Você conhece o SUS? Mas tipo, conhece mesmo ou ele é só aquele colega distante que você dá um oi de vez em quando? Se você leu meu texto anterior aqui sabe que quero transformar você e o Sistema Único de Saúde em grandes amigos. Para isso, na quarta parte dessa série falaremos daquela área que quase ninguém lembra que compõe nosso SUS: a Vigilância em Saúde.
Pensei em um monte de piadinhas que envolvessem Vigiar e Punir do Foucault e falhei miseravelmente (para a sorte de vocês hahaha), mas vamos ao que importa: vocês provavelmente conhecem alguma área da Vigilância em Saúde e sou capaz de provar. Duvidam? Vamos começar pela famosinha, a Vigilância Sanitária – sim, ela é do SUS também, surpresa! – ah e se você é ouvinte do Scicast, deve conhecer também a Vigilância Epidemiológica. Acredita que ainda tem mais estrelas nesse time?
Bom, antes de contar quem são as outras presenças ilustres da Vigilância em Saúde, vamos entender melhor o que ela é. Basicamente, esse é o braço do SUS responsável pela coleta, organização e disseminação de dados sobre a saúde da população. De posse dessas informações, ela atua também no planejamento de estratégias preventivas a doenças e ações de promoção à saúde em algumas vertentes básicas: Sanitária, Epidemiológica, Ambiental, Saúde do trabalhador, Doenças crônicas não-transmissíveis, Violências e acidentes.
Bastante coisa, não é mesmo? Pois se segura que ainda vem mais. Para coordenar tantas funções, o Ministério da Saúde possui a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), cuja função principal é de organizar e articular estratégias de prevenção e controle de doenças de grande expressão ou relevância nacional – dengue, hepatites, aids, por exemplo – e como se não bastasse tudo isso, a SVS ainda organiza o Programa Nacional de Imunizações (PNI); investiga surtos de doenças e suas notificações, gerindo os sistemas de informação de mortalidade (SIM), de nascidos vivos (SINASC) e o de agravos de notificação (SINAN); e analisa a situação de saúde, pulicando boletins e manuais.
Como esse é um setor que faz uma quantidade enorme de coisas, vamos aos pouquinhos conversando sobre cada área da vigilância. Para facilitar, comecemos pela famosinha do rolê:
Vigilância sanitária:
Conhecida por interditar aquela lanchonete de esquina que a gente adora, ela atua no controle de riscos à saúde da população na comercialização de bens ou serviços. Além de fazer a inspeção de produtos diversos, como remédios, alimentos e cosméticos, fiscaliza estabelecimentos de saúde, educação, comércios ou prestadores de serviços que possam oferecer algum risco de transmissão de doenças, como academias, salões de beleza, motéis e restaurantes, por exemplo.
Mas vocês sabem por que essa vigilância pode interditar locais? Porque ela e seus entes estaduais e municipais possuem o chamado poder de polícia. Isso significa dizer que eles tem autorização para entrar, fiscalizar, autuar (notificar ou multar a depender da reincidência) e interditar estabelecimentos que ofereçam risco à saúde da população por descumprirem a legislação sanitária vigente.
A Vigilância Sanitária, juntamente com a Epidemiológica e de Saúde do Trabalhador foram instituídas pela Lei Orgânica da Saúde, nº 8.080/90, que falei no primeiro texto dessa série. Esse é um ponto importante, pois coloca esses serviços como parte do nosso sistema público de saúde, ou seja, devem ser prestados universalmente, equânimamente e integralmente a população. A lei também pactua a responsabilidade das ações da vigilância entre União, estados e municípios.
Na esfera federal isso é feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/ Fiocruz). A nível estadual, quem assume o rolê são as gerências de vigilância vinculadas às secretarias estaduais de saúde. E já nos municípios é que a coisa se complica, pois, muitos dos serviços de Vigilância Sanitária ainda estão em fase de implantação.
O nascimento da ANVISA, nove anos após a Lei Orgânica da Saúde, traz consigo a criação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Além da coordenação desse sistema, a ANVISA é responsável por controlar a situação sanitária de portos e aeroportos, garantindo a saúde dos viajantes; por efetuar registro de produtos, fiscalizando sua propaganda; conceder ou vetar autorização de funcionamento a estabelecimentos; e monitorar os preços de insumos em saúde, interferindo em casos de cobranças abusivas.
Vigilância epidemiológica:
A “queridinha” dos profissionais que trabalham na Atenção Básica e na Atenção Secundária, a Vigilância Epidemiológica, é responsável pela detecção e prevenção de doenças e agravos transmissíveis. Seu papel é o de investigar e controlar patologias com potencial epidêmico e para isso são utilizados os dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação, o SINAN.
