Eu não sei vocês, mas toda época de eleição ouço a importância do voto consciente. Isso costuma acompanhar frases como: devemos saber votar no melhor candidato ou candidata para o país/ estado/ município/ região/ bairro. Candidato melhor ou “menos pior”, como costumamos dizer.

Nesse sentido, ser consciente é escolher adequadamente, através de senso crítico e estudo das opções existentes, os políticos competentes que defendam interesses públicos. É exercer a cidadania e garantir a democracia. É ter ciência dos deveres e direitos ao atuar na vida política como cidadão ou cidadã.

Tudo isso soa razoável. Afinal, quem poderia ser contra a escolha do melhor candidato ou candidata? Quem desprezaria um direito conquistado com sangue e luta após tantos períodos ditatoriais no nosso país?

Mas aí… como explicamos a chamada “compra de votos”, o “voto de cabresto” ou o “voto de permuta/troca”, expressões que vivem estampando reportagens na TV, revistas e jornais em tom de denúncia? Esse tanto de gente que “vende voto” não tem consciência de cidadania? Por quê?

Provavelmente você já ouviu – de especialistas em direito e ciência política, autoridades governamentais, professores, amigos e parentes – que essas pessoas lamentavelmente venderiam seus direitos (e violariam seus deveres) por falta de informação, falta de escolaridade, falta de cultura (“cultura política”) e/ou falta de recursos (pobreza). Não saberiam votar

Como brasileiros, estamos acostumados a pensar a falta como explicação para nossos males. Ao nos compararmos com países que parecemos invejar, falta tanta coisa que nossa realização sempre é postergada para mais adiante. Brasil, país do futuro.

Mas essa suposta ausência de virtudes me diz mais sobre nossas crenças e valores do que me explicam por que tantas pessoas não votariam de forma “consciente”. Então vamos começar por aí. Que crenças e valores seriam esses? No quadro abaixo tento resumir os modelos que parecem guiar essa oposição entre formas adequadas e inadequadas de voto:

 

 

Sendo modelos conceituais, são como os tipos ideais de Max Weber: não descrevem a realidade como ela é. São construções mentais que acentuam certos aspectos de um fenômeno para que se observe como certas ações se afastam ou se aproximam desses tipos. São ideais no sentido lógico (tipos abstratos), construídos como método que explicita o que costuma se manter implícito nas análises de pesquisadores (seus valores e pressupostos), de modo a alcançar maior rigor científico.

Voto e não-voto

Ao pensarmos na oposição apresentada, fica implícito um terceiro modelo retratado como inadequado, que alguns chamam de “alienação eleitoral”, “não-voto” ou o “tanto faz quem vencer”: votos nulos, brancos e abstenções. Por mais que haja uma certa concordância generalizada acerca das razões existentes para a desconfiança na política institucional, a negação do voto é vista como ameaça para aqueles que se situam como cidadãos conscientes [1].

Afinal, não estamos no enredo do livro Ensaio sobre a Lucidez, do escritor português de família camponesa José Saramago (1922-2010). No país imaginado por Saramago, a lei determinava que a maioria de votos brancos deveria ser seguida por novas eleições municipais dias depois – o que não foi suficiente para resolver o problema: os mais de 70% de votos brancos na capital fictícia alcançaram 83% no segundo pleito.

 

Nova edição da CIA das Letras. Nesse livro, publicado em 2004, Saramago dialoga com seu romance anterior Ensaio sobre a cegueira (1995). A epígrafe “Uivemos, disse o cão”, remete à lucidez do questionamento dos limites do sistema político. E seu silenciamento.

 

Ao invés de lucidez, lemos de muitas fontes que a negação do voto, por mais racional que pareça ser o argumento que a sustenta, seria um sintoma da “crise de representação” e deveria ser combatida. Não raro, defensores ou detratores desse modelo o chamam de “antipolítico” ou “apolítico”. Mas há aqueles que alegam ser uma atitude política importante que não aceitaria a redução da cidadania às eleições a cada dois anos [2].

De toda forma, para a opinião pública, produzida e reforçada pela imprensa e especialistas no tema, o terceiro modelo fugiria da “boa política” por ir contra a crença primordial que funda a oposição entre voto consciente e trocado: o voto.

Partindo dessa crença, a forma adequada de se fazer política geralmente é definida pelo voto consciente. Quando muito, falam da importância de fiscalizarmos nossos representantes eleitos entre os dois anos. Mais raramente, ouvimos da importância de atuar como cidadãos e cidadãs diariamente, cumprindo nossos deveres e lutando por direitos. Tudo isso é valorizado como estando apartado das práticas associadas ao voto inadequado, que seria guiado por afetos (impulsos e relações pessoais), favores (expectativa de retribuições pelo voto) e faltas (pobreza socioeconômica e “cultural”).

 

Razão e sensibilidade

Sérgio Buarque de Holanda descreveu os brasileiros pela cordialidade em Raízes do Brasil. O historiador e sociólogo tinha como referência dois tipos ideais de dominação de Weber: patrimonialismo (dominação tradicional) e burocracia (dominação racional-legal). Nessa oposição, a cordialidade significava emoção, relações pessoais e interesses privados. Etimologicamente, cordial significa “relativo ao coração”, agir por afetos, sejam eles de amizade ou inimizade. A definiu como oposta à razão, à impessoalidade da lei, ao individualismo e à priorização dos interesses públicos que reinariam em outras nações. Buscava compreender através dessa comparação o que faltaria ao Brasil para a inclusão política daqueles a quem tudo faltava, inclusive os acessos a direitos iguais [3].

