Este é um conteúdo em formato podcast, mas, se preferir, pode acompanhá-lo com o texto e imagens a seguir.

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Capítulo 1 – Lacerda e Richard

Passado o alvoroço, Lacerda vai falar diretamente com Richard, sem intermediários dessa vez.

– Como assim você sabia? Por que não falou nada? Richard, você faz ideia da situação que colocou a gente?

– Claro que sei, a situação que te dei um míssil de 1000km em um tempo recorde.

– Mas ele explodiu…

– Não é isso que mísseis fazem? haha

– Escuta aqui… para de gracinha… eu tenho uma reunião muito séria com o ministro da aeronáutica daqui meia hora. Eu preciso explicar alguma coisa para ele.

– Lacerda…

– Major-brigadeiro Lacerda.

– Major-brigateiro Lacerda… eu não imaginei que vocês brasileiros iriam considerar isso um fracasso. Claramente vocês não tem experiência de foguetes, pois este seria considerado um sucesso total nos Estados Unidos.

– E claramente você não tem noção da situação delicada que a gente se encontra, Richard.

– Doutor Richard. Mas tá bom, eu vou explicar. A nossa parte, que era fazer o foguete controlado, que carrega 250kg até um alvo a 1000km nós fizemos. E sinceramente, foi algo muito muito incrível, você deveria dar uma medalha para gente. É claro que ele ia explodir ao entrar na atmosfera. Um objeto oco de 15m de comprimento a 10.000 km/h se chocando com a atmosfera, não tem como.

– Isso só pode ser uma piada. Então como é que os mísseis V-2 acertavam Londres na segunda guerra, hein?

– Ah, era uma distância muito mais curta, 200, 300km, então a velocidade de entrada é muito menor também. Se o Laurare voar 300km ele não explode…

– Hum… então não dá para acertar mais longe do que isso?

– Dá sim, mas tem que separar a ogiva do resto do foguete. A chance de só a ponta sobreviver a entrada é bem maior que o foguete inteiro. Mas essa parte é com vocês, não com a gente.

Aqui eu preciso explicar uma coisa que talvez esteja confusa. O que será que o Richard quer dizer com “essa parte é com vocês, não com a gente?”.

Quando o programa espacial teve início, a maioria dos contratados eram estrangeiros que entraram no esquema idealizado por Richard de trazer professores para o ITA e ao mesmo tempo cérebros para o programa da FAB.

Mas logo começou uma discussão complexa sobre segurança nacional. Se esses estrangeiros começassem a desenvolver tecnologias de guerra para o Brasil, seria uma falha de segurança para o futuro, em que eles poderiam eventualmente retornar para seus países e revelar detalhes sobre o armamento brasileiro. Ao mesmo tempo, não havia brasileiros natos capazes de tocar o programa sozinhos, essa transferência de conhecimento estrangeiro era uma oportunidade boa demais para desperdiçar.

A solução foi criar um novo órgão, a Agência Espacial Brasileira, que seria apenas civil e poderia receber estrangeiros. Caberia a ela desenvolver todos os sistemas e componentes não bélicos, como os foguetes, motores, sistemas de controle, sensores etc, enquanto a Força Aérea e o Exército ficariam incumbidos de preparar as ogivas, explosivos, sistemas de aquisição de alvos, sistemas de mira e de detonação.

Porém, mesmo a AEB (Agência Espacial Brasileira) sendo um órgão civil, ela estaria sujeita ao comando da FAB e seria financiada também pela Força Aérea. A própria base de Alcântara, nesse momento, é uma base militar que cederia parte de suas instalações para a AEB poder fazer suas operações.

Mas Richard tinha razão, a parte que cabia à Agência Espacial tinha sido feita. O foguete Laurare, mesmo explodindo na atmosfera, tinha cumprido totalmente seu objetivo. Cabia a FAB desenvolver a ogiva que se desprenderia do foguete e faria a reentrada, para então acertar seu alvo.

– Tá, entendi agora. Mas por que você não me avisou antes? Olha só a capa do Jornal do Brasil: “Foguete Brasileiro Explode no ar, estamos indo longe demais?”

– Eu não tenho culpa que ninguém entende de foguetes, você pode explicar para eles, ou então pedir para aquele narrador, qual o nome dele, Sacani, Casani, participar de uma press conference… como fala isso?

– Coletiva de imprensa?

