Michelangelo foi um dos primeiros artistas multifunções. Ele foi escultor, pintor, arquiteto, poeta, engenheiro. Um gênio inacreditável. A estátua de David, considerada a estátua mais famosa do mundo, personifica a estética da arte da alta renascença, a política renascentista de Florença e o virtuosismo técnico das esculturas inspiradas na antiga arte grega.
O ano era 1501, Michelangelo tinha apenas 26 anos quando foi solicitado para esculpir a estátua gigantesca do herói bíblico David, para ser colocada no telhado da Catedral de Santa Maria Del Fiore em Florença. Apenas dois anos antes, Michelangelo havia concluído outro de seus mais memoráveis trabalhos, a Pietà, em Roma, e a esta altura já era considerado um mestre.
Em um de seus vários poemas, Michelangelo escreveu que se achava um homem feio, “meu nariz é quebrado e aparentemente amassado em meu rosto”, o que ele dizia que dava a ele um aspecto de mendigo. Ele era assombrado por sua aparência e preocupado com a imagem de seu próprio corpo, mesmo assim, ou por causa disso, ele gastou sua vida buscando expressar a sublime perfeição.
Àquela época, pouca coisa ele podia fazer a respeito da sua própria aparência, mas a sua intenção era que a escultura de seu David fosse o padrão pelo qual a beleza masculina seria julgada dali em diante.
Michelangelo acreditava que era uma ferramenta de Deus. Em sua visão, ele não estava simplesmente criando uma escultura de mármore, ele estava liberando uma figura que estava presa dentro da pedra. Trabalhos sem finalização de Michelangelo nos dão ideias de como eram suas técnicas. Para esculpir em mármore, entre as várias habilidades necessárias, é preciso a força física de um atleta e a destreza de um cirurgião, pois qualquer deslize pode destruir um trabalho de anos. É um trabalho de resistência.
Muitos escultores criavam um modelo de argila e a partir disso marcavam o bloco de mármore onde eles deviam esculpir, técnicas presentes até hoje em dia. Mas Michelangelo trabalhava à mão livre, começando a esculpir pela parte frontal indo até a parte posterior.
Ele iniciava pelo que era chamado de desbaste, tirando a maior parte do excesso com um formão de ponta grossa e uma grande marreta. Essa etapa tinha a intenção de abaixar o volume e dar uma forma geral a escultura. A partir daí são usados formões de dente e marretas menores, para dar mais detalhes e modelar a forma.
À medida que são necessários mais detalhes, são utilizados formões de dentes cada vez mais finos. Também eram usadas furadeiras rudimentares manuais, criadas artesanalmente, para fazer as fendas mais profundas. Depois ele refinava com outras ferramentas menores, seguidos de uma finalização na superfície com ferramentas de desbaste, como a grosa. Finalmente, ele poderia polir a estátua usando pedra-pomes e depois era passado couro até obter a superfície lisa e brilhante desejada.
Ele foi ordenado a usar um bloco de mármore antigo, que já era posse da catedral e estava guardado há mais de 50 anos. Dois outros escultores já haviam tentado usá-lo anteriormente, mas argumentaram que o mármore não era da melhor categoria e classificaram como uma peça muito estreita para produzir uma escultura de qualidade. Além disso, um dos escultores já havia entalhado um grande vão entre o que seriam as pernas da figura. Nesse momento é onde se sobressai o status do artista gênio que Michelangelo tinha sobre os artistas comuns.
Nesse ponto não é necessário entrar na discussão sobre a capacidade técnica de Michelangelo de reproduzir uma figura humana em um pedaço de pedra, 500 anos atrás, isso é indiscutível. Vale apenas apresentarmos o significado que ele conseguiu colocar por trás dessa escultura, e a forma com a qual ele alcançou isso com os materiais e ferramentas que estavam à sua disposição.
Realmente por causa do formato do mármore Michelangelo tinha que ser preciso, não havia espaço para manobra. David tinha que ser magro e deveria estar de lado, porque não havia mármore suficiente para esculpi-lo de frente. Ele também tinha que estar em uma posição de contrapostura para que suas pernas se encaixassem no espaço que já estava feito no mármore.
