– Estou decepcionada com a sociedade.
Esta frase pode ser bem comum nos dias de hoje, com pandemia e descasos, mas vindo da Luiza, uma criança de 9 anos que conheço desde que nasceu, me despertou a curiosidade (e uma certa dose de preocupação).
– O que aconteceu, filha?
– Vi um vídeo de um castor escovando os dentes com uma escova gigante!
– Mas ele estava cuidando dos dentes, é uma coisa boa não?
– Se tivesse uma escova daquele tamanho eu ia escovar bem mais rápido.
– Mas ela nem ia caber na sua boca.
– É verdade…
A decepção dela com a sociedade morava no fato de não existir uma escova maior para ela poder terminar mais rápido sua escovação. Indignação justa e perfeitamente compreensível, diga-se de passagem.
Mas esse diálogo só conseguiu existir por dois motivos.
O primeiro é porque ela se sente à vontade para começar uma conversa com um adulto, qualquer que seja o assunto.
Quando deixamos uma criança livre para elaborar seus próprios pensamentos – melhor ainda se isto for incentivado – em algum momento ela vai voltar para confirmá-los. É nesta hora que entra a mediação, o adulto, que vai checar se o conhecimento produzido pela criança é válido ou não.
O segundo motivo para o diálogo ter ocorrido é o interesse genuíno do mediador (já explico esse negócio de mediação) pela questão levantada pela criança. Normalmente os diálogos com crianças são encerrados com “Que gracinha (risos)” ou “Para de bobagem (risos)”.
Destaco o “risos” no final da frase porque, quando encerramos o diálogo assim, estamos rindo DA criança e não COM ela. Desta forma você fecha a comunicação e ela nunca mais vai confirmar nenhuma dúvida com você. Levantando este ponto só pra deixar claro: não é proibido se divertir com a molecada, fechou?
Voltando. Estou bem longe de ser um profissional de educação, sou um amador, no sentido bem clichê mesmo, de amar o assunto. Então sempre fui assistindo, escutando e lendo muita coisa a respeito do tema e agora entrei no mundo do Lev Vygotski – obrigado Debbie!
De forma bem resumida, a situação com a Luiza ilustra a linha de pensamento dele. Nosso conhecimento é construído pela exploração do ambiente e pelas interações humanas mediando essa construção – olha a mediação aqui. E, a partir disso, construímos representações para armazenar, reproduzir e compartilhar este conhecimento.
Dito de outra forma: uma escova gigante poderia me fazer escovar os dentes mais rápido porque vi um vídeo mostrando isso (explorei o ambiente), mas ela provavelmente não caberia na minha boca (conversei com outra pessoa) então não vai funcionar.
Esta linha de pensamento do Vygotski complementa bastante o que coloca Jean Piaget, um pesquisador mais influencer na educação.
Piaget entende que o desenvolvimento mental é feito em um processo constante de equilibrar conhecimentos existentes e novas informações adquiridas pela criança. Enquanto houver este desequilíbrio, o conhecimento não avança. Quem aí lembrou da Teoria do Flow?
Novamente, em outras palavras: tenho que escovar os dentes (conhecimento existente) e descobri que existe uma escova gigante (informação nova) para fazer isso mais rápido, agora preciso saber se funciona, porque talvez ela não caiba na minha boca (busca do equilíbrio).
Seja com a lente de Vygotski ou de Piaget, as duas formas de entender a situação não alteram a provável consequência: o conhecimento vai avançar porque o problema de escovar os dentes mais rápido ainda não foi resolvido. Ou simplesmente este problema será desconsiderado em relação a outros bem mais importantes – aprender a patinar, por exemplo.
Lente por lente, sou mais #TeamVygotski nessa.
Acredito que não devemos desprezar a influência do ambiente no aprendizado, ouso dizer até que ele é determinante para isso.
Burrhus Frederic Skinner – vulgo Skinner – foi um psicólogo americano que conduziu experimentos comportamentais com diversos animais, mas ele ficou famoso mesmo pelos pombos.
Em uma de suas experiências ele montou grupos de pombos em que uns eram alimentados em horários fixos e outros em horários aleatórios. Depois de algum tempo ele começou a notar padrões de comportamento repetitivos nos pombos, independentemente do horário em que eram alimentados. Alguns moviam a cabeça de cima para baixo, outros giravam na gaiola, outros batiam asas… e logo após o ritual eles procuravam a comida, como se o comportamento estivesse realmente associado à recompensa.
Em linhas gerais, a tese é de que boa parte do nosso comportamento é determinado pelo ambiente e, portanto, previsível até. É um pensamento meio sombrio e extremado na minha visão, mas não dá para deixá-lo de lado: o ambiente é um forte influenciador no aprendizado.
E, se ele não for favorável, pode dificultar esta aprendizagem, talvez até impedi-la.
Felizmente já sabemos disso.
Em Portugal, na cidade de Santo Tirso, próximo à cidade do Porto, existe uma escola pública que coloca em prática este ambiente favorável desde 1976. A Escola da Ponte prioriza a autonomia do aluno: é ele quem escolhe o quê, como e quando – e com quem – vai aprender sobre os conhecimentos disponíveis dentro da escola.
Mas como o texto já ficou maior do que eu tinha previsto (e para eu poder ter assunto depois), vamos falar desta escola no próximo post?