Quem nunca pensou em fazer um agrado para a pessoa amada ou um jantar para conquistar o desejado crush e acabou se deparando com a ingrata missão de comprar uma garrafa de vinho? Aparentemente demonstrações românticas obrigatoriamente devem estar acompanhadas de vinho.
Ou talvez a pessoa já estivesse em outro nível (financeiro) e levasse o par para um restaurante elegante. Após o vinho ser pedido, o garçom, como manda seu protocolo, irá servir uma pequena fração do líquido bordô na taça e ficará com a cara de paisagem.
Essa é uma boa hora para colocar à prova sua vocação de ator, fingindo entender alguma coisa enquanto gira a taça sem habilidade alguma e reza para transpor essa situação vergonhosa enquanto o garçom espera a sua resposta.
Isso já seria motivo suficiente para não se envolver com esse produto alcoólico. Mas, e quando na festa da firma chega o “amigo esnobe” com sua garrafa de vinho chileno Cabernet-sei-lá-o-quê e seu ar de superioridade.
Após servir a taça com muita pompa, ele logo sente os aromas, balbucia coisas como “aroma de cassis e figos secos, colhidos pela manhã”. Nesse momento aposto que sua alma já saiu do corpo, desejando que o nosso antepassado neolítico nunca tivesse descoberto como fermentar uma fruta.
Se os eventos narrados nos parágrafos acima pareceram familiar, caros leitores — nada temam. Eu estou aqui pra guiá-los cinicamente através do mundo do vinho a fim de não passarem mais por esse tipo de dificuldade na vida. De quebra, aprenderemos novo e talvez vocês se divirtam — e se impressionem — com a quantidade de interdisciplinaridades presentes nessa jornada.
Minha Motivação
Minhas motivações são bem claras: em primeiro lugar sendo eu uma das poucas pessoas no meu círculo social que possuem algum tipo de experiência na área, sempre sou atacado com muitas dúvidas e questionamentos, as quais eu geralmente não consigo explicar sucintamente sem extasiar o interlocutor. Em segundo lugar eu nunca vi nenhuma fonte de divulgação que explicasse corretamente e sem firulas como funcionam os vinhos e como aproveitá-los corretamente, mesmo em documentários e programas relacionados ao mundo do vinho enchendo as grades de programação dos canais de televisão (alguém ainda assiste televisão?).
Portanto eu decidi fazer a minha própria peça de divulgação, que possivelmente vai ser composta por 5 textos e alguns spin-offs (se meu Chefe André Trapani assim permitir):
- Este texto, uma introdução com o básico sobre a bebida, sua história, os tipos de uva, como ler um rótulo, etc;
- O início da produção. Eu sempre penso na uva entrando na fábrica como ponto inicial e o vinho saindo como final. Nesse texto provavelmente iremos do 0 até o 60% do processo;
- Um retorno às parreiras. Aqui vamos fugir da cronologia e falar de como é produzida uma uva, quais são as diferenças da produção, o famoso terroir e os tipos de poda. Eu preciso fugir da cronologia porque várias coisas que eu explicar aqui vão influenciar no processo do vinho, então é melhor que vocês tenham uma base antes;
- A parte final do processo, dos 60% ao 100%. Aqui vão entrar as três operações com “E”: envelhecimento, estabilização e engarrafamento;
- Por fim vou falar da análise sensorial, ou seja, como beber o vinho. Mas não se preocupem, que não existem regras ou nada do tipo. Também falarei dos “tipos” de vinho, estilos e debates acerca da influência do neoliberalismo nos nossos gostos (por essa vocês não esperavam). Vocês verão que na verdade muito do que for apresentado aqui não vai servir apenas para o vinho (o que talvez faça perder um pouco da magia, mas eu falei que a abordagem ia ser cínica).
- Por último, eu tenho três spin-offs em mente: um sobre suco de uva (o vinho sem álcool), um sobre espumante (o vinho com gás) e um sobre os derivados da uva e do vinho além dos dois primeiros (tem bastante coisa, vocês vão se surpreender).
A minha abordagem vai ser diferente porque eu vou combater desinformação e encenações feitas só para contar vantagem com ciência e um entendimento do processo de maneira holística. Foi dessa forma que eu aprendi — eu sou técnico em Viticultura e Enologia pelo IFRS-BG — e acho que é a maneira mais eficaz de sacar todas as minúcias do processo.
À primeira vista pode parecer chato e maçante, mas eu acredito que será mais engrandecedor que qualquer exposição de um sommelier dizendo que irá te ensinar a impressionar seus amigos bebendo vinho. Não garanto que vocês não sairão daqui como palestrinhas capazes de combater o amigo pedante. E se por acaso o amigo pedante seja tu, fica a chance para de fato aprender alguma coisa (e talvez ficar mais pedante).
Desde quando se bebe vinho?