De modo a evitar epidemias, o Ministério da Saúde (MS) instituiu a Lista Nacional de Agravos de Notificação Compulsória. Basicamente é uma lista de ocorrências em saúde que quando aparecem em alguém, devem ser comunicadas às autoridades sanitárias independente da vontade do gestor do estabelecimento ou do paciente. Alguns dos critérios para inclusão nessa listagem envolvem o potencial epidêmico, magnitude, vulnerabilidade da população, a existência de protocolos de controle e/ou tratamento a nível nacional e internacional, por exemplo.
O documento inclui não apenas doenças, mas também situações como acidentes de trabalho, acidentes com animais peçonhentos ou potenciais transmissores de raiva, violência doméstica, violência sexual e tentativa de suicídio. Agora vocês devem ter percebido porque não foi por acaso que usei as aspas no queridinha ali em cima. Existe uma grande dificuldade na notificação dessas situações, seja no tempo correto – alguns agravos devem ser comunicados antes mesmo de confirmado o diagnóstico – seja no preenchimento correto do tipo de situação, como alguns casos de tentativa de suicídio que são notificados como acidentes, por exemplo.
As causas dos erros não estão apenas no despreparo de alguns profissionais para investigação da situação de saúde, mas também na grande quantidade de detalhes que deve ser preenchida na notificação, quando sabemos da enorme carga de trabalho e superlotação de alguns serviços de saúde.
O preenchimento correto dessas informações no sistema é importante porque com base nos dados coletados no SINAN e demais sistemas de informação em saúde (falaremos mais deles futuramente, fiquem tranquilos) a SVS divulga o Boletim Epidemiológico. O documento é gratuito, divulgado mensalmente – ou semanalmente em casos de doenças sazonais – e pode ser acessado no site do MS.
Através dele é possível conhecer as situações em saúde com potencial epidêmico, bem como obter informações sobre o diagnóstico, a notificação e o protocolo de tratamento a ser adotado. Lá nas referências eu coloquei o boletim mais recente e também um guia que explica a definição da OMS de cada agravo e o passo a passo seguido pelos profissionais de saúde.
Sabendo que o SUS possui foco não apenas na perspectiva curativa, mas principalmente na prevenção e promoção da saúde, eu não poderia deixar de falar do Programa Nacional de Imunizações (PNI), estratégia da Vigilância Epidemiológica para prevenção de uma série de doenças. O nosso calendário de vacinas é imenso! São 45 diferentes agentes imunobiológicos ofertados em 19 vacinas que são aplicadas desde os recém-nascidos até a terceira idade, abrangendo demais grupos de risco como gestantes, crianças e povos indígenas.
Vale sempre lembrar que as vacinas são uma das melhores estratégias em saúde pública pela sua efetividade e segurança. Mantenha sua situação vacinal em dia! Está na dúvida se tomou todas as que deveria? Você pode acessar o calendário nacional de vacinação clicando aqui. Caso falte alguma, procure sua Unidade Básica de Saúde (UBS).
Vigilância de Violências e Acidentes:
Em 2006 foi criado o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), que funciona interligado a Vigilância Epidemiológica. Assim como as outras vigilâncias em saúde, o VIVA é utilizado para coleta, análise de dados e elaboração de estratégias preventivas. Nesse caso, a coleta de informações é feita por 2 vias principais: os registros no SINAN de violência interpessoal e autoprovocada, além dos casos de acidentes e violências atendidos nas urgências e emergências, compondo o chamado VIVA Inquérito.
Mas preciso compartilhar uma coisa importantíssima com vocês: a notificação obrigatória de violências pelos serviços de saúde é quase um bebê de tão recente! Foi apenas em 2011 que todos os estabelecimentos de saúde passaram a ser obrigados a notificar casos de violências – incluindo doméstica e sexual – compulsoriamente, isso é, sem a necessidade de autorização da vítima. Agora pasmem, apenas em 2014 é que casos de violência sexual e tentativa de suicídio se tornam agravos de notificação imediata, e isso quer dizer que eles devem ser notificados em até 24 horas as Secretarias Municipais de Saúde. Percebam que falei da notificação às secretarias de saúde e não das autoridades policiais, até porque a notificação compulsória não é denúncia.
