Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.
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Capítulo 1 – Gato Félix
Com a morte do presidente, assume o seu vice, Café Filho, numa posição extremamente delicada. Para aplacar um pouco a pressão, retira Nero Moura do ministério da Aeronáutica, que era homem de confiança de Vargas, e coloca, em seu lugar, o brigadeiro Eduardo Gomes, um dos líderes do partido opositor, a União Democrática Nacional.
Nesse momento, Lacerda teme que todo o programa espacial pudesse acabar imediatamente, pois Eduardo era um daqueles brigadeiros enciumados, que achava que os foguetes estavam ganhando atenção demais.
Porém, no momento em que ele se torna o nome à frente do ministério, os feitos do programa espacial também seriam os seus feitos, e o novo ministro não queria perder essa mídia gratuita. Como seu primeiro ato, Eduardo retira Lacerda do comando de Alcântara e coloca um homem de sua confiança em seu lugar.
Richard não morria de amores por Lacerda mas tinha aprendido a lidar com ele e sabia que o major nutria uma vontade verdadeira em fazer o programa avançar. Por isso, Richard começa uma manifestação que foi seguida por quase todos os 222 engenheiros, técnicos e cientistas do programa, o que acaba forçando o ministro a devolver Lacerda para seu posto. Essa luta Eduardo havia perdido.
As turbulências na política do Brasil continuaram pelas semanas seguintes e por pouco não houve uma tentativa de golpe. Café Filho se segurou pelas pontas dos dedos, fazendo concessões aqui e ali e, aos poucos, as coisas foram se acalmando.
Antes do ano acabar, ainda deu tempo de lançar um novo foguete:
O Laurare 3 era só um pouco mais comprido que o Laurare 1, pois, na sua ponta, abaixo do cone frontal, havia uma capa cilíndrica dourada cujos adesivos avisavam que uma carga viva estava a bordo. Por baixo dessa capa estava uma cápsula contendo um gato negro chamado Félix.
Lançar animais para o espaço era uma forma de testar os possíveis efeitos do voo dos foguetes na fisiologia humana. A pesquisa com ratos, lançados no Arapuá 4 Ratazana, tinha rendido muito material para os pesquisadores do programa, principalmente para a bióloga Sílvia e a biomédica Vanda. Mas, para dar prosseguimento, era necessário um animal maior. Escolheram um gato gordo e bonito que vivia em Alcântara e aparecia em todos os lançamentos. Zé ficava sempre com o coração apertado quando envolvia animais:
— Já que não tem outro jeito, que seja o Félix então. Pelo jeito que ele gosta de foguete, talvez até queira se tornar o primeiro gatonauta do mundo.
O Arapuá era muito pequeno para abrigar essa cápsula de 1m de diâmetro, então usaram o Laurare para isso.
Dentro da cápsula, Félix ficou preso sob anteparos acolchoados, para evitar que se machucasse, e foi conectado a uma porção de eletrodos que mediam ondas cerebrais, batimentos cardíacos, respiração etc.
A voz de Sergio Cassani no rádio trazia um alívio em meio àqueles tempos difíceis e, durante aqueles 10 minutos, o brasileiro voltou a vibrar e comemorar a cada etapa de sucesso:
— Olha só galera, o Laurare tá chegando a 110km de altura e, atenção… temos confirmação… a telemetria indica que a coifa se abriu, tudo certo… olha só, mais uma confirmação, a cápsula se separou do foguete. Que voo lindo. Agora o nosso gatinho está no espaço, o Félix é o primeiro gato espacial do mundo. E os sinais vitais estão ótimos, parece que ele tá bem.
O Félix chegou a 334km de altura e começou a retornar. Se aproximava a hora tensa da reentrada.
— É, pessoal, a cápsula tá descendo rápido, 60km… 50km… agora é a fase crítica… tá desacelerando rápido, 2.000km/h… olha só, a telemetria tá dando uma falhada, o que é normal por conta do plasma que se forma durante a reentrada… vamo aguardar… atenção… VOLTOU! Temos telemetria, o Félix está vivo galera! E o melhor de tudo, o paraquedas abriu e já dá para ver daqui da torre de transmissão a cápsula no céu… que voo lindo!
