Esse texto é escrito em homenagem àquelas pessoas que recebem críticas quando conversam tanto com os amigos de esquerda quanto com os de direita; àquelas pessoas que, quando não sabem o suficiente de um assunto, preferem não se posicionar; àquelas pessoas que não acreditam fielmente nem no que os pensadores que admiram dizem. Esse texto é uma homenagem a todos os que são, com frequência, chamados de isentões. Mas, apenas a homenagem é pra vocês, porque o texto é exatamente para todos os outros.
A polarização no cenário político atual
Nos últimos tempos, temos testemunhado, no Brasil e no mundo, um fenômeno de polarização na esfera política. Pela minha percepção, quanto mais um pensamento se extrema em um ponto, mais o ponto contraposto ganha força.
Vamos exemplificar: eu sou uma pessoa que, ao ver um alimento feito de farinha com recheio à base de chocolate, o chama de bolacha; mas se alguém me pedir um biscoito eu não vou criar caso e vou simplesmente compartilhar (a não ser que esteja com muita fome e seja o último). Agora, se eu vir todo um movimento saindo nas ruas com cartazes com dizeres como: “bolacha é tapa na cara” ou “o pacote diz biscoito”, se as pessoas começam a me chamar de “burro” porque digo bolacha, e se os deputados da bancada biscoitista propõem um projeto de lei proibindo o uso da palavra bolacha para se referir ao alimento, a minha tendência vai ser entrar mais fundo no movimento bolachista.
Com esse exemplo, não quero banalizar assuntos sérios, mas apenas ilustrar. O grande problema é que a mídia e as redes sociais não ajudam quem é adepto pela despolarização.
O papel da mídia na polarização
Não tem graça reportar que 90% das pessoas de um movimento foram extremamente respeitosas, pediram coisas plausíveis e são da paz. O bom é reportar o caos, a depredação e a balbúrdia, o legal é mostrar o tiozinho pedindo ditadura e morte aos gays, ou a feminista se masturbando com a cruz. Esses atos, em geral, não representam o pensamento daquela coletividade, mas, com um pouquinho de gasolina da mídia e das redes sociais, acabam sobressaindo e gerando o efeito de polarização oposta.
Essa polarização tem sido sentida na pele, em especial, nos tempos do Impeachment e das duas últimas eleições presidenciais, em que nos obrigam a tomar um lado ou outro e sempre nos querem enquadrar em falsas dicotomias: comunista/coxinha, petralha/bolsominion etc. (tirando no governo Temer, em que você podia falar mal do presidente sem um monte de gente te incomodando).
Os isentões em tempos de pós-verdade
Mas, no meio de toda essa polarização tem um grupo bem interessante, aqueles que não são chamados de petralha nem de bolsominion, mas dos dois, aqueles que, as vezes, ganham um terceiro nome: isentões. Esses podem até parecer um grupo pequeno, mas tenho percebido cada vez mais que não são, eles apenas passam mais desapercebidos (o mesmo efeito que falei de o extremo ganhar mais exposição). Mas vamos entender porque esses isentões são tão mal vistos e porque eles são os que mais estão certos.
Pensamento científico x Pós-verdade
No longínquo Scicast #88, sobre Pensamento Científico (a gente sabe que o episódio é antigo quando falam hoax e não fake news) foi colocado uma coisa muito interessante (como ocorre em todo Scicast). Em um dado momento, o Pirula diz:
As pessoas tem uma necessidade de ter uma opinião sobre tudo e você tem que ter opinião formada sobre qualquer coisa. Como você não tá acostumado a refletir sobre os dois lados, a investigar as evidências, a fazer tudo aquilo que a gente sabe que tem que ser feito, e a gente também as vezes cai nesse tipo de falácia, a pessoa vai acabar seguindo na opinião de quem tá mais perto. Então, por exemplo, se a pessoa tá na dúvida, ela não tem opinião formada sobre evolução e criacionismo, por exemplo, se o meio que cerca essa pessoa é criacionaista, a tendência é que ele joga a peteca pros outros resolverem. Ele vai perguntar pra todo mundo, todo mundo é criacionista, ele vai falar, ‘tudo bem, minha questão tá resolvida’, então você tem muito disso daí do meio em que você está inserido.
