No momento no qual você está lendo esse texto quais partes do corpo está sentindo? parece uma pergunta estranha, mas observe: o seus pés apoiados no chão, o celular em sua mão, sua respiração, os pequenos movimentos dos olhos enquanto lê essas linhas, tudo funcionando em perfeita harmonia, sem que você tenha noção do que esteja ocorrendo. No texto de hoje vou comentar como funciona a propriocepção, como ela influencia no seu dia e como seria uma vida sem ela.

Em seu livro “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu” (1985), Oliver Sack ao falar da propriocepção “O que é mais importante para nós, em um nível elementar, do que o controle, a posse e a operação de nosso ser físico? E, no entanto isso é tão automático, tão familiar, que nunca pensamos nele.” (1)

Com a propriocepção      

Descrita pela primeira vez por volta de 1900, o fisiologista Charles Scott Sherrington definiu propriocepção como “uma regulação da postura global (equilíbrio postural), postura segmentar (estabilidade articular), assim como para diversas sensações periféricas conscientes, denominada sensações musculares” (2).

Tal definição passou por várias alterações, hoje a mais aceita seria um conjunto de informações vinda das articulações, músculos, tendões e outros tecidos projetados no sistema nervoso central (SNC) para processamento, influenciando as respostas reflexas e o controle motor voluntário. A propriocepção contribui para a postura, estabilidade articular e diversas sensações conscientes (3).  

Para que a propriocepção funcione, todos os nossos sistema devem estar em sincronia por exemplo: a visão, o sistema vestibular (equilíbrio), os órgãos. Caso um deles falhe, outro pode substituir ou auxiliar –  em certa medida (1). Tem-se relatos de caso em que o indivíduo só consegue se manter equilibrado se tiver de olhos abertos, ou seja, o sistema vestibular não está por alguma razão exercendo sua função, porém com o auxílio da visão volta a sua normalidade. Casos assim são comuns em idosos.

Exemplo I: A marcha humana de forma bem resumida (caberia um texto inteiro sobre isso) é dividida em duas fases de apoio (quando um dos pés está sobre a superfície) e a de balanço (quando um dos pés está suspenso no ar). Ambas as fases ocorrem de forma sincronizada, ou seja o pé direito está na fase de apoio o esquerdo está na fase de balanço (8).

Fonte: Jessica Rose e James G. Gamble. Marcha humana. 2.ª ed. São Paulo: Editorial Premier, 1998, p. 25.

A propriocepção trabalha na marcha em vários períodos: 

  • no início: quando os dois pés estão apoiados no chão, fazendo a distribuição de peso e o reconhecimento da superfície onde estão apoiados (se ela é firme, tem algo desnível e etc…);
  • no momento do apoio: novamente no cálculo do seu peso corporal sobre um dos pés, peso este que será distribuído por toda a musculatura do membro inferior envolvidos no andar (quadríceps femoral, semitenoso, semimembranoso, bíceps femoral, tibial anterior e gastrocnêmio);
  • no momento do balanço: quando define a distância necessária do passo, se por acaso tem algum obstáculo. A propriocepção também calcula a altura que o membro inferior deve se erguer.

Agora lembra da última vez que você subiu uma escada. Ao passar pelos degraus, você calculou todos eles ou foi feito de forma automática? Se os degraus forem do mesmo tamanho (normalmente são) é feito de forma automática já nos primeiros passos. Vale aqui o relato pessoal de um amigo cuja casa estava em construção e onde os degraus da escada eram até então todos irregulares: as pessoas que chegavam subiam aos tropeços. 

A propriocepção está em praticamente toda a nossa vida diária, desde quando se está sentado (os músculos da coluna vertebral estão trabalhando de forma automática para ficar naquela posição) até no momento da alimentação ao erguer o copo, movimentar com os talheres (sabemos levar algo a boca mesmo sem vê-la ou tocá-la).

Sem a propriocepção

A propriocepção é fundamental em praticamente tudo que fazemos. Mesmo sem termos consciência, ela está lá, fazendo seu trabalho perfeitamente. Agora o que acontece com o indivíduo que perde por total essa capacidade? O curioso estudo de caso foi relatado no livro de Oliver Sack “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu” (1).   

Charles (nome fictício), sexo F, 27 anos levava sua vida normalmente em um trabalho como programadora, foi internada no Hospital para uma cirurgia simples na região do Abdômen, a paciente permanecia calma e ativa. Na noite pré cirurgia teve um sonho “ela oscilava fortemente, estava insegura das pernas, mal sentia o chão sob seus pés, quase não conseguia sentir as coisas nas mãos, que ficavam sacudindo a esmo em todas as direções, deixando cair tudo o que ela tentava segurar.

Tal sonho a deixou aflita e foi diagnosticada pelo psiquiatra do Hospital com uma Ansiedade pré operatória. Mais tarde nesse mesmo dia, Charles estava ‘insegura’ das pernas, não conseguindo se manter de pé, com movimentos não sincronizados e deixando tudo que tinha a mão cair. O que teria a levado à perda da propriocepção?

O interessante desse caso é que a paciente não conseguia manter-se de pé a menos que olhasse para os pés, não conseguia segurar nada nas mãos a menos que olhasse para ela. “Era como se algum controle ou coordenação essencial tivesse desaparecido” (1). 

Com a realização da punção lombar, foi diagnosticada com  Polineurite Aguda. Extremamente grave e rara, é uma inflamação que acomete especificamente a nível nervoso. Casos semelhantes se encontram na síndrome de Guillain Barré

Descoberto o que levou ao sumiço da propriocepção, como Charles levou sua vida? nesse caso específico as lesões são irreversíveis, ou seja, não poderia voltar ao “normal” de antes. Aqui entra um dos melhores exemplos de Neuroplasticidade (ou plasticidade neural): a capacidade que o sistema nervoso possui de se ajustar perante influências ambientais durante o desenvolvimento e estabelecer, reorganizar ou recuperar funções desorganizadas por condições experimentais ou patológicas (4).

