuselagem, atrapalhando o fluxo de ar, o que gera um arrasto extra. Por isso o Richard fez as asas para frente, para diminuir esse tipo de arrasto.

— 1059… 1060! CRUZAMOS A BARREIRA DO SOM! O Brasil é oficialmente supersônico. Que momento incrível. Nossa! Olha só a onda de choque que chegou aqui galera. Uau.

A partir do momento que o avião cruza a barreira do som, ele começa a emanar um cone de pressão conhecido como onda de choque, que é sentido como um estrondo enorme. 

— Ada, Ada, você está bem? Você copia?

— Melhor impossível… isso aqui é muito divertido.

— Mas e o estrôndo sônico, você sentiu?

— Nadinha, exatamente com o Richard previu… Incrível né?

Depois de cruzar a barreira, o arrasto transônico vai diminuindo e o Apoena volta a acelerar.

Ao chegar em 1600km/h, Ada reduz os motores e tenta manter o máximo de tempo possível nessa faixa. O objetivo da missão é avaliar os efeitos do regime supersônico nos sensores colocados dentro e fora da cabine.

Após 8 minutos, o combustível acaba e o Apoena se transforma num planador.

— Você foi incrível, Apoena. Agora me dá licença que é minha vez de brilhar!

Ada finalmente pôde sentir os controles, fazer curvas, manobrar, enquanto buscava a pista 20km abaixo. Tentando se orientar pelo relevo, ela finalmente avistou a pista. O avião estava meio arisco. Qualquer toque no manche fazia ele se inclinar com força. O mais preocupante, porém, era a velocidade. Descendo para a pista, o Apoena acelerava absurdamente, afinal, ele foi feito para cortar o vento. Ada aplicava os freios aerodinâmicos a todo momento, como um cavaleiro segurando as rédeas de um cavalo bravo.

— Calma rapaz, caaaalma rapaz…

Ada faz um teste para descobrir qual a velocidade de estol, ou seja, qual a velocidade mínima antes do avião despencar. E descobriu que era 260km/h:

— Maldito urubu do capeta, isso é muito insano… calma, Ada, você consegue.

Só para vocês terem uma comparação, a velocidade de estol do Cessna 140A que a Ada usara para cruzar as américas era 72km/h.

Ela fez a descida para o pouso mantendo 500km/h e, faltando 150m para a pista ela iniciou o arredondamento, que é a puxada para trás do manche para nivelar com o solo. Se ela perdesse o ângulo certo, ou se espatifaria no chão ou passaria voando por cima da pista (e cairia no mar).

A manobra é bem executada e o Apoena está agora voando a uns 5 metros de altura a 320km/h. Ela puxa os freios aerodinâmicos para sangrar sua velocidade antes de tocar o solo. Mas o Apoena sacode, balança. Os controles são muito sensíveis, a asa inclina prum lado e pro outro, como um animal irritado.

— Segura, segura Apoena, me ajuda.

Quando as rodas tocam o solo, Ada imediatamente sente algo muito esquisito, como se a qualquer momento o avião fosse sair do eixo e capotar.

Normalmente, os aviões têm o trem de pouso escondido dentro das asas, que faz com que uma roda fique afastada da outra. Com uma base grande, o avião não capota de lado. Mas o S-1 não podia esconder o trem de pouso na asa porque ela era muito fina, então o Richard o colocou dentro do corpo do avião, o que deixou as rodas muito próximas. É como uma mesa com as pernas juntas, qualquer desequilíbrio e ela tomba.

Aplicando os freios ao máximo e segurando na ponta dos dedos, Ada nem acredita que consegue estabilizar o pouso. O Apoena finalmente para e ela pode então respirar:

— Ahhh, ahhh, caceta de cegonha endiabrada… consegui.

Capítulo 4 – Mais Alto

No dia seguinte a foto de Ada estampava os jornais. O Brasil tinha muito que se orgulhar. Fazia parte do pequeno grupo de países que tinham rompido a barreira do som com um tripulante, e Ada se tornou a terceira mulher a conseguir esse feito, atrás apenas da americana Jacqueline Cochran e da francesa Jacqueline Auriol. Mas o que Ada ainda não tinha se dado conta é que ela havia ultrapassado o recorde das duas, tanto em velocidade quanto em altitude. Com seus 1600km/h e seus 22km de altura, Ada Rogato era a mulher mais veloz e que chegou mais alto do mundo. Os jornais começam a chamá-la de “Rainha do Ar” e, quase 50 anos depois do voo histórico de Santos Dumont, o Brasil entrava novamente para a história mundial da aviação com Ada Rogato.