O Brasil marcou um gol importante, fortalecendo o programa espacial e, em especial, a posição de Lacerda.
— Richard, você é um filho da mãe mesmo hein… obrigado!
— Agradeça ao Jayme, essa missão foi inteiramente comandada por ele. Eu estou totalmente ocupado com aquela outra coisa…
Essa outra coisa eu conto daqui a pouco, segura a ansiedade aí, mas é fato que Richard estava muito atarefado ultimamente e colocou Jayme como o líder de operação.
Só que foi o Zé o primeiro a chegar até a cápsula para resgatar o Félix. Quando abriu a portinha, o gato só olhou para ele com aquela cara de “Espero ganhar um peixe inteiro por isso”.
Passado o ano novo, havia um lançamento já agendado para o dia 14 de janeiro de 1955, o último foguete para cumprir o contrato com o Instituto de Meteorologia. Jayme, super atarefado com suas novas funções, obviamente deixou para registrar a missão na última hora. Lá ia ele e o Zé, correndo desesperados, para o ENROSCO mais uma vez:
— Boa tarde Jayme… chegou cedo dessa vez hein, 7 minutos para fechar.
— Oi… Jamile… por que isso aqui não é no térreo hein? Tá tudo aqui.
— E lá vamos nós. Instrumentos de operação… autorização de voo… aham… área de isolamento… Não acredito! Veio com nome o foguete?
— Viu só, te surpreendi dessa vez.
— Peraí, ele não me contou o nome não, o que tá escrito aí Jamile?
— Pior que é um nome legal: Nimbus.
— Uau, aí sim hein quatro-olho… Nimbus tem tudo a ver, e impõe respeito.
— Cê viu só? E o melhor de tudo, ainda faltam 3 minutos e dessa vez não vou precisar fechar na correria.
— Ahhh, droga… não…
— Não o quê? O que houve?
— To pensando aqui… o primeiro foguete se chamou Farofa. O segundo, Paçoca. Esse vai chamar Nimbus? Poxa…
— É, pensando assim, acaba não ornando no samba enredo. Mas quem se importa não é mesmo? A criança já foi batizada e eu já tô fechando.
— Não, não… pera um pouquinho… ahh, eu sei que vou me arrepender, mas… cê tem mais algum bicho de estimação, Zé?
— Haha, olha, bicho é que não falta! Corrige aí então Jamile, vai se chamar Pipoca. É o nome do meu periquito.
E assim, a Pipoca explodiu na plataforma… quer dizer, decolou da plataforma (mas olha, com esse nome tava arriscando, hein?). Contrariando seu próprio nome, a Pipoca não explodiu, alcançou 209km de altura e entregou mais dados meteorológicos para a ciência brasileira. Era o décimo segundo lançamento de sucesso seguido, algo quase inacreditável, aumentando ainda mais a confiança no Vai Filhão.
Capítulo 2 – Os Meteoros
Pra eu contar pra vocês sobre o projeto especial do Richard a gente tem que voltar 2 anos.
Em 53 a FAB resolveu atualizar sua frota de aviões de combate do Brasil, que era formada por caças P-47 Thunderbolts. Eram aviões muito bons e voaram pela primeira esquadrilha brasileira durante a segunda guerra mundial, um grupo conhecido como “Senta a Púa”! Mas eram aviões movidos a hélice e estavam ficando ultrapassados com os diversos aviões a jato que começavam a dominar os céus nesse pós-guerra.
O Brasil, então, trocou 15.000 toneladas de algodão com a Inglaterra por 60 caças Gloster Meteor, cada um movido por 2 motores a jato Derwent.
Acho que agora é um bom momento para explicar como esses motores funcionam.