Sabemos que o vinho era bebido na idade média devido ao Game of Thrones; em Roma, porque existia o Deus do vinho, Baco e na Grécia Antiga devido à seu homólogo Dionísio. Antes disso, a parreira e o vinho são citados no Livro de Gênesis, na minha cena preferida da bíblia onde Noé, depois do dilúvio, planta uma vinha, se embebeda e dorme pelado na tenda (quem nunca?).
Além disso, temos evidências menos pop, como a de que os Fenícios possuíam algum tipo de prensa para vinho durante a idade do bronze (1) e também afrescos egípcios mostrando a fermentação de uvas por volta de 3000 a.c. (2). Mais para trás as evidências começam a ficar um pouco mais escassas e os arqueólogos precisam se basear em métodos mais indiretos para a identificação do vinho.
Embora tenhamos registros de uma mistureba fermentada de uvas e arroz na China por volta dos anos 7000 a.c. (3), o consenso arqueológico afirma que o primeiro local onde uma estrutura para a produção de vinho se desenvolveu tenha sido a região do Cáucaso (2), mesmo local para onde é traçada a domesticação da videira (a planta da uva, também chamada de parreira) (4). Mesmo um leigo saberia dizer que França, Itália, Espanha e Portugal têm sua cultura associada à produção vinícola, mas a Geórgia traz até hoje em sua identidade cultural o título de produtora mais antiga de vinho.
A dificuldade na verdade seria não descobrir o vinho: as leveduras responsáveis pela fermentação ocorrem naturalmente nas cascas das uvas e como elas são muito frágeis o processo é quase inevitável ao se armazenar as frutas. Apesar disso, a fermentação alcoólica só foi completamente compreendida no século XIX.
E de onde veio a uva?
Alguns mais entendidos no assunto devem saber que os nomes nos rótulos dos vinhos como Cabernet, Merlot e Chardonnay se referem ao nome das uvas utilizadas para a produção do vinho em questão. O que muitos não sabem é que esses nomes na verdade são variedades da mesma espécie: a Vitis vinifera.
Como já foi mencionado, a domesticação da Uva aconteceu no Oriente Médio, mais ou menos no mesmo período dos primeiros assentamentos sedentários. No entanto, há indícios de que os humanos consumiam tipos de uvas primitivas antes dessa época (5).
Sabemos que muitas espécies são nativas da América do Norte, porém não há muitos registros de cultivo pelos povos originários. Há um debate acerca da possibilidade de o nome dado pelo assentamento Normando no Canadá, Vinland derivar das videiras vistas pelos navegadores na região, durante o século XI.
O gênero Vitis possui mais de 8o espécies catalogadas hoje (6) e apesar disso apenas duas são amplamente utilizadas comercialmente (outras são utilizadas na produção agrícola, mas isso veremos na parte 3) sendo que a já mencionada Vitis Vinifera é responsável por quase 90 das uvas plantadas no mundo (7). Dentro delas há mais de 5000 variedades, embora apenas uma fração seja utilizada comercialmente, algo que também gera debates sobre a padronização global do vinho (o que será discutido na parte 5).
As Vitis Viniferas são as utilizadas tipicamente na produção de vinho. Para a produção de suco e para o consumo in natura se preconizam as variedades do tipo Vitis Labrusca, que são originárias da América do Norte. Em comparação às Viniferas elas são menos doces, menos ácidas, mais carnudas e possuem menos cor. Esses atributos não as tornam adequadas para a produção de vinho, por motivos que entenderemos melhor na parte 2.
Tipos de vinho
Já falamos um pouco das uvas e da história do vinho mas, afinal, o que podemos chamar propriamente de vinho?
Cada país possui uma legislação específica, com vários parâmetros e técnicas apropriadas, entretanto, no geral, o vinho que estiver dentro da garrafa deve ser apenas um fermentado completo ou parcial de uvas. Não pode haver água adicionada, nem álcool ou açúcar (esses dois últimos são casos específicos e serão abordados mais para frente).
Mesmo assim, dentro da fermentação podemos ter diferentes tipos de vinho. A legislação brasileira (8) apresenta mais de 25 itens, entre vinhos e derivados. Aqui, nesse texto introdutório irei comentar apenas três que são os mais comumente encontrados nos corredores de supermercado.
Vinho fino
Vinho fino é o vinho proveniente apenas de uvas Vitis Viniferas. Eles são geralmente mais sofisticados e utilizam técnicas mais parecidas com as na Europa (o “velho mundo” do vinho). Eles podem ser de vários tipos de uvas (inclusive misturados na mesma garrafa, como veremos mais à frente) e pode ser dito que eles têm uma “qualidade” maior, passando por processos mais elaborados para tentar apresentar a o produto no seu potencial completo.
Vinho de mesa
O vinho de mesa é o vinho que é elaborado de uvas que não sejam Vitis Viniferas (no geral, Vitis Labrusca e Híbridas). São vinhos geralmente mais baratos, com pouca complexidade e estigmatizados como “ruins” ou “vinho para cozinhar”. O famoso “Sangue de Boi”, que eu aposto que todo mundo já tomou, é desse tipo.
