Tem uma coisa que eu nunca consegui entender no Direito, na verdade nunca consegui me acostumar, o “latinório”. Apesar de ter feito faculdade em uma Universidade que tinha na grade dois semestres de latim, eu, que já vivo em país (Salvador) com um dialeto (baianês) próprio, não via – e não vejo – muito sentido em escrever tão rebuscadamente.

Confesso que cheguei a pensar em começar esse texto com uma “versão” daquele provérbio sobre pimenta no “corpo” dos outros é refresco… seria algo pimentorius corpus outrem refrescus est… obviamente com outra palavra no lugar de corpo… mas deixemos a tentação da boca suja de lado, e sigamos.

Direito é um curso elitista, isto é um fato. Somos – eu do alto dos meus 43 de idade, 20 de advocacia – fruto de uma geração (nossos pais) que cresceu sonhando em ter casa própria financiada até a próxima encarnação pelo SFH, carro do ano, e filho na tríade Direito, Engenharia e Medicina. Uma pena, porque acho que formamos uma leva de infelizes. Aqui, inclusive, jaz uma lágrima pelo enorme desperdício de talentos que se esvai, ano a ano, no ralo da profissão chamada concurseiros.

Além de um curso essencialmente elitista, nosso ordenamento jurídico descende do Direito Romano, com uma e outra herança alemã e italiana, o que, por si só já explica o latinório. Enfim, como todo curso elitista, linguagem difícil, rebuscada, e, se possível, enigmática aos demais reles mortais é a chave para a manutenção da aura de glamour e inacessibilidade que tanto me enfurece.

A verdade seja dita que, de alguns anos para cá, os operadores do Direito (juízes, advogados, promotores, defensores, delegados e servidores) têm encampado uma batalha para que o juridiquês seja mais objetivo, direto, claro, e, obviamente, sem tanto provérbio em latim. Particularmente acredito que seja pelo volume exponencial de demandas no judiciário, porém, lá no fundo do meu ser, creio que seja também porque não há mais ensino da língua, ou seja, tem muita gente que não entende bulhufas do que está escrito.

O estudante de Direito, tadinho, quando entra na faculdade é um idealista… nato! Crê que irá salvar o mundo de todas as desigualdades e injustiças. Até a primeira ida ao Fórum, quando ele vai procurar saber como está o andamento de algum processo, e alguém responde: “está concluso para despacho, doutor(a)”. Depois da gloriosa/ilusória sensação de ouvir alguém lhe chamar de doutor, a ficha cai e ele(a) se pergunta: mas que diabos é concluso para despacho (com o juiz para dar algum pronunciamento). Confesso, que do alto da minha baianidade/sincrética/nagô imaginei o(a) juiz(a) vestido de baba/ialorixá invocando recebendo santo para decidir.

Passado o susto inicial, a risada geral no escritório – para aqueles que assumem a ignorância de não saber – o pobre coitado do estudante começa a lidar com a elaboração de peças processuais… E aí o latinório castiga o coitado(a). Ele(a), que nunca vira o juridiquês, começa a se deparar com judicia(justiça), jus(direito), res judicata(coisa julgada), in dubio pro re ou(na duvida a favor do réu), data vênia (dada a licença), habeas corpus(que tenha o corpo), e os pequenos nomes mais fáceis e dedutíveis.

Como rapadura é doce, mas é dura, o negócio vai complicando, e ele(a) passa a viver cenas de Indiana Jones correndo para não ser esmagado pela bola de pedra, ao tentar decifrar frases[1][2]como exceptio non adimpleti contractus,nullo poena sine legem, ex tunc, ex nunc,e outras tantas frases que muitas vezes exprimem não apenas a tradução de uma coisa, mas verdadeiros conceitos jurídicos, cuja compreensão e aprofundamento são dignos de teses e livros. Não durma ainda.

De quando em vez, acredito que tenha ido estudar tecnologia para sair um pouco desse mundo gótico-barroco-lírico que a escrita jurídica requer. Eu ainda sou uma idealista, talvez por isso sempre tenha sonhado com o dia em que dar a Cesar o que é dele seja algo possível em um parágrafo apenas. E quando me deparo com tanta gente de alma transparente que pouco pede, mas leva anos para ter o que de direito deveria possuir, por simples floreio linguístico-processual-jurídico, fico a desejar que um dia o latim que dificulta apenas enfeite o declamar de poesias. ;-)

 

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Fabiani Borges Advogada, sócia do EBQ Advogados Associados, Especialista Direito Processual Civil, MBA em Direito Eletrônico, Especializanda em Compliance pelo IBCCrim-Coimbra, Formação Avançada em Ciberespaço, membro Instituto Brasileiro de Direito da Informática; do Instituto Brasileiro de Direito Digital – IBDDIG, da ISOC (Internet Society) Brasil, , e da AB2L – Associação Brasileira de Lawtechs e Legatechs.