Os motores tradicionais, a hélice, eram grandes motores a combustão, como os de carro, que queimavam gasolina e, em vez de girar as rodas, giravam uma hélice em altíssima rotação. Esse movimento da hélice empurra o ar pra trás, o que faz o avião ir para frente.
O problema é que, para ir cada vez mais rápido, a hélice tem que girar cada vez mais rápido também. Em algum momento, a velocidade da ponta da hélice ultrapassa a velocidade do som, o que causa ruídos e vibrações enormes. Na prática, fica muito difícil fazer um avião com hélice voar mais rápido que 750km/h, ainda mais naquela época.
O motor a jato é bem diferente. A ideia é bem simples. Imagina que você tem uma caixa fechada com um único furo. Dentro dessa caixa você coloca gasolina e acende uma chama. A gasolina vai pegar fogo e os gases vão sair pelo furo em alta velocidade, fazendo a caixa ir para o outro lado. O problema é que, nesse caso, o oxigênio dentro da caixa vai acabar muito rápido e o fogo vai se apagar. Daí você pode pensar, ora, vamos colocar um furo na parte da frente também, para que ar fresco entre enquanto a caixa está voando pra frente, e os gases da queima continuam saindo por trás. Mas aí temos outro problema, pois os gases da queima também vão querer sair pelo furo da frente. Eles vão sair por qualquer lado.
Os primeiros motores a jato tinham uma válvula na frente que se abria para deixar o ar entrar, então a válvula fechava, ocorria uma explosão, e os gases saíam só por trás. Daí a válvula abria de novo e o ciclo se repetia. O nome desse motor é pulsojato, pois ele vai dando pulsos, não funciona de maneira contínua.
Resolveram esse problema colocando um compressor de ar na parte da frente. Imagina várias hélices girando rapidamente e socando ar dentro da caixa. A pressão do ar fica bem alta ali na parte da frente, e quando ocorre a queima da gasolina os gases não voltam, eles preferem seguir para a região do furo de trás que tem pressão mais baixa. Pronto, problema resolvido.
Eu sei que um ouvinte perspicaz pode perguntar: mas Pena, agora você precisa de outro motor para girar as hélices do compressor, certo?
Sim, é preciso mover as hélices de alguma maneira, que pode ser usando um outro motor ou, mais comum, usando uma turbina.
Turbina nada mais é que um catavento. Quando o ar passa, o catavento gira.
Os motores a jato costumam ter um catavento na parte de trás do motor. Conforme os gases escapam em alta velocidade eles giram o catavento, que está conectado com a hélice na parte da frente do motor. Então o catavento gira a hélice, que comprime o ar, que fornece o oxigênio para a gasolina queimar, que gera gases em alta velocidade, que saem por trás, empurrando o avião para frente e movendo o catavento, que gira a hélice, que comprime e ar… e… você entendeu.
Esse tipo de motor, que usa uma turbina para girar o compressor, é chamado de turbojato. E os caças britânicos Gloster Meteor, ou em português, Meteoro de Gloster, usavam dois turbojatos, um em cada asa.
Quando Richard ficou sabendo que a FAB compraria aviões a jato ficou maluco, tinha tirado a sorte grande. Ele sabia que pra colocar pessoas no espaço eles teriam um longo trabalho de projetar cápsulas grandes, pressurizadas, com aquecimento, oxigênio, suporte à vida e testar isso de alguma maneira. Em vez de fazer foguetes, que aceleram sem parar para o alto e são destruídos a cada voo, seria muito mais inteligente fazer super aviões, capazes de subir além da estratosfera, onde tudo isso poderia ser testado de maneira controlada, para depois retornar intactos para o solo. Um único super avião desse poderia fazer dezenas de voos de teste, cada um aprimorando uma ou outra coisa.