Hoje, isso aumenta com os formadores de opinião online. Quando surge um assunto novo, basta olhar o que aqueles que você segue estão dizendo, consultar as páginas de notícias, youtubers e podcastes “de confiança”. Nem precisa muito esforço, você já tem as suas redes sociais bem configuradas (por você ou não) com grupos sociais que pensam parecido com você e já vão te enviar vários memes com um certo direcionamento. Aliás, o que falar dos memes, a forma mais fácil e mais reducionista que exite de passar uma ideia.
Você faz parte do movimento “pós-verdade”?
E por que isso é ruim? Eu não deveria buscar fontes confiáveis para me inspirar e fundamentar minha opinião? Sim, mas não é isso que você está fazendo, é exatamente ao contrário.
Em primeiro lugar porque você está buscando fontes tendenciosas, enviesadas, no sentido de que são fontes que já terão uma opinião direcionada para um dado lado e que não estarão dispostas a abrir mão desse viés, até porque, se fizerem, vão ser criticados como petralhas/bolsominions por muitos seguidores, vão perder seus preciosos likes e também não vão ganhar muito apoio do outro lado, ou seja, vão ficar naquele limbo “pior” que o isentismo, considerados traidores por um lado e sempre vistos com desconfiança, em razão das manifestações passadas, pelo outro lado.
Em segundo lugar, você não está buscando fontes para fundamentar sua opinião, e sim para justificar sua opinião.
A diferença é que, quando você busca o fundamento, você quer se informar para repensar sua opinião inicial, o que pode resultar no refinamento ou abandono dela (muito dificilmente na manutenção por inteiro).
Agora, quando você busca só a justificativa, significa que você tem uma opinião pré-estabelecida (um pré-conceito) que você não tem muita pretensão de mudar e apenas quer alguém pra falar algo que você possa usar pra embasar o que você já pensa. Daí, as “melhores” fontes pra isso, obviamente, são aqueles que você já sabe que pensam como você. Ou seja, justificar a opinião corresponde a querer cruzar o rio primeiro, para depois construir a ponte.
Mas o que é essa tal de pós verdade?
É isto que caracteriza a pós-verdade: o fato de que as pessoas acreditam em um dado ou informação mais em razão de esse dar suporte à sua opinião, do que pelos seus fundamentos científicos e, em última análise, por ser ou não verdadeiro. Mas qual é o problema disso, não é tudo relativo mesmo? (plaquinhas de ironia e pergunta retórica levantadas).
“Ah, mas eu também escuto quem pensa diferente de mim”.
Isso, por si só, não é uma coisa boa, só será se você estiver aberto a ser convencido pela outra pessoa. Se você escuta só pra saber o que vai criticar ou só pra tentear convencer a pessoa (se for uma conversa ao vivo), não serve de nada. Aliás, um dos problemas do diálogo hoje é que se tenta mais convencer que entender.
Por que a pós-verdade é ruim?
O resultado final desse debate polarizado é que as pessoas só discutem um lado de cada tema, pois já descartam as próprias premissas de que seus opositores partem, e chegam a conclusões bem reducionistas, que não consideram toda a complexidade dos aspectos por trás do problema.
Ocorre que essa complexidade é inerente à maioria das questões da atualidade, sejam questões epistemológicas, como efeitos do desmatamento ou do uso de drogas; seja em questões de geopolítica, como quais são os interesses envolvidos em um conflito entre dois países; seja em questões de política interna, como qual política econômica ou de combate à criminalidade é melhor para o país. Pare pra pensar: você já estudou a fundo as implicações dessas questões e quais são os pontos positivos e negativos da posição política que você defende e da que você discorda?