— Richard, Richard… você é um gênio! Esse teu avião é incrível. Tá, eu sei que todo mundo riu quando viu aquelas asas viradas pra frente, mas como esse bicho corta o ar. A Ada disse que dava pra ir ainda mais rápido.

— Obrigado comandante, mas olha, não se engane. Eu fiz um avião para ser incrível em alta velocidade, mas ele é péssimo em baixa velocidade e pior ainda para pousar. Os pilotos é que têm que segurar a bronca.

Quase um mês depois, é a vez do major Ivo Lopes fazer seu voo de estreia. A missão seria alcançar 25.000m de altura em voo supersônico. Ada queria muito aconselhar o parceiro, mas tinha medo da reação dele. Ainda assim, tomou coragem.

— Ada? Errou de quarto? Vai dormir mulher!

— Oi Ivo, eu só vim te desejar boa sorte pra amanhã.

— Ah, obrigado, querida. Poxa, receber essa visita da “Rainha do Ar” é uma super honra hein?

— Ai, tá bom, por que que tive essa ideia idiota? Tchau.

— Ei ei, calma… pode falar, tava só brincando com você.

— Escuta Ivo, é bem sério o que vou falar, o Apoena é um cavalo selvagem, ele é muito instável…

— Que que cê tá falando Ada? Olha, eu sei que você é uma piloto incrível, mas você só pilotou aviões lentos. Eu tenho 10 anos pilotando o Thunderbolt e passei os últimos 2 anos com o Meteoro, tô acostumado com velocidade alta.

— Presta atenção, Ivo, não tem a ver com velocidade, pelo contrário, é sobre a falta de velocidade. O Apoena não voa direito devagar.

— Então pode deixar que eu vou manter ele sempre rápido, hehe.

— É, realmente foi uma ideia idiota. Deixa pra lá.

— Olha, o Zé já mexeu nos controles. Você disse que tava muito sensível, ele reduziu o curso dos ailerons.

— Ivo, você não faz ideia do que eu tô falando, mas não tenho como te fazer ouvir. Depois de amanhã a gente conversa. Só se esforça pra voltar inteiro. Boa sorte.

O sol mal havia raiado quando o B-17 decolou da base de Alcântara carregando o Apoena no ventre. Às 7:18, o major Ivo Lopes deu partida no motor do Apoena na máxima potência e rumou para o alto.

Voando de maneira suave e precisa, Ivo alcança quase 2000km/h em minutos, quando então embica o Apoena para cima, queimando o restante do combustível. A aeronave faz um arco bonito, chegando até os 25.000m de altura.

— Alcântara, missão cumprida. O altímetro marca 25k. Preparando para o pouso.

5 minutos depois, apontava o Apoena no horizonte, alinhado com a pista. Ele vinha descendo rápido, mas havia algo estranho. As asas balançavam, o avião dava uns soluços, ele vinha meio derrapando no ar. O silêncio era absoluto, ninguém respirava. Nos últimos metros, parecia que Ivo recuperou o controle e as rodinhas se alinharam na pista, mas… no momento do toque, a 250km/h, o avião balança uma última vez e então… capota.

— Ai meu Deus!!

Epílogo

Você ouviu o sétimo episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

As manobras descritas nesse episódios são reais e o voo acrobático da Ada foi pensado de um jeito que faz sentido. Se eu tentasse descrever cada manobra ficaria extremamente chato então optei por uma narrativa mais emocionante, mas o ouvinte mais curioso pode buscar as manobras na internet e montar uma imagem mais visual do voo.

Ada recebeu diversos apelidos durante sua carreira, entre eles: Águia Paulista, Rainha dos Céus do Brasil,  Gaivota Solitária, Pássaro solitário, Condor dos Andes.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sacani

Ada Rogato por Jujuba

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Ivo Lopes por Felipe Queiroz

Richard por Pena

Sargento Rocha por Vitor Moreira

Vozes extras por Vitor Moreira, Daniel Koss, Diogo Paschoal e Pena

Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Sil Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Efeitos sonoros por Pena e Vitor Moreira.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.