Mas isso não era tudo. Um dos grandes desafios era testar os seres vivos em velocidades extremas. Os americanos já tinham voado, em 47, mais rápido que o som e, desde então, se sabia que o ser humano poderia sobreviver ao choque supersônico. Mas, para garantir que cápsulas e equipamentos não fossem comprometidos durante a quebra da barreira do som, era preciso recriar essas situações de maneira controlada. Num foguete isso tudo é muito rápido. Um super avião supersônico seria muito mais útil, ainda mais se ele conseguir acelerar a velocidades realmente altas, 2, 3, 4 vezes a velocidade do som.
E por fim, mas não menos importante, era preciso começar a treinar astronautas para aguentarem essas situações extremas, se adaptarem, aprenderem a suportar as acelerações do lançamento e da reentrada, a manobrar cápsulas no vácuo etc. Isso tudo leva muito tempo e quanto antes começar, melhor. Um super avião supersônico resolvia todos os problemas de uma só vez.
Só tinha um problema: fabricar um super avião desse era tão difícil quanto fazer um foguete, senão mais. Seria preciso motores a jato e o Brasil ainda estava na hélice.
Mas isto estava para mudar com a importação dos Meteoros de Gloster.
— Peraí, Richard, deixa eu ver se entendi. Você quer que eu extravie um jato novíssimo que a gente vai comprar da Inglaterra para você desmontar ele e tentar fazer um Frankenstein?
— Olha, major, eu quero muito mais que isso na verdade, mas não quero te assustar.
— Se esse era seu objetivo você já falhou. Você realmente acha que dá para pegar um jato que não chega na velocidade do som, trocar algumas peças de lugar e fazer ele milagrosamente voar 2 vezes mais rápido? Olha, se isso fosse possível, eu garanto que os Ingleses já teriam feito.
— Não, claro que não. Eu quero que a FAB, além de doar um Meteor, um Meteoro, compre dois motores de ponta, o Avon 107, que os britânicos estão usando no novo caça deles, o Hawker Hunter. Se com um motor desse o Hunter já passa a velocidade do som, imagina dois no mesmo avião. Aí sim, posso usar as peças do Meteor para criar UM dos meus super aviões.
— Como assim UM? Richard, você tá realmente conseguindo me assustar!
— Também quero que a FAB compre um motor de foguete americano, o XLR-11.
— Peraí, a gente já tem motor de foguete aqui, por que você quer outro?
— Esse é um motor de foguete feito para ser usado em avião. Dá para ligar e desligar ele no meio do voo e também dá para diminuir a potência. É um motor antigo, que foi usado em 1947 no avião X-1, o primeiro a quebrar a barreira do som. Eles vão vender pra gente.
— E você vai querer fazer um SEGUNDO jato a partir desse motor…
— Jato não, não é um motor a jato, é um motor de foguete. Seria mais um avião-foguete, um rocket-plane. Esse é para chegar alto, além da estratosfera.
— Ok, chega, essa loucura já foi longe demais. Você já me assustou o suficiente. Não tem nenhuma chance desse delírio acontecer.
Levou 2 dias para Richard convencer Lacerda de como aqueles super aviões seriam fundamentais para o programa tripulado. E outros 3 dias para convencer de que ele, Richard, seria capaz de projetar um avião desse a partir de peças de um Meteoro.
E mais 3 dias para Lacerda checar com Jayme se, hipoteticamente, seria possível criar um super avião daquele.
— Sim, senhor, major, senhor. Fiz todos os cálculos e, em teoria, é possível uma carenagem de duralumínio suportar 3x a velocidade do som se voar acima de 20km. Mas claro que o regime supersônico cria frentes de onda destrutivas dependendo da geometria do avião. Precisa ser alguém muito bom para projetar algo assim, eu não me arriscaria senhor.
E mais 3 minutos para checar com o Zé se haveria alguma possibilidade de converter peças de um avião em outro.
— Claaaaro, major, seu major. Se sou eu que vou fazer o serviço, tranquilo, dá para transformar até num balão se o senhor quiser, vem na minha.