E qual é o procedimento nesses casos? Então, após o atendimento de saúde e notificação, temos 4 situações listadas pelo MS:
- Crianças: em casos de suspeita ou confirmação de violência o Conselho Tutelar deve ser comunicado. É ele quem tomará as devidas providências quanto a integridade e segurança da criança;
- Idosos: ainda que haja só a suspeita de violência, deve ser comunicado às autoridades policiais, Ministério Público ou Conselho da Pessoa Idosa;
- Pessoas com deficiência: em casos de suspeita ou confirmação deverão ser notificados compulsoriamente também as autoridades policiais, Ministério Público e Conselhos dos Direitos da Pessoa com Deficiência;
- Mulheres adultas vítimas de violência doméstica: caso não forem idosas ou apresentarem alguma deficiência, deverão receber orientações sobre a rede de proteção social disponível, apenas. Nenhuma comunicação ou denúncia poderá ser feita pela equipe de saúde sem autorização da vítima (o que tem sido debatido atualmente e você pode ler mais aqui e aqui)
Vigilância ambiental:
É responsável por estudar e controlar mudanças ambientais que possam provocar risco à saúde humana. Isso inclui a realização do controle de vetores de doenças, bem como a realização de protocolos associados a contaminação por exposição a substâncias como amianto, benzeno, chumbo, mercúrio e agrotóxicos.
Para efetivar suas ações, esse setor conta com alguns programas estratégicos de atuação específica: a Vigilância da qualidade da água para consumo humano (Vigiágua), a Vigilância em saúde de populações expostas a poluentes atmosféricos (Vigiar), a Vigilância em saúde de populações expostas a poluentes químicos (Vigipeq), a Vigilância ambiental em saúde relacionada aos riscos decorrentes de desastres (Vigidesastres) e a Vigilância em saúde ambiental relacionada aos fatores físicos (Vigifis).
Mas lembram que lá em cima eu falei sobre controle vetorial? Pois é, ele é feito através de 3 estratégias principais: o controle biológico, quando são usados parasitas ou predadores naturais para inibir o vetor; o controle químico, composto basicamente pelo uso de inseticidas, passando por avaliações periódicas de sua efetividade; e o controle mecânico ou ambiental, que são modificações feitas de modo a diminuir a quantidade de habitats do vetor ou reduzir o contato entre eles e humanos.
Vigilância em saúde do trabalhador:
Desenvolve pesquisas sobre os processos e ambientes laborais, incluindo aspectos organizacionais, sociais, tecnológicos e epidemiológicos. Além de conhecer os fatores de riscos à saúde do trabalhador, atua de modo a reduzi-los, e quando possível eliminar a ocorrência de acidentes e adoecimento relacionados ao trabalho. Essencialmente esse é um setor que procura melhorar os ambientes laborais, e para isso avalia periodicamente suas estratégias e intervenções, verificando sua efetividade.
Tem como princípios a integralidade das ações, abrangendo a saúde do trabalhador de forma holística; a hierarquização e descentralização, afirmando a importância da integração dos níveis municipal, estadual e federal de vigilância; a interdisciplinaridade, agrupando diferentes saberes profissionais; a pesquisa-intervenção, entendendo-as como processos indissociáveis para melhoria dos ambientes de trabalho; controle social, entendido como a participação dos trabalhadores nos processos decisórios; e intersetorialidade, que nada mais é do que a integração da Vigilância em saúde do trabalhador a outros setores da mesma temática, como a Previdência Social e o Ministério Público, por exemplo.
Vigilância de Doenças Crônicas Não-Transmissíveis:
Com o aumento da expectativa de vida e o envelhecimento da população brasileira, as doenças crônicas não-transmissíveis (DCNT) tornaram-se ocorrências cada vez mais comuns. Doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias crônicas e neoplasias compartilham 4 principais fatores de risco reversíveis:
Dessa forma, essa vigilância tem como função o estudo das DCNT, seus fatores risco e tendências temporais na população. Isso é feito de modo que essas informações sirvam de base para o planejamento de ações preventivas. Sua atuação se dá em 3 frentes de monitoramento: dos fatores de risco, da morbimortalidade das DCNT e na avaliação das estratégias adotadas para prevenção, promoção e cuidado à saúde.
E como essa galera consegue obter esse monte de informações? Através dos dados vindos da Pesquisa Nacional em Saúde (PNS), Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) e dos sistemas de informação em saúde.
Já deu para perceber o quanto o SUS é enorme, não é mesmo? E se eu te disser que ele é ainda maior e integral, você acreditaria? Então não perca meu penúltimo texto dessa série de descobertas sobre nossa saúde pública. Até lá!
Clique no título e leia as referências usadas para esse texto:
Curso básico em Vigilância Sanitária, produzido com a UFC
Lista Nacional de Notificação Compulsória
Ministério da Saúde – Doenças Crônicas Não-Transmissíveis