RETRATO DE DAVID
A história de David e Golias é uma passagem bíblica, na qual um gigante filisteu é derrotado em combate por um adolescente israelita, armado apenas com sua Funda (arma manual que pode ter diversos nomes em várias regiões do Brasil, estilingue, funda, boleadeira, etc.). A história termina com David cortando a cabeça de Golias e a segurando para a multidão que assistiu ao combate.
Tradicionalmente David era retratado em outras obras no momento da vitória, triunfante, sobre o morto Golias. Outros artistas de Florença, como Donnatelo (sim, o futuro amigo de Michelangelo no combate ao crime em Nova Iorque) e Verrocchio, retrataram suas próprias versões de esculturas de David, de pé, sobre a cabeça de Golias, decepada. Todas as estátuas são mais do que meras representações.
Mais uma vez, nesse ponto, a genialidade de Michelangelo se sobressai sobre os demais. A sua escultura de David se elevou a um grau revolucionário porque removeu todos os atributos convencionais do herói bíblico. Despindo-o literalmente e figurativamente, Michelangelo também removeu uma leitura simplificada dessa estátua como apenas uma ilustração da história e a deu um significado amplamente metafórico.
Pela primeira vez na história, o herói foi retratado antes da batalha, em vez do tradicional momento da vitória. Esse fato mudava tudo. A característica mais importante é que o David de Michelangelo representa a racionalidade. Ele não tinha a intenção de enfrentar Golias com força bruta, mas com razão e habilidade. David representava o ideal humanista de um homem que pode se tornar herói por meio apenas da sua inteligência e força de vontade. Essas são as virtudes do homem pensador, considerado perfeito durante a renascença.
Michelangelo retratou David no pico da sua concentração, no momento em que ele contempla o tamanho do desafio diante de si. David não é mais um garoto tradicional. Agora ele é retratado como um homem apreensivo. O pescoço dele está tenso, os músculos de sua coxa estão flexionados, suas narinas estão dilatadas. Suas sobrancelhas estão franzidas de medo.
Ele está prestes a fazer alguma ação e começar o combate, seu olhar está fixado. É como se fosse possível olhar para o mesmo ponto que ele, e enxergar o seu adversário. A pedra está escondida na palma de sua mão direita, a Funda está pendurada no seu ombro e desce por suas costas, quase imperceptível. O que enfatiza mais ainda que a sua vitória foi intelectual.
Seu peito parece pulsar de ansiedade. Assim como todas as esculturas de Michelangelo, o observador precisa ver David de um ponto específico e fundamental. David está em movimento. A posição que ele está é conhecida como contraposto, ou contra pose, foi inventada pelos gregos antigos, que é um jeito muito natural do ser humano de ficar de pé.
As linhas vermelhas da figura acima mostram onde os seus músculos estão tensionados, e a linha amarela onde seus músculos estão relaxados. A maioria do peso está em sua perna direita, enquanto a perna esquerda, posicionada à frente, faz com que a linha do quadril e dos ombros da figura se posicionem em ângulos opostos. Isso dá uma curvatura em S bem delicada ao tronco, e faz com que a estátua tenha um aspecto mais dinâmico
DETALHES DESCOBERTOS
Nudez era uma característica incomum para figuras bíblicas naquele tempo, e por isso, a renascença foi um período decisivo para a arte ocidental. Um interesse renovado nas antigas artes romanas e gregas trouxe o corpo humano para a vanguarda da inovação artística da renascença. A capacidade e conhecimento de retratar o corpo tornou-se o padrão para medir o gênio intelectual do artista.
É muito mais difícil retratar uma figura nua do que uma vestida, e naquela época os europeus renascentistas não estavam confortáveis com corpos retratados nus em arte. Particularmente quando demonstrado em público. Muito por causa disso, os governantes da cidade colocaram um enfeite de folhas sobre as partes intimas de David para preservar a visão do público de sua nudez.
Uma fonte de debate é o porquê de o herói judeu David não ser circuncidado. Novamente, podemos traçar um paralelo com as figuras de inspiração para a renascença. Os antigos grego e romanos consideravam a circuncisão bárbara, por este motivo não havia nenhuma estatua antiga grega ou romana retratada dessa forma.
Ainda sobre essa discussão, é notável que o pênis de David é proporcionalmente pequeno. Isso é considerado uma indicação de modéstia e respeitabilidade, e mostra que a figura bíblica está em controle de seus próprios impulsos. É possível contrastar esse pensamento com as imagens da mitologia grega que retratam a criatura Satyrs (cuidado ao pesquisar +18) uma figura que representava a sexualidade hostil.