Lacerda estava convencido mas ele não era o dono dos aviões. Quando Nero Moura era o ministro da aeronáutica, o major tinha muito mais influência: eles eram amigos e tinham o mesmo alinhamento político. Com Eduardo Gomes a história era bem diferente.
Não teve como, por mais que os argumentos de Lacerda fossem sólidos, amparados por relatórios do Jayme e um currículo respeitável de Richard, tava claro que o ministro queria dar o troco no Lacerda por ter sido obrigado a o engolir. Dessa vez Eduardo Gomes venceu.
— A cara de pau daquele engomadinho dizendo “Desculpa Lacerda, mas todos os 60 jatos serão fundamentais para os novos planos da FAB, não dá para abrir mão de nenhunzinho”. Que filha da mãe.
— Deixa pra lá, mas obrigado por tentar, comandante… a gente vai levar pelo menos 5 anos a mais para criar um programa tripulado, mas um dia sai.
— Peraí… acho que to tendo uma ideia idiota. Ele disse que precisa de todos os 60 jatos… talvez tenha um jeito de… não, não… seria muita loucura, além de extremamente arriscado.
— Me conta mais sobre isso, major.
Capítulo 3 – O Grande Assalto
Olhando o contrato, Lacerda sabia que esses 60 jatos viriam desmontados e seriam entregues no porto do Rio para serem remontados na Fábrica do Galeão. A Fábrica era um galpão enorme que fazia parte da Base Aérea do Galeão, uma base militar na Ilha do Governador situada onde, hoje, é o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, ou mais conhecido como Aeroporto do Galeão.
A tal Fábrica do Galeão era o único local no Brasil, naquela época, capaz de construir aviões. Os projetos eram licenciados de fora e os engenheiros eram treinados para poder construir as peças e montar de acordo com o “manual de instruções”.
Lacerda, como quem não quer nada, convenceu o comandante Barbosa, responsável pela Base Aérea do Galeão, de que seria importante os professores e alunos do ITA fazerem uma visita durante a montagem dos Meteoros, para que pudessem aprender com a tecnologia estrangeira.
Nas férias de julho de 1953, 50 integrantes do ITA passaram a circular pela Fábrica do Galeão auxiliando na montagem dos novos aviões e aprendendo um monte de coisa sobre a engenharia daqueles motores a jato. Esse conhecimento todo seria muito valioso para o próprio programa no futuro.
Mas havia quatro pessoas, dentre esses 50, que estavam lá por um ganho mais palpável e imediato. Lacerda, Richard e seus dois homens de confiança, Zé e Jayme, tinham uma missão especial a cumprir.
Pelo contrato, a Gloster iria fornecer, além dos 60 jatos, diversas peças e motores sobressalentes, para suprir pelo menos uma década de possíveis reparos dos aviões da nova frota. Isso significava que havia peças extras suficientes para montar, inteirinho, pelo menos mais 8 Meteoros.
O plano seria, então, sequestrar metade daquelas peças. Ninguém daria falta daquilo em pelo menos uns 5 anos.
No meio daquele fuzuê todo, cheio de professores, alunos, técnicos e engenheiros andando pra lá e pra cá, os 4 gatunos aguardavam o melhor momento para surrupiar uma roda de trem de pouso, um cabo de aileron ou uma turbina de motor e levar, discretamente para o caminhão do ITA, que estava estacionado na porta do hangar.
Era um trabalho de formiguinha, que consumia muito tempo. A cada dia, eles conseguiam garimpar só umas 20 ou 30 peças. Por sorte, eles tinham um mês inteiro para isso.
Lacerda ficava no lado de fora do hangar, cuidando do caminhão e conferindo quais componentes ainda faltavam naquela longa lista de mais de 500 itens. Era dele também a tarefa de avisar, por um walkie-talkie, quando a ronda dos guardas passava por ali:
— A águia voltou para o ninho, repito, a águia voltou para o ninho.
Jayme, instalado no almoxarifado sob o pretexto de ajudar a organizar o caos, tinha a responsabilidade de separar os componentes sobressalentes para que Zé e Richard os levassem:
— O jantar está servido: dois petiscos e uma lasanha no forno 2.
Zé e Richard, que eram ótimos engenheiros de campo, ficavam na linha de frente, ajudando na montagem das aeronaves e saindo vez ou outra para buscar componentes no almoxarifado e levar até a linha de montagem. Quando Jayme passava o código, eles esperavam o momento mais caótico para subtrair as “iguarias” e levar até o caminhão.
Jayme, então, apagava cuidadosamente o registro daqueles itens no inventário, eles não poderiam deixar pontas soltas.
Foi um longo mês de trabalho, mas provavelmente o mais produtivo de todos. Cinquenta professores, alunos e pesquisadores tinham, no final, adquirido um conhecimento prático extremamente valioso sobre aviões a jato, tinham acelerado em muito a construção daquelas aeronaves que já entrariam em serviço pela FAB a partir daquele mesmo ano, e, como bônus, tinham saído com um caminhão carregando 4 Meteoros desmontados, rumando diretamente para São José dos Campos, para o edifício do IPD.
No fim daquele ano, perto do Natal, chegaram os últimos presentes tão aguardados por Richard – pelo jeito ele tinha sido um bom menino. Dois motores Rolls-Royce Avon 107, de última geração. E um motor de foguete XLR-11.
Richard levou 8 meses para desenhar o primeiro avião. Esse era o rocket plane, ou avião foguete, que recebeu a sigla de S-1 (o primeiro avião de Smith). Em outubro de 54 começou a sua construção, liderada por Zé e mais 30 engenheiros, enquanto Richard projetava o segundo super-avião.
Em fevereiro de 55 o S-1 estava pela metade e Richard havia finalizado o projeto do S-2.
Eles estavam confiantes e queriam anunciar o programa de maneira oficial.
Na política as coisas estavam se acalmando, Café Filho se mantinha no poder e aparentemente os movimentos de golpe militar tinham perdido força.
Mas se depois da tempestade vem a bonança, depois da bonança vem a tempestade.
Em 12 de fevereiro de 55, uma delegação da União Soviética aportou em território brasileiro, sem nenhum aviso prévio, querendo falar diretamente com o presidente.
Epílogo
Você ouviu o quinto episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.
E dessa vez tem um monte de detalhes e curiosidades históricas, vamos a elas:
Eduardo Gomes foi de fato o ministro da Aeronáutica no governo de Café Filho, entrando no lugar de Nero Moura para aliviar a pressão que a FAB estava fazendo. Nessa época, o brigadeiro Eduardo já era influente na política e tinha se candidatado à presidência duas vezes, em 1945 e em 1950. Na sua campanha política de 45, algumas mulheres paulistanas criaram um doce feito de leite condensado que era vendido em festas para angariar fundos para a candidatura. A guloseima fez sucesso, e muita gente ia até os comícios só para provar os doces do brigadeiro. O candidato perdeu as eleições, mas seu doce foi com certeza eleito, pois se tornou um dos mais tradicionais da culinária brasileira: o famoso brigadeiro. Só que no Rio Grande do Sul, diferente do resto do país, eles chamam o doce de “negrinho”, e o motivo também é político. Vargas, que era gaúcho, tinha uma base de apoio enorme no seu estado de origem, e as pessoas se recusavam a chamar o doce por um nome que remetia ao rival político.
Aproveito esse assunto para contar para vocês de onde vem a expressão “Céu de Brigadeiro”, que se diz de um céu limpinho, sem nuvens. Por ser uma patente elevada na hierarquia militar, os brigadeiros costumam ser mais velhos e, por conta do cargo, ficam mais em terra, em tarefas burocráticas. Geralmente não pilotam um avião a tempos. A expressão é um tipo de zoeira que os aviadores fazem para dizer que os brigadeiros são tão maus pilotos que só conseguiriam voar num tempo perfeito.
Os primeiros animais enviados ao espaço foram moscas em 1947, e o primeiro mamífero foi o macaco Albert II em 49, ambos a bordo de um foguete V-2. Durante a década de 50, os EUA lançaram vários animais, principalmente macacos e ratos, mas, infelizmente, a taxa de mortalidade era muito alta por conta de falhas no foguete ou no paraquedas.
É difícil saber quantos animais os soviéticos lançaram, pois eles só divulgavam os casos de sucesso. Sabe-se que em 51 os cachorros Tzigan e Dezik foram os primeiros seres vivos complexos que foram recuperados com vida.
O Brasil seria o primeiro país a lançar um gato para o espaço, em 1959, a bordo de um foguete construído pela Escola Técnica do Exército, a ETE. O gato escolhido se chamava Flamengo e o foguete recebeu o nome de Félix I. Houve vários contratempos com esse lançamento, incluindo manifestações da “Sociedade Protetora dos Animais”. No entanto, o foguete nunca foi lançado e o motivo eu sinceramente não sei ao certo.
Eu comprei um livro chamado “Coronel Lage: O mestre dos foguetes” em que grande parte das suas 237 é tratando apenas do foguete Félix. O livro apresenta todas as declarações, matérias, entrevistas e reportagens da época sobre esse lançamento que acabou ganhando um destaque gigantesco pela imprensa. A história é simplesmente complexa demais para eu tentar resumir, mas é possível que o motivo final do não lançamento tenha sido uma briga de egos dentro da ETE.
Para ilustrar, trago uma notícia do Jornal do Brasil de julho de 59 com o título: “Ciúme é o que impede voo do Félix I”, relatando que ““um porta-voz do Curso de Armamento da ETE” teria dito que “se não fosse o ciúme que a construção do Félix I provocou entre os oficiais do Estado-Maior do Exército, o foguete já teria sido lançado há muito tempo”.
Essa história é tão icônica que eu me senti obrigado, na nossa realidade alternativa, a realizar finalmente o lançamento censurado, e assim dei o nome do nosso gatonauta de Félix.
A Fábrica do Galeão foi de fato um hangar enorme onde hoje é o Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, e produziu aviões estrangeiros licenciados. Na década de 30, havia um acordo com a empresa alemã Focke-Wulf que levou à construção de 40 biplanos e 25 bombardeiros mas, quando o Brasil entra da Segunda Guerra, a parceria com a Alemanha é quebrada e a Fábrica passa a construir aviões americanos da empresa Fairchild e, na década de 50, modelos da Fokker, holandesa.
Também é verdadeira a importação dos 60 Meteoros de Gloster em 53, que chegaram pelo mar e foram realmente montados na Fábrica do Galeão. Nas minhas pesquisas encontrei um Meteoro de número 61 que foi inteiramente montado com peças sobressalentes e que está hoje exposto no Museu Aeroespacial no Rio. Isso me inspirou para criar a história desse grande assalto. Então, meus amigos, por mais absurda que pareça essa ideia de montar aviões com peças de estoque, ela é totalmente plausível e um plano desse poderia ter acontecido de verdade.
Pra finalizar, os EUA tinham realmente um programa com aviões experimentais extremos, chamados X-planes, movidos com motores de foguete, com o objetivo de alcançar velocidades e altitudes cada vez maiores em voos tripulados. Em 14 de outubro de 1947, o lendário piloto de teste Chuck Yeager foi o primeiro humano a quebrar a barreira do som voando a Glamorous Glennis, um avião experimental movido pelo motor XLR-11, o mesmo que foi importado pelo Richard.
O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.
Vozes:
Cassani por Sacani
Jayme por Lennon
Zé por Fencas
Lacerda por Marcelo Guaxinim
Richard por Pena
Jamile por Jujuba
Consultoria histórica por Willian Spengler, CA e Fencas.
Consultoria técnica por Lennon
Revisão por Sil Perez
Edição e mixagem por Felipe Reis.
Vinheta por Vitor Moreira
E a distribuição é do portal Deviante.