Após termos analisado a história e o básico das denominações e tipos de vinho no texto passado, iremos colocar a mão na massa e começar a elaborar o vinho.

Eu proponho começar com o vinho tinto, pois ele tem mais processos necessários e, dessa forma, posso explicar os outros tipos de vinho em relação a ele.

Vamos fazer o seguinte: nós temos alguns quilos de cachos de uva e queremos produzir o nosso próprio vinho. Através de perguntas que um leigo poderia se fazer eu irei nos guiar com explicações técnicas de quais procedimentos seguir e os porquês de cada parte.

 

Plano básico

Mesmo achando que seja conhecimento comum, não custa lembrar que o vinho é um produto da fermentação de uvas e a fermentação é a transformação de açúcares em álcool etílico por ação de leveduras. Portanto, o ponto central que devemos buscar é esse: fermentar as uvas.

Veremos que essa tarefa pode ser mais complicada do que parece e após ela ainda teremos outras questões para resolver.

A primeira pergunta que devemos nos fazer é: como fermentar uma uva?

 

Mais detalhes sobre o cacho

Como diria Sun Tzu na Arte da Guerra, convém estudar nosso inimigo para vencê-lo no campo de batalha. Vamos analisar as partes que compõem um cacho de uva: podemos separar um cacho em engaço/ráquis (os cabinhos que sustentam as bagas) e bagas (a frutas que comemos). Vamos olhar as duas partes com mais detalhes.

 

Engaço ou ráquis

Quem já tentou morder um engaço sabe que eles não têm características organolépticas (sabor, aroma, textura) muito interessantes. E de fato, os engaços têm uma quantidade pequena de açucares, média de ácidos e uma quantidade alta de compostos fenólicos, que são componentes que geram um gosto muito adstringente (gosto adstringente = aquela sensação estranha na boca quando se come uma banana verde).

Lembrando que como queremos fermentar os açucares da uva, não será muito interessante ter o engaço junto no processo pois, além de ter uma quantidade pequena de açucares, ele pode passar aromas e sabores indesejados para o vinho, além de diluir o processo.

Figura 1: Cacho de uva genérico com suas partes principais Riberau Gayon Handbook of Enology vol 1

 

Bagas

Muitas vezes as pessoas chamam as bagas da uva de grãos e isso está incorreto botanicamente. Portanto aqui eu uso o termo mais comum na literatura especializada, mas vocês podem chamar do que quiserem.

Como já poderia se imaginar, as bagas são a parte mais importante. Possuem a maioria dos componentes desejados para a fermentação (açúcares) e para a estabilização química, gustativa e visual do vinho pronto (ácidos, taninos e antocianinas) além de outros compostos menos óbvios como bactérias e leveduras. Portanto é nela que devemos focar nossa atenção.

É interessante ressaltar que os compostos não estão distribuídos homogeneamente na baga. Podemos dividi-la em três partes:

  • Película: costumeiramente conhecida como “casca” (novamente termo errado botanicamente), é onde se concentram a maioria dos compostos fenólicos (compostos específicos relacionado com o sabor característico do vinho, como os taninos, e também com a cor, como as Antocianinas) e as leveduras e bactérias “naturais”, porém contém uma quantidade pequena de açúcares. Podem representar entre 8 e 20% do peso de uma baga;
  • Semente: salvo as variedades sem sementes que podemos encontrar facilmente no mercado hoje em dia, as bagas de uva contêm de 0 a 6 % de seu peso em sementes. Elas também possuem uma concentração elevada de compostos fenólicos e podem ser usadas para extração de óleo de uva (após a devida separação e beneficiamento próprio, o que daria mais outro texto inteiro…);
  • Polpa: é a parte interna da baga, a parte mais significativa em peso (75% a 80%) é basicamente 99% líquida, com muitas partículas em suspensão. Os principais componentes são os açúcares Glucose e Frutose (com predomínio do segundo).

Resumindo: precisamos da polpa para obter o açúcar e a da película para os compostos de cor e sabor e não queremos que os engaços entrem no processo. A solução para isso é utilizar o primeiro procedimento enológico da nossa jornada: o Desengaçe.

Figura 2: Baga da uva em detalhe e com suas partes principais discriminadas. Riberau Gayon, Handbook of Enology vol 1

 

Desengaçe

Se tivéssemos uma quantidade pequena de cachos de uva poderíamos separar os engaços das bagas manualmente, como fazemos quando estamos comendo as uvas. Obviamente isso não é prático para grandes quantidades e é preciso automatizar esse processo.

A desengadeira é a máquina responsável por esse processo. Ela consiste em um tambor horizontal perfurado com pás rotatórias internas. Os cachos, ao entrar em contato com as pás, têm as bagas separadas do engaço e expelidas pelas perfurações. Os engaços são retirados por outra saída axial. Aqui tem um vídeo que mostra uma em funcionamento.

Figura 3: Desenho esquemático de uma desengaçadeira-esmagadeira, Rizzon, vinho tinto em pequena propriedade

Figura 4: Corte lateral do tambor de uma desengaçadeira. Riberau Gayon, Hanbook of Enology vol 1

Agora que temos as bagas separadas precisamos esmagá-las para liberar o líquido. Geralmente, as máquinas desengaçadeiras vem acopladas com um outro equipamento para esse propósito.

A esmagadeira é um tonel com um parafuso sem fim que suavemente rompe a película das bagas. As melhores práticas de elaboração pedem por procedimentos mecânicos suaves pois, como veremos mais adiante, a um comprometimento a se fazer na extração de compostos da película.

