Dias atrás, Yang et al. (2020) publicaram aquele tipo de descoberta que deixa os paleontólogos com uma ponta de inveja: não apenas um, mas dois indivíduos encontrados praticamente completos e (muito provavelmente) em posição de vida, de uma nova espécie de dinossauro, o Changmiania liaoningensis (figura 1). Se trata de um ornitísquio, e nesse caso uma forma das mais antigas de um grupo chamado de Ornithopoda, cujos integrantes mais famosos incluem, além de muitos outros, o Parasaurolophus e o Iguanodon. Os ornitópodes foram um dos grupos mais diversos de dinossauros durante o Cretáceo.
Felizmente, os depósitos onde o Changmiania foi encontrado são bem estudados e até datados. Estas rochas fazem parte da porção mais inferior da Formação Yixian, conhecidas como Lujiatun Beds, no oeste da China. O método de datação foi o argônio-argônio (40Ar/39Ar). Ele é muito preciso para a datação de rochas vulcânicas como as tufas presentes ali onde estava o Changmiania, com aproximadamente 123 milhões de anos, o que corresponde ao começo do período Cretáceo. E além de úteis para a datação das rochas, as tufas vulcânicas, neste caso compostas basicamente de material derivado das cinzas das erupções, provavelmente foram as responsáveis pelo soterramento catastrófico que levou à preservação excepcional não apenas do dois esqueletos do Changmiania, mas de diversos outros vertebrados que já foram encontrados lá, como lagartos, mamíferos, e vários outros dinossauros.
É verdade que os possíveis hábitos fossoriais do Changmiania colaboraram bastante para sua preservação. Os autores do artigo inferem, a partir de evidências morfológicas e tafonômicas, que este novo dinossauro provavelmente costumava dormir em tocas escavadas por ele no solo. E provavelmente era o que eles estavam fazendo quando houve um grande fluxo de detritos vulcânicos e sua toca colapsou, acabando por enterrar, de uma só vez, os esqueletos em posição de vida.
E agora, imagino que você possa ter percebido a quantidade de fatores que convergiram para que esses dois Changmiania se preservassem de uma maneira tão impressionante. Temos aqui o hábito fossorial do dinossauro, como fato de ele dormir em tocas profundas, e grandes fluxos de detritos oriundos de uma grande atividade vulcânica que colaborou para o colapso das tocas, e, consequentemente, o enterro imediato desses dinossauros. E agora eu pergunto: acontece isso com todo fóssil? Quero dizer, todos os fósseis são completos e bem preservados como o Changmiania? A resposta é um não bastante categórico! E não apenas para fósseis de dinossauros, mas de todos os organismos já preservados no registro fóssil. Mas, como estamos falando de dinossauros…vamos continuar com eles para falar mais sobre o quanto conhecemos do esqueleto das espécies já encontradas.
O ponto que eu quero discutir aqui envolve muito um braço da paleontologia que se chama tafonomia, responsável por entender tudo o que aconteceu desde a morte do indivíduo, o seu soterramento, fossilização, até o momento em que é coletado pelo paleontólogo. Por mais que não seja o objetivo falar de todos esses processos, como a desarticulação das carcaças, transporte (seja por carniceiros ou por fluxos como enchentes, ventanias, etc), entre outros, fica claro para nós que a exceção à regra é o que aconteceu com o Changmiania.
O mais comum é que os restos do animal morto nem seja fossilizado. E quando acaba se fossilizando, isso normalmente acontece após sofrer um grau elevado de desarticulação, transporte etc. E no caso do Changmiania, mais do que morrer e ser soterrado rapidamente, o evento de soterramento foi o responsável pela morte do bicho, numa conjunção de fatores que colaborou para que tudo ocorresse lindamente (não tão lindamente pros dinos que foram pro saco, obviamente)!
Para termos uma melhor ideia sobre esse viés de preservação, vou trazer um artigo que lidou exatamente com isso usando o exemplo dos dinossauros terópodes. Cashmore e Butler (2019) demostraram, após analisarem mais de 400 espécimes de terópodes, que na média conhecemos de 10% a 50% dos esqueletos destes animais (figura 2). Além disso, eles notaram que, nos depósitos rochosos que se formaram em ambientes fluviais ou sob influência marinha, as taxas de preservação destes dinossauros são as menores, chegando até a 6% dos esqueletos preservados em alguns casos. Isso obviamente ocorre porque, se imaginarmos carcaças sendo transportadas em rios ou em marés, o grau de desarticulação será bastante grande por conta da força da água. Por outro lado, em depósitos lacustres e eólicos onde a força de transporte é mais sutil, essa média é muito maior, chegando em alguns casos a excepcionais 95% dos esqueletos preservados (figura 3), como acontece com o Coelophysis (há centenas de espécimes descobertos juntos e quase completos).
E essa história toda de que os paleontólogos acabam descobrindo fósseis muito incompletos é mais verdade do que você pode imaginar. E talvez o melhor exemplo de todos está aí para provar o meu ponto: a descrição do Tyrannosaurus rex. Mais detalhes curiosos da descoberta do T. rex pode ser facilmente encontrada no Google dado o imenso apelo não só popular, mas científico que esse dinossauro tem. Mas resumindo, ocorreu que o esqueleto designado como holótipo do T. rex reunia pouco mais de 30 ossos (!) (figura 4), tendo sido descoberto em 1902 e publicado em 1905 (Osborn, 1905).
E outro detalhe é que um outro esqueleto bastante incompleto e descoberto antes, em 1900, foi descrito nesse mesmo artigo do Osborn, e nomeado de Dynamosaurus imperiosus. Entretanto, foi reconhecido tempo depois como sendo apenas outro esqueleto incompleto de T. rex (Osborn e Brown, 1906). E essa pequena confusão de nomenclatura ocorre porque os fósseis são, na regra, muito incompletos. E isso torna a tarefa de comparar a anatomia de dois espécimes meio complicada se ambos não tiverem as mesmas partes preservadas. Ah, mas fique tranquilo que tempos depois foram e continuam sendo descobertos novos esqueletos de T. rex, e alguns praticamente inteiros como o espécime Sue, que preserva algo em torno de 85% de todos os seus ossos.
E daí vem toda a grata surpresa de vermos a descoberta do Changmiania. De tão raro de se encontrar espécimes completos, ver um novo dino sendo publicado a partir de dois, e não apenas um, esqueletos praticamente intactos e em posição de vida (os bichos provavelmente estavam dormindo) nos impressiona mais uma vez. E isso obviamente nos dá a maior vontade de sair para o campo agora, e ver o que de mais novo podemos encontrar! Acaba logo, quarentena!!!
Bibliografia
– Cashmore, D. D., e Butler, R. J. 2019. Skeletal completeness of the non‐avian theropod dinosaur fossil record. Palaeontology, 62(6), 951-981.
– Osborn, H. F. 1905. Tyrannosaurus and other Cretaceous carnivorous dinosaur. Bulletin of American Museum of Natural History, 21, 259-265.
– Osborn, H. F. e Brown, B. 1906. Tyrannosaurus, Upper Cretaceous carnivorous dinosaur. Bulletin of the AMNH. 22 (16): 281–296.
-Yang Y, Wu W, Dieudonné P-E, e Godefroit P. 2020. A new basal ornithopod dinosaur from the Lower Cretaceous of China. PeerJ 8:e9832 DOI 10.7717/peerj.9832.