No discurso político e teórico, a emoção é recorrentemente imaginada como oposta à razão. Sociólogos, antropólogos e psicólogos têm insistido que não vivemos na prática essa dicotomia. Como mostram Jeff Goodwin, James Jasper e Francesca Polletta razão e emoção não são separáveis. As antropólogas Claudia Rezende e Maria Claudia Coelho são vozes que fazem coro a esse questionamento com base na releitura de clássicos das Ciências Humanas, evidenciando que hierarquizamos a razão/mente como superior às emoções/corpo.

A dicotomia existe como relação entre modelos abstratos, ou seja, em associações lógicas que partilhamos coletivamente. Na prática, dicotomias como essa são eficazes na reprodução de hierarquias sociais.

Homens foram historicamente valorizados na nossa sociedade por serem supostamente mais racionais e mulheres inferiorizadas por serem emotivas. Mesmo quando valorizadas pela afetuosidade, as mulheres são encaixadas em certos papeis sociais: enfermeira, professora, mãe, esposa. Atividades de cuidado são vistas como adequadas para pessoas sensíveis (ou seja, o estereótipo de uma “boa mulher”). Esses papeis sociais relegados às mulheres já foram motivo para sermos consideradas incapazes de votar.

Isso para não falar das hierarquias de classe, de lugar de moradia e do racismo, que situam não brancos e pobres no polo emotivo. Tudo isso nos leva de volta aos nossos modelos de voto consciente Vs. voto comprado. O que essa oposição produz e reproduz?

Como sugeri no quadro, situamos pessoas escolarizadas – relativamente à sua proporção na população do país, ainda são em sua maioria brancas, de classes média e alta, residentes nos centros das cidades médias e grandes (sobretudo do Sul e Sudeste) – como mais prováveis de seguirem o voto consciente. Todo dia ouvimos que nordestino não sabe votar, pobre não sabe votar, analfabeto não sabe votar, e por aí vai.

Mas quem disse que nós, classe média branca “urbana”, sabemos votar? Ou pior, que os ricos saberiam votar? Quem disse que as emoções não guiam nosso voto, ao lado de nossas eruditas reflexões e cálculos eleitorais de porcentagens de intenções de votos? Quem de nós não vota por medo em termos de segurança pública? Ou por medo de um socialista aumentar nossos impostos, fazer o mercado financeiro “ficar nervoso” e “transformar o país na Venezuela”? Ou por medo de um religioso fanático acabar com o Estado Laico, principalmente se for de uma religião diferente da nossa? [4]

Quantas vezes o discurso do voto útil nos levou a escolher a segunda opção mais provável de ganhar (que detestamos) para que o primeiro que nos amedronta não vença? Quantas vezes não votamos seguindo indicações de pessoas em quem amamos e confiamos? Ou repensamos nosso voto por ser o mesmo de alguém que não gostamos? Quantas vezes não ouvimos conhecidos expressarem entre si sua vergonha ou nojo de ter tido um representante pouco escolarizado, um representante homem “afeminado” ou uma representante mulher masculinizada?

Diante de europeus e norte-americanos, seríamos cordiais – “por isso que o Brasil não vai pra frente”, diriam os que vivem das lamentações de serem brancos em terras colonizadas.

Mas quando olhamos para dentro, em nossa imensa desigualdade social, os cordiais seriam apenas aqueles (des)classificados pelas ausências?

Questionar essa dicotomia emoção Vs. razão, ou voto comprado Vs. voto consciente é revelar nossos pressupostos, valores e mecanismos de perpetuação de hierarquias sociais. O voto-opinião puro é impraticável. E mesmo como idealização não tem contribuído para combater o que se denuncia como voto comprado ou de permuta.

Todos tomamos decisões com relação ao dever e direito de votar (inclusive podendo não votar) a partir de determinados lugares que ocupamos na sociedade. Estamos imersos em relações sociais e imaginações construídas historicamente. Se não avançarmos nesse entendimento, não compreenderemos o comportamento político de eleitores e eleitoras para podermos transformar a realidade que nos aflige.

 

Notas

[1] Devido aos limites do texto, não vou me aprofundar nas diferenças de intenções entre quem abstém, quem vota branco e quem vota nulo. Em geral, essas três possibilidades são criticadas conjuntamente por quem defende o modelo do voto consciente.

[2] Posicionamentos anarquistas, quando defendem o não-voto ou debatem os limites do voto, se afirmam como políticos. Para esse segmento (internamente diverso), a prática política se dá única, principalmente ou também por outros meios, como pela atuação em movimentos populares. Veja por exemplo a Outra Campanha.

[3] Em carta de Sérgio Buarque de Holanda a Cassiano Ricardo, ele explicou sua ideia de cordialidade como relativa a sentimentos não só amistosos, mas inamistosos. Ademais, previa o fim do homem cordial com a urbanização, evidenciando seu imaginário dicotômico urbano Vs. rural, voto impessoalizado Vs. pessoalizado (2006, páginas 393-396).

[4] O deviante Henrique Castro (o famigerado Kpeta) fez uma série imperdível com a pergunta: Pode o medo ser usado como instrumento de controle social? Leia a  parte 1, a parte 2 e a parte 3 . Mostra como o medo pode ser empregado como estratégia política, sendo instrumento de poder.

 

Referências

Claudia Rezende e Maria Claudia Coelho. Antropologia das Emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

James Jasper. The Emotions of Protest. Chicago: The University of Chicago Press, 2018.

Jeff Goodwin, James Jasper e Francesca Polletta (Org.). Passionate Politics: emotions and social movements. Chicago: The University of Chicago Press, 2001.

José Saramago. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: CIA das Letras, 2020.

Max Weber [1904]. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: Metodologia das Ciências Sociais. v.1. São Paulo: Cortez; Campinas: Unicamp, 2001, p.107-154.

Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: CIA das Letras, 2006.