Como normalmente bebemos líquidos precisamos passar os compostos da película sólida para a parte líquida. No entanto, nem todos os compostos são agradáveis em todas as concentrações (e isso também pode variar conforme o gosto do produtor e principalmente dos clientes, mas estou tentando dar as práticas mais recomendadas).

Imaginem que estão tomando um chá. Obviamente sabemos que quanto mais tempo o sachê ficar em contato com o líquido, mais intenso será o chá. Mas se deixarmos tempo demais o chá ficará muito amargo e com gostos estranhos. É mais ou menos a mesma coisa que acontece com o vinho. Portanto, precisamos fazer um esmagamento suave das bagas para não comprometer os aromas e o perfil final do vinho.

No começo tínhamos cachos de uva e na sequência separamos em engaço e bagas. Agora, focando nas bagas, temos um líquido misturado com as películas e com as sementes, o qual iremos batizar como mosto. Essa caracterização vai ser útil para nos referirmos na sequência.

A questão dos compostos da película nos dá uma introdução aos problemas relacionados com o mosto. A partir desse ponto temos a parte mais sensível do processo, em que vários efeitos químicos (oxidação) e biológicos (fermentação) podem afetar as características do nosso produto, muitos deles fatais (para o produto, não para as pessoas que o beberão, se acalmem).
A mais importante é que, logo que o mosto entra em contato com o ar, as leveduras presentes podem começar a fermentá-lo. Não queremos isso por dois motivos:

  • Queremos controlar a fermentação finamente, saber quando começa e quando termina e as suas variáveis, temperatura, densidade, quantidade de álcool, etc. Precisamos disso pois, como veremos mais adiante, a fermentação é talvez o ponto mais crucial do processo do vinho, então um controle de todos os parâmetros, para que nada saia dos padrões, é muito importante;
  • As leveduras presentes nas uvas não têm um poder fermentativo suficiente para serem usadas industrialmente. As leveduras industrializadas que utilizamos para a fermentação (que inclusive são a mesma espécie do fermento de pão, me fale de uma profissional mais versátil) são otimizadas para completar a fermentação, isto é, transformar a maioria dos açúcares presentes em álcool. As leveduras selvagens (como são chamadas essa leveduras presentes nas bagas) são um pouco mais diversas, e no geral têm dificuldade em fermentar o vinho até o teor de álcool necessário e podem gerar subprodutos indesejáveis. Entretanto, por motivos que não conseguirei discutir aqui, existe uma tradição de produzir vinhos com essas leveduras próprias. Exige um pouco mais de técnica, mas é possível, só não é o padrão da produção (que é o que almejo exemplificar aqui).

A partir do momento que uma fermentação espontânea acontecer é muito difícil salvar o vinho, pois as leveduras têm um funcionamento bem particular (temperatura ideal, dificuldade de fermentação com muito açúcar ou com muito álcool, necessidade de uma quantidade específica de oxigênio, entre outras características).

Portanto, o mais adequado a se fazer é “esterilizar” o vinho para que suas leveduras (e bactérias, que também estão presentes na película) possam atuar. A prática mais comum até hoje é a introdução de gás enxofre, que falei no meu primeiro texto no portal Deviante, a quase 6 anos.

Com isso podemos trabalhar o mosto com mais tranquilidade. Podemos então partir para a fermentação.

 

Fermentação

Um dos fatores mais importantes para qualidade gustativa dos vinhos é a quantidade de álcool presente. Por isso é importante saber de antemão a quantidade esperada de álcool que um mosto irá gerar. Felizmente podemos relacionar essa quantidade através do balanço estequiométrico da fermentação alcoólica:

Portanto, através de alguma manipulação dos valores de massa molar e densidade, podemos obter uma relação direta entre a quantidade de açúcar no mosto e a quantidade de álcool no vinho (após terminada a fermentação).

Em algumas regiões do mundo, o Brasil incluso, as uvas geralmente não conseguem alcançar uma quantidade de açúcar suficiente para que os vinhos obtenham a quantidade de álcool necessária por lei para um vinho. Para tanto, é permitido a adição de açúcar exógeno que aumente até no máximo 3 % o teor alcoólico final do vinho, num processo chamado Chaptalização (inventado por um tal francês chamado Chaptal).

O açúcar adicionado geralmente é o de cana-de-açúcar e essa quantidade não causa variações muito perceptíveis no perfil gustativo do vinho. Apesar disso, essa prática é regulada e mesmo coibida em alguns países como a Argentina e a Itália. A fiscalização é feita através de análises de isótopos de carbono, que pode detectar a origem do álcool.

 

Conclusão

Tal qual Pierre de Fermat, me falta espaço para completar minha exposição. Mas novamente, como disse no primeiro texto, estou tentando condensar alguns milhares de anos de expertise de produção (e uns 100 anos de avanços científicos) em alguns textos.

Certamente deixei muitas partes de fora (por exemplo o uso de enzimas antes da fermentação) e não espero conseguir responder todas as perguntas. Para mim isso prova como qualquer assunto pode ser trabalhado com uma profundidade formidável.

Aqui paramos no momento em que iríamos inocular as leveduras no mosto para começar a fermentação. Eu diria que estamos no final do primeiro terço do arco dessa história. No próximo texto falaremos principalmente da fermentação e suas dificuldades.

 

Referências

RIBERAU-GAYON, Handbook of Enology Vol 1: The Microbiology of Wine and Vinifications 2ed, 2005

DALL’ANGOL e RIZZON, Vinho tinto – Embrapa, 2007