– É, coletiva… as pessoas ouvem ele.

Capítulo 2 – Lacerda e Zé

É curioso que aconteceu igual no futebol. Os brasileiros gostavam dos foguetes mas não entendiam nada. Era preciso começar a educar as pessoas, incluindo os militares de toda a cadeia de comando.

A coletiva de imprensa foi um sucesso. Além do Lacerda, representando a FAB, estava o Jayme como Diretor de Lançamento e o Sergio Cassani como… intermediador para assuntos de foguete.

Aos poucos, a imagem de fracasso foi se transformando em sucesso e motivo de orgulho. Afinal, o Brasil havia lançado em tempo recorde um foguete suborbital de respeito.

Depois do ano novo, Lacerda agenda outra reunião com Richard, mas dessa ele conseguiu escapar. Mandou o Zé no lugar:

– Olha só, parece que você ficou mais queimado do sol, Richard?

– Ahh que engraçado… eu também preferia não tá aqui… major. Qual a boa?

– Hoje eu tô de bom humor. Depois que a gente desfez aquele imbróglio todo, da explosão e tudo mais, as coisas começaram a melhorar, vamo começar 53 com o pé direito. 

– Opa!

– O ministro Nero Moura autorizou a expansão do Centro de Alcântara e a contratação de mais 30 engenheiros.

– Aeee major, aí sim, nunca duvidei do senhor.

– Mas claro que tudo tem seu preço, não é mesmo? O alto comando concorda que toda a parte da ogiva tem que ser feita internamente, porém… eles entendem que o sistema de desacoplar a ogiva é responsabilidade da AEB. Acho que é razoável, não acha?

– É, tá, faz sentido. A gente já tem uns desacopladores que funcionam bem, é só fazer maior.

– Perfeito, então precisamos de um próximo lançamento para fazer essa prova de conceito. Vamo lançar um pedaço de concreto simulando a carga explosiva e fazer ele chegar até o chão… sem explodir dessa vez.

– Hum… major… se me permite. Assim, a gente até pode lançar um bloco de concreto e tudo mais, mas não vai ser uma oportunidade perdida? Não seria mais interessante a gente usar esse lançamento para mandar algo útil pro espaço? Sabe, cada lançamento custa muito dinheiro.

– Não sei, rapaz, eles pediram só uma prova de conceito. Você tem alguma sugestão?

– Olha… major… a gente andou pensando sobre isso lá no IPD. O pessoal tá desenvolvendo uma câmera fotográfica capaz de aguentar o vácuo do espaço, e que poderia tirar fotos da Terra lá do alto. A câmera é muito grande e pesada, por conta do isolamento, não cabe no Arapuá… mas cabe certinho no Laurare. Imagina só, essas primeiras fotos do espaço saindo nos jornais. E claro que a gente precisa recuperar a câmera para revelar as fotos, então já testamos o desacoplador.

– É Zé o seu nome né… 

– Uhum…

– Não tem nenhuma chance disso dar errado não né?

– O desacoplador? Não, tá tranquilo… pode confiar major, vem na minha…

A construção do Laurare número 2 começou a todo o vapor, mas já havia outro foguete na fila, o Arapuá 5, encomendado pelo Instituto de Meteorologia. E é claro que o Jayme deixou para a última hora pra fazer o registro da missão. Lá se foram ele e o Zé correndo desesperados para o ENROSCO, ou “Escritório de Normativas e Registros Orbitais, Sistemas e Controles”:

Boa tarde Jayme… nossa, que surpresa vê você aqui 5 minutos antes de fechar.

– Jamile… boa tarde.. ahhh … tá aqui ó, autorização de voo, área de isolamento…

– Uhum… certo… instrumentos de operação?

– Aqui, aqui… ops… aqui ó!

– E o nome da missão?

– Ahh não… esqueci de novo.

– Eu tenho um nome.

– Não, Zé, sem chance, pode deixar que dessa vez eu escolho. Éeeee…

– 2 minutos.

– Jamile, você para com essa tortura psicológica.

– Meu querido, chama relógio e ele funciona mesmo quando eu não to olhando pra ele.

– Tá, tá, deixa eu pensar aqui… éeeee… Meteoro… sabe, uma piadinha com Meteorologia…

– Tem certeza?

– Ahh não, que nome merda… ajuda Jamile.

– Ei, você não quer nem saber minha sugestão?

– Não… já imagino o que vai vir, prefiro a sugestão da Jamile.

– Hã, deixa eu ver, que tal “Seis e Quinze”… que é a hora do meu ônibus e eu já tô fechando.

– Hahaha, gostei.

– Não, sem chance, vocês tão acabando com nosso foguete.

– Se você não falar nada em 15 segundos vai se chamar “Sem Nome”.

– Não! calma… éeeee. Ahh droga, tá Zé, fala o seu, vai.

– Anota aí Jamile: Paçoca. É o nome da minha tartaruga.

E assim, no dia 3 de abril de 53, a Paçoca fez um lindo voo, subindo até 218 km, bem acima da Farofa, com 110km. O motivo é que, além do tanque de alumínio, instalaram um novo motor de combustível líquido, mais eficiente e com mais empuxo, desenvolvido durante o último ano pelo IPD. O investimento em pesquisa, vigorosamente defendido pelo Richard, estava dando frutos.

Quase 4 meses depois, no dia 21 de julho, todos os olhares estão atentos na plataforma do Laurare onde o Curioso se ergue imponente, quer dizer, nem tanto imponente. A nova câmera é um cilindro branco que foi adicionado logo abaixo do cone frontal, estendendo-se como um pescoço por um metro e meio, até se encontrar com o resto do corpo do foguete, através de um desacoplador. Do meio do cilindro projetam-se dois círculos de vidro, as duas lentes da câmera, que mais parecem olhos. O aspecto final é de um boneco de Olinda desengonçado, com chapéu pontudo e olhos penetrantes. Por ser um foguete que vai observar a Terra lá de cima, tinha que chamar Curioso.

Às 9:35 da manhã o Curioso dispara para o céu, fazendo um arco para Leste. Mas, diferente do voo do Majestoso, esse foi um pouco mais para o Sul, para sobrevoar a costa brasileira e cair sobre a terra. Se caísse no mar, seria muito mais difícil de recuperar a câmera e teria o risco da água estragar o filme.

O foguete chega a 234km de altura, atinge o espaço e começa a retornar para a Terra. Aos 100km o desacoplador é acionado com sucesso, separando a “cabeça” do resto do corpo. Agora começa a fase crítica. O cone frontal faz a entrada na atmosfera: a temperatura dispara chegando a 800 graus em segundos e faz o cone brilhar num vermelho intenso. Essa é a única parte do foguete que é feita de aço. Se fosse alumínio derreteria a essa temperatura. Em apenas 10 segundos a velocidade é reduzida de 7.400 km/h para 1.400 km/h. Mas dessa vez, a telemetria não cai e a cápsula sobrevive à reentrada. Sucesso.

Um jipe do exército recupera a câmera numa colina perto de Guaramiranga, ao Sul de Fortaleza.

Ao todo, a câmera tirou 240 fotos. A maioria está tremida, borrada ou mostra apenas o vazio do espaço. Mas tem umas 20 fotos absolutamente impressionantes, retratando a costa brasileira reluzindo sob o sol. É possível ver a curvatura da Terra e a fina espessura da atmosfera. São fotos tão deslumbrantes que estampam a capa de praticamente todos os jornais do dia seguinte. O Brasil conseguiu mais um marco importante no programa espacial.

Capítulo 3 – Lacerda e Jayme

As fotos chegam no café da manhã a centenas de milhares de brasileiros e se tornam o assunto do almoço nos escritórios. Os militares ficam satisfeitos e a AEB começa a preparar um novo projeto. Em setembro, porém, Lacerda marca uma nova reunião com Richard, mas é Jayme que aparece.

– Jayme, meu garoto prodígio. Eu sei que a gente tá criando a nova cápsula mas, acho que temos uma oportunidade aqui.

– Ótimo senhor, major, sou todo ouvidos.

– O alto comando tá querendo saber até onde podemos ir em termos de distância. Eles querem desenvolver um sistema de mira, mas precisam ter uma noção do máximo que o sistema tem que alcançar. Não querem fazer algo que vai ficar obsoleto em pouco tempo.

– Ah, perfeito, senhor. Eu consigo facilmente calcular a trajetória máxima a partir de um foguete hipotético. Vamos supor um motor melhorado, com, digamos, impulso específico de 270 segundos, e uma massa inicial de, sei lá, 30 toneladas…

– Calma, calma, garoto. Acho que você não tá entendendo. Eu tenho certeza que você pode fazer esses cálculos mais rápido do que eu consigo dizer. Mas eu disse para eles que estimar isso era muito muito difícil, que tinham muitas variáveis, curvatura da terra, campo magnetosfoférico e tudo aquilo que você tentou me explicar uma vez.

– Mas, senhor, acho que eles querem só um alcance aproximado. E mesmo que eles queiram algo preciso, se me der duas semanas eu posso calcular tudo isso… dá trabalho mas é possível.

– Claro que consegue Jayme, mas eles não sabem disso. Eles tão achando que o melhor jeito de descobrir é a gente lançar outro foguete.

– Hum… outro foguete?

– É nossa oportunidade de pegar mais verba pro programa espacial e financiar as coisas que a gente quer fazer de verdade, percebe?

– Claro, major, nossa, mas… eu não sabia que o senhor tava tão engajado na AEB, senhor.

– Digamos que… a FAB é um vespeiro e a gente tá querendo trazer o mel pra colmeia certa.

Jayme pensou em comentar que vespas não fazem mel mas achou que, naquele momento, aquilo não seria exatamente relevante.

– Jayme, que foguete a gente pode fazer para chegar o mais longe possível com o que já temos desenvolvido?

– Senhor, podemos fazer algo que o Richard idealizou faz tempo. Colocar o segundo estágio do Arapuá em cima do Laurare e lançar um foguete muito mais poderoso, de 2 estágios, senhor.

– E isso vai ajudar o programa espacial?

– Sim, senhor, muito. Vamos poder testar novos sistemas de navegação e rastreio e obter dados importantes de condições extremas, fundamentais para um programa orbital.

– Ótimo garoto, diz pro americano que esse vai ser meu presente de aniversário para ele.

– Major… major, você é o cara!!!

Jayme perde completamente o protocolo, dá um abraço no Lacerda e começa a pular. No primeiro momento o major se deixa levar, e após darem uma meia volta pulando, alguma sanidade retorna ao comandante que se desvencilha.

– Garoto, garoto… não seja atrevido.

No dia seguinte, todos os engenheiros param tudo que estão fazendo e passam a se dedicar totalmente ao desafio de integrar o Arapuá com o Laurare. O nome do novo foguete foi fácil “Arapurare”… meio abelha, meio marimbondo.

Quando o Jayme contou toda a reunião que tivera com Lacerda, incluindo a parte final do “garoto, não seja atrevido”, aquilo virou uma piada interna imediatamente:

– Já vou começar a usinar o atuador amanhã.

– Tem certeza Zé? Não seja atrevido.

 

– Quem resolveu colocar um sensor de pressão na linha de peróxido, hein? Que atrevido!

Foram 6 meses para fazer a integração e no dia 12 de março de 54 lá estava o Arapurare 1 Atrevido na plataforma.

Era difícil saber quão longe ele poderia chegar pois havia uma série de melhorias que os pesquisadores e engenheiros tinham criado desde o primeiro lançamento do Majestoso.

A começar pelo motor. A cada novo protótipo de teste a equipe do Zé ou removia peso desnecessário, ou ampliava os bicos injetores, ou aumentava a pressão na câmara de combustão. Depois desse um ano e quatro meses, o motor já não se parecia mais com aquela cópia do XLR-41.

Os tanques de alumínios também foram atualizados. A nova técnica usava barras compridas, chamadas longarinas, que passavam por dentro da estrutura para resistir aos esforços verticais. Isso quer dizer que as paredes dos tanques não precisavam mais aguentar tanta força, apenas o suficiente para segurar os líquidos, e podiam agora ser bem mais finas e leves.

Os sistemas de controle eram aprimorados a cada novo foguete e também estavam bem mais leves.

Minutos antes do lançamento, eles faziam apostas:

– Uma rodada no boteco da Tereza que vai passar de 2.000 km. E você Zé, o que acha?

– Ah, sei lá… acho que o segundo estágio vai dar problema e não bate 1.500km. E você comandante?

– Eu realmente espero que esse segundo estágio não dê problema, viu senhor José Alves. Vou de 2.300. Richard?

– Éeee vai funcionar, 3.000.

– Uau, que otimismo. Assim que eu gosto. Jayme?

– 4.385km, considerando um vento de noroeste.

No final, ninguém sabe quem ganhou porque o Atrevido simplesmente foi longe demais e saiu do radar da Barreira do Inferno. A telemetria caiu minutos depois dele alcançar a altura impressionante de 1.160km, um recorde brasileiro. Jayme jura que venceu porque ele fez as contas a partir dessa altura e disse que o foguete chegou a mais de 4300km, mas ninguém estava sóbrio o suficiente nessa hora para checar as contas. Foi claramente um resultado muito além do que a maioria estava esperando, e o Richard resolveu o problema:

– Tereza, pode por a rodada na minha conta.

É claro que outro lançamento era necessário, e dessa vez a FAB pediria para a Marinha colocar um navio no meio do Atlântico, equipado com antenas de rastreio, para monitorar o voo do novo foguete, o Arapurare 2.

Nessa época o Brasil acumulava 9 lançamentos consecutivos com sucesso, algo que só poderia ser explicado pela mandinga do “Vai Filhão”, que estampava todos os foguetes. As narrações do Cassani eram repetidas na TV e no rádio, e começaram a surgir as primeiras caravanas para assistir aos lançamentos ao vivo. No começo, não deixavam entrar na base, que, afinal, é militar, mas, em algum momento, o Lacerda permitiu criarem uma área isolada com vista para as plataformas de lançamento.

A Estrela, empresa tradicional de brinquedos, lançou uma linha de foguetes de pelúcia que vendia como água.

Os livros de ficção científica triplicaram em tiragem nos últimos 3 anos, sem contar a quantidade de revistas sobre o tema que pipocavam nas bancas.

Todo semestre, o ITA recebia mais candidatos que nos anteriores. Muitos jovens sonhavam em fazer foguetes. Parecia até o passo natural: se Santos Dumont era o pai da aviação, o Brasil tinha que ser o pioneiro do espaço.

Claro que a paixão nacional ainda era o futebol e a Copa do Mundo de 54 estava prestes a começar. Mas com a derrota do Brasil para a Hungria nas quartas de final por 4 a 2, parecia que o espaço podia trazer mais alegrias que o futebol.

Então, no dia 2 de agosto de 54, o cruzador Tamandaré estava a postos no meio do Atlântico, a 4000km de Alcântara, pronto para captar o sinal do Arapurare 2 Formidável.

E põe formidável nisso. O foguete subiu para 1066km de altura e, na descida, ultrapassou em muito o cruzador brasileiro e quase chegou na África. Ainda assim, ele se desintegrou na atmosfera dentro do alcance das antenas do Tamandaré, que registrou uma distância de 4800km, superando até mesmo as expectativas do Jayme. Até a derrota no futebol ficou esquecida diante do voo do Formidável. Parecia até que Deus era brasileiro, e ele viajava de foguete.

Três dias depois, porém, iria ocorrer algo no Brasil que ofuscaria completamente aquele lançamento.

Capítulo 4 – Carlos Lacerda

O sol mal havia raiado na manhã de 5 de agosto de 54 quando o som de disparos ecoou pela rua Tonelero, no Rio de Janeiro. A cidade, que ainda dormia, não imaginava que o atentado contra o jornalista Carlos Lacerda tinha acabado de semear o caos.

Conhecido por sua retórica afiada e por não medir palavras, Carlos Lacerda havia se tornado um dos maiores antagonistas do presidente Getúlio Vargas. Sua coluna no jornal “Tribuna da Imprensa” era uma alfinetada constante contra o governo, e suas palavras encontravam eco em muitos lares brasileiros.

Naquela fatídica madrugada, Lacerda voltava pra casa quando foi surpreendido por tiros em sua direção. A tentativa de assassinato, no entanto, não alcançou seu alvo principal, mas acabou tirando a vida do major Rubens Vaz, um oficial da Força Aérea Brasileira que fazia sua segurança.

O ataque desencadeou uma série de eventos que sacudiram o país. A FAB, em luto e furiosa, exigia respostas e justiça. O episódio reverberou nos corredores da AEB, e o clima de tensão era palpável. Carlos Lacerda, mesmo ferido, não se calou e apontou diretamente para Vargas como o responsável pelo atentado. A acusação inflamava ainda mais os ânimos, e o país parecia à beira de um abismo.

Neste cenário turbulento, o major Henrique Lacerda, parente distante de Carlos, mas com um sobrenome que agora carregava o peso da controvérsia, tentava manter o foco no programa espacial e evitar uma crise política, ou, ainda pior, que as próprias forças armadas entrassem em conflito.

O que estamos construindo é maior do que qualquer disputa política.” dizia ele para o alto comando da FAB.

Mas as palavras do major-brigadeiro pareciam ecoar em um vazio. O atentado na rua Tonelero tinha aberto uma ferida profunda na nação, e a desconfiança se instalara em cada esquina, em cada conversa.

Os dias que se seguiram foram de incerteza e tensão. A pressão sobre Vargas aumentava, e a FAB, ferida em sua honra, não dava sinais de que aceitaria menos do que a verdade.

Então, no dia 24 de agosto, a notícia abalou o Brasil: Getúlio Vargas, o presidente da República, havia tirado a própria vida. Seu suicídio, acompoanhado de uma carta que se tornaria histórica, era um último ato de resistência, uma tentativa de sair do tabuleiro político sem dar a vitória a seus adversários.

O país parou, e o programa espacial, que tanto lutava para se manter à margem da política, viu-se novamente envolto em um manto de incerteza.

Epílogo

Você ouviu o terceiro episódio de “O Brasil vai pro espaço”, produzido pelo Scicast.

Os eventos narrados aqui, embora fictícios, utilizam como base fatos e pessoas reais da história do Brasil e do mundo. Em especial, neste episódio:

A Agência Espacial Brasileira é um órgão bem mais recente na história do brasil, sendo fundada em 1994 quando o programa espacial ganhou um caráter civil. Antes dela, existia uma porção de órgãos e departamentos com uma hierarquia toda confusa e burocrática. Eu queria colocar a AEB lá no começo, para simplificar a narrativa e ter um nome forte de referência, assim como a NASA é para os americanos. E eu acho que consegui uma boa desculpa para justificar a criação da AEB já em 51.

A primeira foto do espaço foi tirada em 1946 por um foguete V-2 modificado lançado pelos Estados Unidos. Eu não achei registro da primeira foto do espaço por um foguete brasileiro, mas acredito que tenha sido no projeto sonda, duas ou três décadas depois.

Nas minhas pesquisas sobre a década de 50 encontrei um anúncio da Estrela de dezembro de 53 com um urso gigante sobre o planeta Terra com uma plaquinha dizendo “Bichos de Pelúcia. São maravilhosos”. Seria muito plausível que o urso desse anúncio virasse um foguete no nosso Brasil aficcionado pelo espaço.

Anúncio original da estrela de 03/12/1953.

Sobre se Santos Dumont é o inventor do avião, eu acho que hoje temos evidências que apontam que não, mas isso é completamente irrelevante para a nossa história pois, naquela época (e ainda hoje), o brasileiro tinha plena convicção de que ele era. E só para deixar claro, eu sou muito fã de Santos Dumont e acho que ele foi um gênio muito brabo, um dos grandes da história.

Esse trecho final do episódio, sobre o atentado à vida de Carlos Lacerda na rua Tonelero até a morte de Getúlio, é completamente verdadeiro, incluindo a morte do major Rubens Vaz e a crise com a FAB. São eventos marcantes na política brasileira que eu não poderia ignorar na nossa narrativa alternativa.

Aproveito esse espaço para responder uma pergunta que tenho recebido muito, se todos esses dados técnicos que eu trago nos episódios (tipo de combustível, pressão da câmara de combustão, a rotação das turbo-bombas, etc) se tudo isso é verdade mesmo ou um floreio para o episódio. Gente, é tudo verdade mesmo. Acho que essa é a graça dessa série, poder contar uma história emocionante, com personagens, reviravoltas e tudo mais, e ao mesmo tempo ter um nível técnico extremamente profundo, passar um monte de conhecimento real sobre foguetes e sobre o espaço. Talvez essa seja a vantagem de ser um físico e roteirista.

O texto, narração e direção deste episódio foram feitos por mim, o Pena.

Vozes:

Cassani por Sergio Sacani

Jayme por Lennon Biancato Ruhnke

Zé por Fencas

Lacerda por Marcelo Guaxinim

Richard por Pena

Jamile por Juliana Vilela (Jujuba)

Engenheiro extra por Felipe Reis

Consultoria histórica por Willian Spengler, Cesar Agenor F. da Silva e Fencas.

Consultoria técnica por Lennon

Revisão por Silvana Perez

Edição e mixagem por Felipe Reis.

Vinheta por Vitor Moreira

E a distribuição é do portal Deviante.