O gênero de Zumbis e mundo pós-apocalíptico foi amplamente utilizado nos últimos anos das mais diversas abordagens, seja mostrando como a sociedade pode se reconstruir, a relação de amor entre pai e filha, que as pessoas talvez sejam piores que os monstros, que o zumbi é uma metáfora pro capitalismo e até, a minha favorita, o gênero de pós-apocalipse sendo uma fuga do capitalismo.
Outubro, mês de Halloween, e o que já é tradição: escrever um texto sobre terror. Neste ano vou abordar: mundo pós-apocalíptico passando por esse interesse que temos sobre o tema, de como ele é abordado em algumas obras, a crise climática e amor.
O medo (ou fascínio) de o mundo acabar
Acho que o tema pós-apocalíptico ficou um tanto quanto comum quando em 2020 vimos com os nossos próprios olhos, o que talvez seja a maior crise mundial que a nossa geração irá viver (assim espero), a pandemia de COVID-19. Os grandes centros mundiais vazios, devido ao período de isolamento social, o cenário era digno de um filme de zumbis. O negacionismo por parte de alguns, inclusive de governantes, era digno de um filme de terror clichê onde o personagem faz algo e você pensa “ninguém em sã consciência agiria assim.”
O que eu confesso ser o mais bizarro de tudo — pessoas morrendo aos montes, a perspectiva de uma vacina ainda distante e a gente tinha que ir trabalhar, o capitalismo não podia parar. Lembro que lá em 2014 vi uma série, que adoro, chamada The Strain (2014/2017, FX) onde um vírus que transformava as pessoas em Vampiro se espalhava pela cidade de Nova York e as pessoas agem normalmente durante o dia.
A frase “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.” foi dita por Mark Fisher em seu livro Realismo Capitalista (2020, Ed. Autonomia Literária). Para Fisher:
O realismo capitalista não pode ser confinado à arte ou à maneira quase propagandística pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação – agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação.
Por isso, em séries, jogos, filmes e livros com temática de fim de mundo as lógicas capitalistas são repetidas, por exemplo com grandes empresas se beneficiando com o final do mundo, como ocorre no livro “Parábola do Semeador” de Octavia Butler. Outro exemplo: como governos usam o negacionismo como estratégia política para se manter no poder e beneficiar os seus grandes financiadores, como ocorre no filme “Não Olhe pra Cima” do Adam McKay.
Mas qual motivo esse cenário nos fascina tanto?
No episódio piloto de The Walking Dead (2010/2022, Canal AMC), o personagem principal, Rick Grimes, está andando de cavalo no que um dia foi a cidade de Atlanta, agora abandonada sem ninguém, ou ao menos um ser vivo. Até que dobra a esquina… caos, uma horda de zumbis vem pra cima dele. Caos talvez seja a palavra chave para imaginar um mundo onde não exista governo ou qualquer outra organização, fascine a mente dos mais jovens.
Em matéria da Band Multi escrita por Igor Alexandre Capellato (link)
O ser humano admira-se pelo caos, não porque admira a morte, a destruição, mas porque esses cenários trazem uma história de algo que se perdeu mas que foi superado. No lugar da guerra, da pandemia, os sujeitos começam a surgir: o coletivo começa a dar espaço às identidades. É nesse cenário que nascem os heróis, as personalidades… é nesse cenário que nos permitimos sermos nós mesmos.
Essa fantasia de um mundo destruído habita o imaginário, ao assistir The Last of US (2023, HBO) esperamos explorar todo um universo onde a sociedade acabou, tudo que sobrou não passa de uma vaga lembrança de que um dia foi idealizado. Nada mais empolgante aos olhos de alguém que não vive no nosso mundo que ver um avião caído e imaginar como no passado aquilo podia voar.
Nos identificamos com os seres humanos que estão naquela situação e nos desperta interesse pelas atitudes que eles irão tomar perante as medidas extremas e empatizamos, ou não, com o que ocorre. Lembram do final de The Last of US (2023, HBO), não vou dar spoilers, mas são essas questões éticas que nos fazem ter interesse.
De acordo com Teixeira (2013):
qual o ambiente do filme de zumbi? Trata-se essencialmente de um mundo devastado, caótico, onde as instituições e a civilização mesma desmoronaram e os humanos remanescentes lutam pela sobrevivência, cada um por si ou em pequenos bandos, sem lei e sem princípios. Esse cenário pós-apocalíptico, porém, não é exclusivo do filme de zumbi – na verdade, é muito comum na ficção científica. Curiosamente, os filmes pós-apocalípticos, em sua esmagadora maioria, não propiciam um humor depressivo. Ao contrário do que se poderia esperar, os personagens, que viram tudo o que conheciam ruir e assistiram à morte dos seus entes queridos, parecem mais propensos à mania, dispostos a praticar atos de coragem e heroísmo.
Voltando para The Walking Dead (2010/2022, AMC), agora na segunda temporada o grupo principal está bem estabelecido em uma fazenda. Até que uma série de infortúnios leva um personagem de fora do grupo a ficar, inicialmente contra a sua vontade, na fazenda. Caso ele saia de lá, pode, de alguma maneira, representar um risco para todos. Rick Grimes e seus companheiros discutem se é ético matar esse personagem a sangue frio, já que “representa um risco”, até que o Dale (membro mais velho do grupo) fala “Ainda somos humanos?”
Acho que até aqui fica claro como a visão pós-apocalíptica pode refletir questões éticas que vivemos atualmente. Com a pandemia de COVID-19, o que antes parecia uma realidade distante hoje é algo mais próximo do que imaginamos. Somando-se isso à perspectiva da crise climática que cada vez mais nos rodeia. No momento que escrevo esse texto o Brasil é um dos locais mais quentes do planeta (link).
Voltando para o livro de Fisher, a mudança climática ilustra bem a realidade capitalista em que vivemos. Os recursos não são infinitos e o nosso planeta não é algo de que o Capital pode, a qualquer momento, se livrar. Pensa no final do já citado “Não Olha pra Cima” onde os multimilionários que são, responsáveis pelo negacionismo e caos do fim do mundo, simplesmente compram a passagem para outro planeta. O mesmo fato acontece também no Ep 01 da Temp 3 de Love, Death and Robots.
Usando o filme Wall-e (2008), Fisher explica a visão fantasiosa de que a expansão infinita do capital é possível e de certo modo essa expansão extingue o trabalho humano. Na nave axiom, todo trabalho é realizado por robôs.
De acordo com o autor:
A catástrofe ambiental ainda figura no capitalismo tardio apenas como um tipo de simulacro e suas reais implicações são traumáticas demais para serem assimiladas pelo sistema. (…) o capitalismo está na verdade destinado a destruir as condições ecológicas das quais depende o ser humano. A relação entre capitalismo e o desastre ecológico não é acidental, e nem uma mera coincidência: ‘a necessidade constante de um mercado em expansão’ por parte do capital, seu ‘fetiche pelo crescimento’, mostra que o capitalismo, por sua própria natureza, se opõe a qualquer noção de sustentabilidade.
Alívio com o fim do mundo (ou seria com o final do capitalismo)
Acho que até aqui ficou claro o fascínio que temos de ver pela ficção com questões éticas e extremas a que o fim do mundo pode levar, isso tudo sobre a sombra do que foi a pandemia de COVID-19 e o que pode vir a ser da crise climática. Nessa segunda parte vou abordar o fim do mundo como uma saída ou uma libertação de todas as amarras que o capitalismo nos coloca.
O anime Zom 100 (Netflix, 2023) traz consigo uma proposta bem diferente do que já foi abordado do apocalipse zumbi. Sendo os zumbis por muito tempo uma representação do capitalismo, com seu principal expoente nos filmes de George Romero e a mais recente regravação de Madrugada dos Mortos (2004) de Zack Snyder, a animação japonesa mostra o total oposto.
Em Zom 100 o nosso personagem principal, Akira, está em uma jornada exaustiva de trabalho, em um local em que o abuso psicológico faz parte do dia a dia da empresa, fazendo com que a sua vida gire em torno do emprego.
Akira não tem tempo para jogar, sair com os amigos, apreciar uma boa refeição, desenvolver um relacionamento amoroso ou até mesmo de arrumar a sua casa. Até que, misteriosamente, zumbis chegam, o mundo acaba e ele fica aliviado pois não precisa trabalhar, além da liberdade que o apocalipse vai lhe proporcionar.
Voltando ao artigo de Teixeira (2013):
a ideia de que pessoas comuns, cuja vida se divide entre o trabalho cansativo e a rotina entediante, encontram no fim do mundo a chance de iniciar uma vida nova, diferente e emocionante. Para tais sujeitos, o mundo devastado pela guerra nuclear ou por um ataque de zumbis não é um cenário depressivo, e sim entusiasmante. Afinal, onde aquele que se considera tolhido pelas convenções, normas e instituições encontraria um melhor lugar para realizar os seus desejos senão num mundo pós-apocalíptico, sem Estado, sem Lei e sem instituições?
“Então é comunismo?” Foi a frase dita por Joe, personagem de The Last of Us (2023, HBO) ao chegar na comunidade do irmão, quando a líder dessa comunidade explica a dinâmica de divisão e trabalho que eles adotaram para mantê-los unidos em meio ao caos daquele mundo.
Voltando para The Walking Dead (2004/ 2019, Ed. Image), dessa vez nas HQ ‘s escritas por Robert Kirkman, já bem lá por final onde aparecem diversas comunidades e que tentam construir novamente a humanidade ao moldes do que eram antigamente. Um dos personagens que mora em uma cidade em que permaneceu a lógica do mundo velho questiona o motivo de seu trabalho braçal pesado do dia a dia matando zumbis, colocando sua vida em risco para dar conforto há uma pequena parcela da população que vive sobre o luxo de tudo que aquele mundo pode dar.
Esse tema permeia outra obra de Kirkman chamada Oblivion Song (2018/2022, Ed. Image), em que mostra um incidente misterioso no nosso mundo que faz com que algumas pessoas sejam transportadas para um mundo cheio de monstros. Na história do quadrinho acompanhamos o personagem principal trabalhando no resgate dessas pessoas.
Até que o nosso personagem principal percebe que algumas das pessoas que ele resgata não querem voltar para o “mundo normal”. O motivo — nesse mundo novo, apesar de perigoso, todos são iguais e lutam juntos por objetivos básicos: a sobrevivência dos seus iguais. Nesse novo mundo não existem dívidas, preconceito ou diferenças de classe, é uma lógica simples de vida, que dá para aqueles que lá estão mais tranquilidade e silêncio.
No livro “Humanidade: Uma história otimista do homem” (2019, Ed. Critica) o escritor holandês Rutger Bregman relata que no período de colonização das Américas não existem relatos de algum povo originário que, ao deixar suas terras querer, voluntariamente viver na Europa, que, pelos próprios europeus, era considerado o “mundo moderno”. Porém quando o oposto ocorre, um europeu tem a oportunidade de viver entre os povos originários, esse nunca desejava voltar para o “mundo moderno” na Europa.
Aqui vale voltar para a crise climática. Talvez os povos originários, com sua sabedoria, já sabiam que o planeta não conseguiria sustentar o modo de vida que adotamos nos últimos séculos. Talvez o mundo moderno era o que eles viviam e a lógica colonizadora acabou com isso. Em “Ideias para adiar o fim do mundo” , Ailton Krenak aborda mais profundamente esse tema.
As historia de pós-apocalipse também nos dá a oportunidade de ver o mundo sem essa pressão heteronormativa, dando oportunidade de viver um amor. Voltando às HQ ‘s de The Walking Dead, uma das personagens tem dificuldade de aceitar que está se envolvendo romanticamente com uma pessoa do mesmo sexo, até que alguém fala “o mundo acabou, você acha mesmo que as pessoas se importam com quem você escolheu amar?”
Talvez a melhor representação recente que temos disso seja o episódio 03 de The Last of Us “Long, Long Time”, que mostra o desenvolvimento da relação entre dois homens, Bill e Frank, em meio ao caos e apocalipse em que aquele mundo está.
Bill e Frank conseguiram, à sua maneira em maio ao mundo devastado, construir a sua relação e ver a beleza nas pequenas coisas que conseguiram com esse mundo, seja ao apreciar uma boa música ou comer um morango. É uma sorte encontrar alguém enquanto tudo está em caos ou uma injustiça, pois foi preciso o mundo acabar para que isso pudesse ocorrer.
Acho que é isso, feliz Halloween!
Referências
Capítulo 1 do livro “Realidade Capitalista” de Mark Fisher disponibilizado pelo site Outras Palavras.
https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/para-desvendar-a-cilada-do-realismo-capitalista/
TEIXEIRA, Marcus do Rio. Por que será que gostamos tanto dos filmes de zumbis?. Cogito [online]. 2013, vol.14 [citado 2023-10-09], pp. 12-15 . Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792013000100003
Rutger Bregman – Humanidade: Uma história otimista do homem, 2019, Ed. Crítica.