O olhar de David apresenta um pouco de estrabismo, isso é raramente observado. Mas seus olhos apontam em direções diferentes. Esse é um truque típico de Michelangelo para nos colocar nos olhos de David. As pupilas são esculpidas de forma oca para capturar a mudança da luz do sol. Isso adiciona intensidade ao olhar. Michelangelo calculou cada ângulo e sempre considerou a posição do observador. Os detalhes são extraordinários. A veia jugular está inchada, isso só ocorre quando as pessoas estão excitadas ou nervosas. Michelangelo entendeu isso quase um século antes dos cientistas descreverem o sistema circulatório (o que só aconteceu em 1628). As veias da mão que está levantada são suaves, enquanto as veias na mão abaixada estão pulsando e são mais bem definidas. Esse é exatamente o jeito como o sangue circula nas nossas mãos quando estão nas mesmas posições. Cada detalhe aponta para a paixão de Michelangelo pela anatomia do corpo humano.
MICHELÂNGELO, DAVID E FLORENÇA
A história de David e Golias poderia ser uma boa representação da história da cidade de Florença. Durante a renascença, a Itália era um aglomerado de cidades-estados, cada uma com suas próprias leis. A República independente de Florença via a si mesma como sendo o David da Itália, resistindo contra a força da família Medici, e o poder e a influência do Papa Alexandre VI em Roma.
Esse aspecto foi enfatizado quando, em 1504, ele finalizou o trabalho e apresentou o gigante para o comitê da catedral. Eles ficaram atônitos com o resultado final e as habilidades demonstradas por Michelangelo e aceitaram que a estátua era muito perfeita para ficar na cobertura de uma catedral. A comissão então concordou em encontrar um melhor lugar para colocá-la, e eventualmente decidiram colocá-la no coração político de Florença, na Piazza Dela Signora, em vez do lugar para o qual foi primariamente programado para estar, que era um lugar religioso.
Ainda como um gesto de provocação, David foi colocado olhando para o sul, em direção a Roma. Em frente à entrada da cidade existe uma cópia da estátua até os dias de hoje. No meio desse processo, um membro da comissão tentou persuadi-los a colocar David em um lugar menos proeminente. Seu nome? Leonardo da Vinci.
David foi recepcionado de forma arrebatadora pelos florentinos e desde o início foi tratado como uma obra-prima e um símbolo da república. A estátua é realmente um colosso: tem quase 6 metros de altura e pesa quase 6 toneladas. Levaram 4 dias e 40 homens para transportá-lo menos de um km, da oficina de Michelangelo até o local de apresentação.
Em 1873 David foi transportado para a Galleria dell’Accademia, para preservá-la dos danos causados pelo ambiente. Em 1910, a cópia em tamanho real foi colocada na praça onde se encontra até hoje, o enfeite de folhas utilizado para tampar a nudez de David foi retirado, e ele pôde ser visto como Michelangelo planejou.
Estátuas têm um poder além do seu propósito inicial. O herói de um homem pode ser um símbolo de opressão para outro homem. David teve a sua cota de controvérsias, mas sempre esteve do lado do oprimido, do desvalorizado. Ele representa o poder que se sobrepõe a adversidade em face de possibilidades intransponíveis.
Michelangelo iria criar mais algumas obras-primas em sua carreira, mas a sua capacidade de transformar um pequeno garoto judeu na encarnação da força física de Florença provou ser um momento marcante em sua carreira artística. A sua evolução de artista para gênio. Ele era um alquimista que transformava mármore em carne e osso e trouxe uma percepção psicológica assim como um realismo físico para o formato de escultura nunca visto anteriormente.
Ele morreu em Roma em 1564, ainda trabalhando, com 88 anos de idade. Sobrevivendo mais tempo que os seus contemporâneos artísticos como Leonardo Da Vinci e Rafael (sim, seus outros futuros companheiros no combate ao crime). Após a morte, ele foi trazido de volta para Florença e foi sepultado na Basílica de Santa Cruz, a poucos metros de distância de seu David.
Matheus Barreto de Góes. Graduado em Arquitetura e Urbanismo e com muita curiosidade pelo estudo de arte.