Antes de falar do próximo tipo de vinho cabe ressaltar algo importantíssimo:
Tanto o vinho fino como o vinho de mesa se dividem mais ainda segundo a cor (branco, tinto ou rosé) e segundo a quantidade de açúcar (seco, meio seco e suave).
A questão das cores pode parecer simples mas na realidade não é tanto. Um vinho tinto deve ser feito de uvas tintas (aquelas mais escuras). O vinho branco por sua vez não precisa necessariamente ser produzido de uvas brancas, pois a pigmentação do vinho está na casca e facilmente podemos retirar as cascas do contato com o líquido, produzindo um vinho branco a partir de uma uva tinta, apesar de isso não ser muito comum. Já o vinho rosé é um vinho tinto que passou por pouco tempo de contato com as cascas, ficando com uma cor mais rosada.
Na questão do açúcar é um pouco mais lógico: seco é um vinho que não possui açúcar adicionado (ou seja, a fermentação “secou” o açúcar natural da uva. Não faz muito sentido para mim também, mas essa é a explicação do nome). O vinho ainda possui um pouco de açúcar da fermentação, que as leveduras não são capazes de fermentar, e esse valor deve ficar abaixo de 4g/l. Já vinho meio seco (pode aparecer como demi-sec em alguns rótulos) possui de 4 a 25 g/l, enquanto o vinho suave ou doce tem de 25 a 80 g/l. Por motivos que serão explanados no sexto texto (eu acho, até eu já me perdi com todos esses textos futuros) os vinhos que não são secos são menos apreciados e atrapalham um pouco a experiência.
Espumante
Não sei se todo mundo conhece a historinha da Champagne, mas basicamente esse tipo de vinho tem um processo específico que foi “patenteado” por uma região da França de mesmo nome.
Um órgão do governo francês estipulou em 1927 que apenas o produto elaborado na região (segundo uma longa série de outras restrições e práticas, como tipo de uvas, altura dos pés, tempo em garrafa…) poderia ser rotulado como Champagne. A lei valia para a França, mas outros países chegaram em acordos bilaterais para não usar o champagne em seus rótulos. As bebidas produzidas com o mesmo processo possuem um nome diferente em cada região. No Brasil são chamadas de Vinho Espumante, ou só espumante.
Houve apenas duas exceções (que eu saiba): a União Soviética, que seguiu utilizando a tradução em russo para champagne para os espumantes lá produzidos e uma pequena vinícola na cidade de Garibaldi (RS) que pode usar o termo segundo uma decisão do STF por utilizarem o método desde antes da denominação de origem francesa.
Portanto, no Brasil o espumante é um vinho gaseificado onde todo o gás provém de uma segunda fermentação e que deve ter pelo menos 4 bar de pressão dentro da garrafa. Pode ser branco, rosé ou tinto (embora tinto seja bem raro) e pode ser Nature, ExtraBrut, Brut, ExtraSeco, Seco, Meio Seco e Doce, do menos ao mais açucarado.
Conclusão
Acho que deu para fazer um pequeno panorama do básico sobre vinho neste singelo texto.
No próximo capítulo dessa saga iremos imaginar que somos um pequeno cacho de uva enquanto experienciamos toda a gama de processos industriais de prensagem, fermentação, aquecimento e resfriamento que sofreremos até chegarmos em uma garrafa.
E assim acho que vai ficar mais fácil comprar um vinho no supermercado ou encher o saco do seu amigo irritante com informações acuradas e científicas.
Referencias
[2] McGovern, P. et al. (2017) ‘Early neolithic wine of Georgia in the South Caucasus’, Proceedings of the National Academy of Sciences, 114(48). doi:10.1073/pnas.1714728114.
[3] Li, Hua et al. (2018) ‘The worlds of wine: Old, new and ancient’, Wine Economics and Policy, 7(2), pp. 178–182. doi:10.1016/j.wep.2018.10.002.
[4] https://web.archive.org/web/20160304065053/http://www.gwa.ge/upload/file/Georgia%20-%20Homeland%20of%20Wine.pdf
[5] https://www.sciencedaily.com/releases/2017/11/171102140521.htm
[6] https://powo.science.kew.org/taxon/urn:lsid:ipni.org:names:325876-2
[7] Winkler, A.J. (1974) General viticulture: By A.J. Winkler … et al.. Berkeley: University of California Press.
[8] Bruch, K. L. Lei do vinho sistematizada – Brasília, DF : SEBRAE ; Bento Gonçalves: IBRAVIN, 2012
Descrição da imagem de capa: Uma montagem de uma estante de vinhos de um mercado, à esquerda, e dois astronautas, à direita. Um astronauta parece estar olhando para a estante de vinhos e dizendo: “Pera aí, então a forma certa de escolher vinho no mercado é olhando o rótulo mais bonito?”. O outro astronauta, atrás do primeiro e lhe apontando uma arma, responde “Sempre foi”.