A moeda é parte fundamental de nossas vidas. É verdade que podemos nos esquecer dela enquanto estamos no trabalho, ou arrumando a casa, mas ela volta a ser o centro das atenções tão logo precisemos pegar um ônibus, ou tomar um café na rua. Mesmo a ação mais banal pode nos escapar se não tivermos, no momento oportuno, alguns trocados no bolso. A onipresença da moeda no dia a dia faz com que ela se torne natural para nós, assim algumas questões nos escapam, como o motivo dela ter tanta importância, ou se nossa relação com ela foi sempre assim.
A moeda não é uma invenção nova. Temos registros de sua presença desde de 3.000 AC, mas qual a sua necessidade? Nossa sociedade percebeu ao longo do tempo os benefícios da divisão do trabalho, em que as pessoas se especializam em poucas funções e as realizam de forma mais eficiente. Com isso cada indivíduo passou a dedicar seu tempo a produção de poucos itens. Uma das principais consequências dessa forma de produção é que as trocas passam a ser fundamentais, afinal de contas, um produtor de parafusos – e exclusivamente parafusos- ainda precisaria de pão, leite, roupas e quaisquer outras coisas que ele antes produzisse para si mesmo. Seguindo o mesmo exemplo, para que esse produtor não precise encontrar um padeiro que queira parafusos tanto quanto ele quer pães, surge a moeda.
Se a sociedade sempre fosse obrigada a passar por esse processo, chamado de dupla coincidência de desejos, para fazer uma troca, ela estaria presa a uma economia de escambo, e fica claro que daria muito mais trabalho para conseguir todos os produtos necessários para o dia-a-dia num mundo como esse. Essa é a função mais básica da moeda, agir como um meio que intermedeie as trocas, numa economia em que a maioria absoluta do que consumimos se origina do comércio. Contudo, embora essa seja uma importante função da moeda, não é a única! As funções da moeda podem ser descritas nesta ordem:
- Ser um meio de troca
Como dissemos anteriormente, a primeira função da moeda é a de funcionar como um bem intermediário na economia, através do qual as trocas possam ser realizadas, sem que assim se necessite de uma dupla coincidência de desejos.
- Ser unidade de conta
Sem a moeda, um bem qualquer, como carne, deveria poder ser avaliado em termos de todos os outros bens da economia, logo deveríamos saber quanta carne equivaleria a uma tira de couro, ou quanto dela seria necessário para comprar um quilo de cenouras, e o mesmo para pentes, areia, sacos de cimentos, e todos os demais bens da economia, para que qualquer troca pudesse ser feita. A moeda evita esse trabalho, permitindo que qualquer bem seja referenciado apenas numa quantidade de moedas, facilitando notações e comparações entre os bens.
- Ser reserva de valor
Toda moeda deve ser capaz de carregar valor através do tempo. Assim, supondo que seja feita uma venda, deve-se poder guardar esta moeda recebida pelo tempo que seja necessário, até que ela precise ser trocada por outra mercadoria numa futura compra.
Embora sejam essas três as principais funções da moeda, há quem defenda uma quarta função, que é a divisibilidade, que seria necessária às trocas que requeressem um grau maior de precisão. Mas de onde surgem as moedas e o que as define? Na verdade, qualquer objeto que cumpra as funções citadas acima poderá ser considerado uma moeda. Existem vários outros bens, que não cédulas de papel, ou discos de metal que podem adotar funções de moeda. Um imóvel pode reservar valor ao longo do tempo e bilhetes de ônibus podem funcionar como meio de troca, mas nenhum deles será considerado moeda enquanto não exercer todas as suas três funções.
No passado, muitas mercadorias acabavam sendo usadas assim, como proto moedas, mas desempenhando mais a função de meio de troca do que as demais, pois, embora itens como sal, arroz, cabeças de gado, ou tabaco fossem amplamente aceitos como bens capazes de intermediar uma negociação, eles poderiam não expressar a riqueza do seu proprietário e algumas vezes tinham um limite sobre por quanto tempo poderiam guardar valor.
De todo modo, alguns desses itens foram amplamente utilizados, de modo que sua marca nos acompanha até os dias de hoje. O uso do sal como meio de pagamento levou ao surgimento do termo salariu, que mais tarde se tornaria a nossa palavra “salário” e o termo “pecúnia” (uma forma menos usual para se referir à moeda), compartilha o radical da palavra “pecuária”, que deriva do latim pecus, literalmente “gado”.
O principal motivo para que essas “moedas-alimento” tenham sido abandonadas parece ser a pouca praticidade em serem carregadas, fracionadas e guardadas por longos períodos. Mais tarde esses mesmos motivos fazem os metais aflorarem como um meio de troca preferido no comércio. Conforme a aceitação dos metais foi se espalhando, seu uso tornou-se independente do valor (como mercadoria) do metal ali empregado. Com o passar do tempo, consciente disso ou não, a sociedade foi paulatinamente transformando a moeda-mercadoria numa nova forma de moeda, fundamentada na confiança de seu valor e de sua aceitação e não mais apenas no valor da mercadoria ali contida. Confiamos que nossos vizinhos, nosso governo e até as pessoas de cidades mais distantes aceitarão nosso dinheiro, sendo talvez a moeda a maior e mais robusta crença criada ao longo de toda nossa história.
Embora a crença de que as moedas serão aceitas e que poderão ser trocadas por quaisquer outras mundo afora seja muito forte, individualmente elas não são indestrutíveis; moedas perecem e seu principal mal atualmente é a inflação. Anteriormente foi grifado que as funções da moeda têm uma ordenação e isso ganha importância quando tratamos da inflação, pois ela não só retira o valor da moeda, como atinge também cada uma de suas outras funções, progressivamente, da terceira até a primeira.
Suponhamos que a inflação se eleve em um determinado país. Logo seus produtos cotados na unidade local passarão a ter preços cada vez maiores, e o dinheiro poderá comprar menos mercadorias do que antes, atrapalhando a terceira função da moeda, de reserva de valor. Se o descontrole de preços seguir, logo a população terá dificuldade em dizer quanto cada produto custa e ainda mais dificuldade em dizer o quanto ele custará no futuro, assim ela irá procurar por outra unidade para referenciar seus bens e ficará comprometida a segunda função da moeda, de unidade de conta. Isso ocorreu com o Brasil, quando devido a nossas altas taxas de inflação, víamos alguns bens serem referenciados em dólar ao invés da moeda local. Por fim, se o processo continua, a confiança na moeda em questão estará comprometida a ponto de que deixa de ser prático usá-la como meio de troca; ela é então abandonada.
Compreender o que são moedas e qual sua natureza requer um pouco de abstração, pois precisamos enxergá-las além do objeto que lhes da forma e através dos papéis que elas desempenham. Embora a moeda surja com algumas poucas atribuições, ela acaba se tornando algo muito maior a partir daí. Elas hoje carregam parte da identidade nacional do povo que a utiliza e para muitos elas deixaram de ser vistas como uma ferramenta para tornarem-se um fim em si, o que perverte seu conceito original, mas reforça seu papel como um dos mais importantes materiais utilizados pela humanidade na arquitetura de sua civilização.
Nota: Ao longo do texto tomou-se a liberdade de colocar moeda e dinheiro como sinônimos, embora eles não sejam assim em todas as circunstâncias.
Referências:
- A Nova Contabilidade Social – Leda Paulani & Márcio Bobik Braga
- The History of Money – Jack Weatherford
- British Museum
- Money Museum