O que restou a paciente foi adaptar-se. “Ao se mover, precisava, primeiro, monitorar a si mesma usando a visão, olhando atentamente para cada parte do corpo quando esta se movia, com uma consciência e cuidado quase dolorosos. Seus movimentos, monitorados e regulados conscientemente, foram a princípio desajeitados e extremamente artificiais. (…) Com o decorrer do tempo o feedback normal, inconsciente, da propriocepção foi sendo substituído por um feedback igualmente inconsciente dado pela visão, pelo automatismo visual e reflexos cada vez mais integrados e fluentes.” (1)

Charles não conseguia se manter sentada no início dos sintomas e agora para manter a posição deveria contrair ativamente todos os músculos necessários, ao andar teria que manter os olhos fixos nos passos e assim por diante tudo com o auxílio das demais funções do corpo que não foram acometidas. O que antes era feito de forma automática agora deveria ser feita de forma consciente.

Treinando a propriocepção em casos mais comuns

Casos do relato anterior são raros e levam ao extremo a perda da propriocepção. Dificilmente vai conhecer alguém que sofreu algo semelhante. Agora dois dos casos mais comuns da perda de propriocepção são casos de entorse de tornozelo, provavelmente já sofreu ou conhece alguém próximo, e da coisa mais moderna que existe nessa vida que é envelhecer, (acredito que tanto eu como você estamos envelhecendo).

  • Entorse de tornozelo:

Entorse é definido como um movimento abrupto e violento que leva ao estiramento ou ruptura de uma articulação, mais comum sendo na região do tornozelo. Lesão frequente  na população em geral, no Reino Unido, diariamente ocorre com 1 a cada 10.000 pessoas, (por volta de 5000 lesões diárias) que variam entre casos leves, médios e graves (5).

A estabilidade normal do tornozelo e dada pelos ligamentos  talo-fibular anterior (que é rompido na lesão como mostra a imagem acima), posterior e talocalcâneo (5). Em casos mais leves do entorse (que não precisam de intervenção cirúrgica) o tratamento convencional é a imobilização, a utilização do gelo para tratar o edema (inchaço) e quando os sintomas estiverem mais controlados entra a fisioterapia (9).

Na conduta fisioterapêutica é que entra o treinamento da propriocepção. No processo de recuperação do entorse tem-se uma instabilidade articular, sabe aquela insegurança de tocar o pé no chão. No tratamento busca-se o fortalecimento da articulação para que o paciente possa voltar a suas atividades de vida diária(9).

 

  • Envelhecimento: 

 

Entre as principais características da complexa fase que é o envelhecer, está a diminuição da capacidade funcional. Tal redução está ligada diretamente ao aumento do número que quedas (6). De acordo com o ministério da saúde em 2017 , essa foi a razão de aproximadamente 61% das internações de idosos. 

Foto: Divulgação / Tudo&Todas

A perda da capacidade funcional caracteriza pela dificuldade da realização das atividades na vida diária, dentre elas estão distúrbios de equilíbrio e de movimento. De certo modo podemos associar diretamente a capacidade funcional com a propriocepção. O treinamento proprioceptivo pode envolver diversas atividades físicas como natação, pilates, caminhada, exercícios de alongamento. Todas mostram uma melhora na funcionalidade principalmente quando se faz mais de uma atividade (7).

Agora toda vez que você subir uma escada sem tropeçar ou se alimentar enquanto assiste uma série sem errar onde está a boca, saberá que isso é graças a propriocepção. O tema ainda pode envolver diversos áreas como por exemplo: o treino da propriocepção no esporte (quem sabe em um texto futuro). 

Boa parte da inspiração para esse texto foi o cáp. “A Mulher descarnada” do livro de Oliver Sack “O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu”.  Lembrar que caso seja da área da saúde ou queira se aprofundar no tema tem uma série de artigos nas referências do texto. Por hoje é isso, Paz!

REFERÊNCIAS:    

imagem de capa:  fonte  

  1. Livro comentado no texto foi O Homem Que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu de Oliver Sacks de 1985

Artigos: 

  1. SHERRINGLON, C.S. The Integrative Action of the Nervous System. New York Son, 1906. 
  2. LEPHART, S,M; FU, F. H. Proprioception and Neuromuscular control in joint stability. Humans Kinetics. 2000   
  3. MENDES, I.S. et al. Métodos terapêuticos utilizados em sujeitos com deficiência sensória motora após disfunção vascular encefálica: revisão de literatura. Revista Univap, São José dos Campos-SP, v. 18, n. 31, jun.2012.
  4. KANNUS P, RENSTROM P. Treatment for acute tears of the lateral ligaments of the ankle. Operation, cast, or early controlled mobilization. J Bone Joint Surg Am 1991;73:305-12.
  5. BENTO P.C. et. al. Exercícios físicos e redução de quedas em idosos: uma revisão sistemática. Rev Bras Cineantropom Desempenho Hum. 2010;12:471-9.
  6. SANTOS, K. B. et al. Associação entre exercícios e propriocepção em idosos: Revisão Sistemática. Rev Bras Ativ Fís Saúde p. 17-25. 2017.
  7. PERRY, J. Análise da Marcha. Marcha patológica, Barueri SP, Manole. 2003. 
  8. RODIRGUES, L. WAISBERG, G. Entorse de tornozelo, Sociedade Brasileira de Traumatologia. 2009.