Ah, as reuniões em família. Neste fim de ano escutei, como é infelizmente comum, alguns parentes casualmente fazendo um discurso transfóbico e homofóbico.

Além de ficar indignada e irritada, eu fiquei intrigada. A pergunta que ocupou meus pensamentos foi “Para que trazer esse assunto só para atacar? Qual o motivo desse ódio? O que eles ganham com isso?”

Parece muito um mecanismo de defesa. Alguém se lembrou do assunto e comentou uma notícia que tinha visto, e então outras pessoas automaticamente começaram “tomar partido”, deixando claro no que acreditam, se defendendo de novas ideias. Mas por que temos esse mecanismo de defesa contra novas ideias?

Muitas vezes os discursos LGBTQIA+fóbicos se valem do argumento de que “Não é natural”.

Mas afinal, o que é natural?

Oras, tudo que existe, é natural. Nós somos parte da natureza. Se algo acontece, é um fenômeno natural, pois ele acontece.

O ser humano é natural, nossas ideias, ações, construções e até a exploração dos recursos do planeta são naturais. Podem causar sofrimento, podem não ser o ideal para a continuidade da existência da vida no planeta, incluindo nós mesmos. Mas não deixam de ser algo natural.

E também é natural termos medo do desconhecido, do diferente. Diferente do que “tem funcionado” para quem conhecemos, do que dizem os líderes e experientes na comunidade.

Homem velho segurando uma bengala, usando um gorro com penas e um xale vermelho

“Eles estão bem, viveram muito, logo, devem ter aplicado uma estratégia de sucesso.”

 

Seguir as regras estabelecidas numa sociedade, passadas de geração em geração, foi, e é, vantajoso para o ser humano, que evoluiu para uma espécie de escala global. Uma espécie capaz de compartilhar ideias, seguir regras e trabalhar em conjunto para um mesmo fim. Bilhões de organismos compartilhando crenças. “Peraí, em que planeta você vive? Ainda estamos longe de ter uma nação ou religião unificada da Humanidade”. Calma. quando eu digo crenças, pode ser qualquer ideia. Pode ser a crença de que existimos, de que vivemos em um mundo com trilhões de outros seres vivos, de que um objeto tem valor de troca, de que o Sol vai nascer amanhã, de que vamos morrer — ok, desculpe, fui para um lugar ruim aqui. O esforço e sucesso para a rápida distribuição das vacinas de covid-19 são um exemplo do potencial que essa gigantesca sociedade de ideias tem.

Como eu ia dizendo, é natural que o ser humano tenha dificuldade em aceitar ideias novas.

Nossa mente evolui durante milênios em ambientes e sociedades em que preferir a segurança e o conhecido garantiu vantagem de sobrevivência. É o garantido. O dito popular “em time que está ganhando não se mexe”.

Num mundo hostil, quem se arrisca acaba … deixando de ter descendentes. Prêmio Darwin. Um indivíduo que não segue as regras da comunidade pode ser deixado de lado, quem não segue o conselho dos mais velhos, as crenças populares, a cultura, tem grandes chances de se dar mal e não sobreviver ou ter menos sucesso reprodutivo.

Mas também há claramente uma vantagem evolutiva na exploração. A maior diversidade genética aumenta a chance de sobrevivência. A maior diversidade de ideias aumenta a chance de boas ideias surgirem. Tentar novas ideias. E o ser humano é excelente nisso.

Nosso cérebro possui uma incrível capacidade. Questionar. Imaginar. Algo que também fomos ganhando durante milênios de evolução — não só biológica, mas também cultural, pela qual aparentemente as capacidades de explorar e se adaptar trouxeram vantagens. Mas isso levou muito tempo. Muito tempo mesmo. E de cada indivíduo que obteve sucesso explorando, quantos falharam?

O escritor Tim Urban tem uma ótima série de textos em seu blog Wait But Why, entitulada “The Story of Us” (“A estória sobre nós” — em tradução livre), que faz uma longa reflexão sobre como o ser humano evoluiu como sociedade e como lidamos com ideias; eu coloco na mesma categoria do Sapiens de Yuval Hahari (e o blog também contem muitos outros textos ótimos, recomendo muito a leitura — em inglês). Ele usa muito o conceito do ‘cérebro primitivo’, aquela parte da nossa mente que nos garantiu a sobrevivência durante tantos milênios, e costuma assumir que tudo é uma potencial ameaça.

O cérebro primitivo odeia ideias novas. Quando a mente inovadora questiona, ou imagina, o cérebro primitivo só sabe usar isso para reafirmar ainda mais suas crenças já aprovadas.

Não seria ótimo se tivéssemos um meio, uma ferramenta, para enfrentar esse medo do desconhecido e obter as vantagens da exploração sem ter que correr os riscos?
Pois é, essa ferramenta existe. É o método científico!

A ciência permite que enfrentemos este medo, que possamos utilizar todo o conhecimento que já tivemos em experiências passadas para avaliar uma nova ideia e prever seu resultado antes de precisar arriscar.

Não é que a ciência nos permita saber tudo ou seja à prova de falhas; na verdade, é o contrário. Ela nos ajuda a saber o quanto errado estamos, e faz parte do próprio método estar em constante questionamento e revisão. Mas já nos garante uma enorme vantagem. É uma pequena luz, a vela na escuridão, que nos permite enxergar o próximo passo, desviar de obstáculos, e seguir caminhando.

O “ser humano” viveu praticamente da mesma forma durante mais de 30 mil anos. Se você tivesse uma lente do tempo, para olhar para trás e ver uma família humana em 10.000 AC. e em 6.000 AC., com 4.000 anos de diferença, você provavelmente veria cenas do cotidiano muito semelhantes entre elas.

Agora veja entre 2.000 AC e 2.000 DC são os mesmos 4.000 anos de diferença e a vida é completamente diferente. Mesmo se olhar para hoje e há 20 ou 30 anos, as ferramentas, atividades, e ambientes mudaram drasticamente (e não só para nossa espécie…).

E infelizmente, o progresso não chega da mesma forma a todos… longe disso. Por isso devemos compartilhar com todos a nossa pequena vela. A divulgação científica é uma importante ferramenta; a Educação, é fundamental. Mas não são suficientes. Precisamos lutar contra a desigualdade, e para isso precisamos de agentes de mudança. Políticas públicas, e até o mercado e o — credo — marketing, são as ferramentas para fazer com que o progresso chegue a todos. Para saber como melhor fazer isso, precisam também nos apoiar em estudos de ciências sociais. E em todas essas frentes, a diversidade de vivências, identidades, visões, crenças e ideias é imprescindível.

Então, num dia não muito distante, qualquer um terá acesso a uma vida digna e não precisará ter medo do diferente, pois terá as ferramentas necessárias para ponderar e se sentir seguro para dar um passo na escuridão.

 

Disclaimer: aqui foram usadas luz e escuridão como analogias de conhecimento e ignorância, como uma figura de linguagem.