Porque o cético é isentão em tempos de pós-verdade
E onde entra o isentão nisso? Em primeiro lugar, é bom diferenciar os true isentões dos isentões fake. Os true isentões são aqueles que não querem se indispor com os outros e não tem opinião. Não os julgo, porque o mundo hoje tá bem propício pra ser assim. Não são esses que estou abordando no texto, mas os isentões fake, os que só são chamados de isentões, mas que não passam de céticos, no bom sentido da palavra.
O ceticismo é uma das bases do pensamento científico. Parte do pressuposto de que não é possível obter certezas absolutas, de modo que a dúvida constante se torne uma propulsora da busca pelo conhecimento. Por isso, se você fala de alguma coisa pra uma pessoa (mesmo coisas básicas, como a vó que fala que um chá é bom pra alguma coisa), e ela já descarta, ela não está, necessariamente, sendo cética, só não está acreditando.
O cético é aquele que vai colocar sua afirmação em dúvida e ir atrás de fundamentos científicos para saber se ela tem ou não alguma veracidade, e em que ponto (pra entender o que é isso, vejam o excelente exemplo de como o Gabriel Lima tratou, de forma cética, dos “mitos” ditos na infância no final do Scicast #337). Ou seja, o cético não é aquele que desacredita por desacreditar, mas aquele que busca saber se as informações são ou não verdadeiras.
Como ser cético na atualidade
O problema é que vivemos numa sociedade de hiperinformação, em que, há muita informação, mas também muita informação ruim. Como nem sempre temos tempo pra filtrar e pesquisar as fontes e buscar os dados reais, o ambiente se tornas propício para as fake news (ou hoax, na linguagem do primitivo Scicast #88).
A questão aqui é, o que fazer diante de um assunto do qual não temos tempo de nos informar adequadamente? Qual é a melhor opção? (1) Defender aquilo que os do “meu lado” estão defendendo e usar argumentos rasos e proposições reducionistas, até porque a gente não sabe muito do assunto? Ou (2) falar só aquilo que sabe, ainda que isso o faça não conseguir desbancar o argumento do outro ou não se posicionar no assunto? A segunda me parece melhor.
“Então você não vai debater nada, qual é a diferença com os true isentões?”
Claro que vou debater. Eu posso usar as informações que já tenho com um grau moderado de certeza (se eu estudo e pesquiso, são mais a cada dia). Posso tirar conclusões sobre o assunto com base no que já conheço (o chamado raciocínio dedutivo). Também posso (e devo) levantar questionamentos, problematizar os argumentos; mostrar como a questão é complexa e como uma posição para um lado ou outro traz pontos positivos e negativos. Inclusive, posso ponderar esses pontos para possibilitar chegar a uma melhor decisão. Ou seja, posso mostrar que as questões não são preto ou branco, mas têm vários tons de cinza ( ͡° ͜ʖ ͡°).
Além de não precisar se posicionar pra fazer isso, você terá um debate mais produtivo que com a simples argumentação rasa que só serve pra não atrapalhar o “seu lado”. No final, você até pode falar sua posição, mas também pode deixar claro que ela tem seus problemas.
Considerações finais
Então, faço o apelo: seja mais isentão, seja mais cético. Você não precisa saber de tudo, mas também não precisam dar opinião sobre o que não sabe. Não tem problema não ter opinião, mostra mais amadurecimento que ter uma opinião pouco embasada. Ao tomar um lado, pense nos problemas envolvidos, considere e pese os pontos negativos do seu lado. Pesquise um pouco antes de sair argumentando de qualquer jeito. Se chegar a uma decisão, mesmo sabendo e mostrando os pontos negativos, aí coloque sua opinião. O problema agora é só que não vai conseguir escrever nada em poucas palavras (falo por experiência).
Por fim, respeitem os isentões!
A Debbie Cabral escreveu um texto há um tempo atrás que pode interessar a quem curtiu esse: