Neste pequeno ensaio, eu discorrerei um pouco sobre minha visão a respeito da (suposta) propalada dicotomia existente entre ciência e religião com o intuito primordial de responder ao questionamento do título. Então, queridos leitores, grudem os olhos na tela do seu device preferido e venham comigo.
Bom, vou correr o risco de que ninguém mais tenha vontade de ler até o final depois de eu dar o spoiler logo no começo do texto: como eu já disse em outras ocasiões, título interrogativo sempre tem como resposta um NÃO bem redondinho, né?
Errado! Pegadinha do malandro hoje. Um cientista pode sim ser religioso, ter suas crenças, ir à igreja todo domingo, celebrar as festividades típicas de sua confissão e ainda assim ser um expoente em sua área de atuação, mesmo que atue em paleontologia ou genética molecular.
Pronto, dito isso, aponto dois caminhos possíveis para você, que agora lê estas linhas: partidários do TL;DR podem parar agora, pois já sabem a resposta. Já quem gosta mais do processo do que só do resultado, pode continuar a leitura, pois irei explicar meus argumentos sobre esta falsa dicotomia entre Cientistas ateus vs. Religiosos.
Para começar, vamos definir “religião”. Por que fazer isso? Não é óbvio? Não, não é. Sempre que se quer estudar algo, deve-se começar definindo, delimitando o campo de estudo para que todos os participantes do assunto saibam do que se está falando e possam participar esclarecidamente da troca de ideias. Como o termo “religião” tem uma definição muito particular dependendo de quem está pronunciando a palavra, temos que definir o que eu entendo por religião para poder prosseguir com a argumentação.
Eu tenho quase certeza que quando os leitores deste site de ciência ouvem a palavra “religião” ou “religioso” a imagem mental que se forma é de alguém com uma Bíblia sob o sovaco dizendo que Deus criou o mundo em sete dias e que a evolução é “só uma teoria”. Pois é, isso é a descrição de um fundamentalista religioso, não necessariamente de um religioso. E isso importa? Bastante! Vamos partir de algumas premissas bem básicas primeiro.
Seres humanos são seres inclinados a viverem em grupos muito mais do que isolados, ainda que instintivamente saiba-se que outros seres humanos são FDPs por natureza, que nada garante que alguém não irá roubar você ou te matar enquanto dorme para pegar o que você tem. Mesmo com os perigos potenciais, esta tendência ocorre porque a vida em sociedade garante mais vantagens do que desvantagens para seus membros, logo é uma estratégia evolutiva estável, a qual ocorre em diversas espécies. E aí, em sendo uma prática recorrente, outro mecanismo evolutivo fixou-se como uma forma de minimizar as desvantagens de ter de se viver próximo a outros indivíduos: comunicação, seja ela verbal ou não. Fazer-se entender e entender os outros gera previsibilidade, pois a partir do momento em que se compreende os sinais que outros indivíduos emitem, pode-se ter uma certeza maior se alguém está bravo ou receptivo e agir conforme. Após algum tempo de convivência, formam-se laços de amizade e confiança, pois se torna possível entender como outras pessoas pensam, do que gostam, do que desgostam, etc. e a sociedade pode prosperar em torno de algum consenso.
Isso funciona muito bem para grupos pequenos, especificamente até mais ou menos 150 indivíduos (o número de Dunbar). A partir daí, o cérebro não consegue processar informações específicas sobre cada vivente e o sistema começa a ruir. Mas, como bem explicou Harari na sua obra-prima Sapiens, a limitação de Dunbar pode ser superada quando todos compartilham um ideal comum, ou seja, comungam de um mesmo sistema de crenças, pois, desta maneira, você até pode não conhecer o seu vizinho a fundo, mas sabe que ele tem um mesmo conjunto de ideais que você. Então, para ser sintético: religião é um sistema de crenças que serve para amalgamar as sociedades em torno de um ideal comum. O mais antigo deles, talvez.
Agora pare um pouco de ler e olhe para cima. Tente lamber o cotovelo. Não consegue? Pois é, é impossível mesmo. Isso não importa de fato, foi só para distrair a mente um pouco. Mas, esqueça o cotovelo e continue olhando para cima. Reflita sobre sua realidade neste exato momento. Se você está em um ambiente estável, no qual as pessoas vêm e vão, onde o comércio está funcionando, os carros andando para lá e para cá, etc., então você está vivendo em uma sociedade baseada em alguma religião e você acredita muito nela, não importa quem você seja.
“Mas, eu não acredito em seres sobrenaturais, não vou a nenhum templo, não rezo, não tenho rituais, como você pode dizer que estou vivendo dentro de uma religião em que acredito?” Lembra que eu escrevi dois parágrafos acima que “religião” é um sistema de crenças? Pois é, qualquer construto mental humano que não exista naturalmente no mundo, isto é, que não estava aí antes dos seres humanos surgirem, é um sistema de crenças, logo, uma religião. Então, capitalismo é religião, comunismo idem. Democracia é religião, tirania idem. República é religião, monarquia idem. Filosofia é religião, torcida de futebol é religião, ser fã de cerveja gourmet é religião, empreendedorismo (real ou de palco) é religião, colecionar gibis de heróis é religião, ciência é religião.
Polêmico? Talvez, todavia, limpem as vossas mentes e pensem aqui comigo. Todas estas atividades que eu citei têm pontos em comum: são construtos humanos, agregam comunidades em torno delas, as pessoas que participam têm ideias em comum, existem objetos de culto e são pontos de discórdia e disputa.
“Ah”, dirão alguns, “você está distorcendo as definições para provar que um cientista necessariamente por ser um humano que vive em uma sociedade estruturada com mais de 150 pessoas é um religioso”. Sim e não. Sim, estou usando um recurso retórico chamado “generalização”, o qual é um elemento fundamental dentro da Lógica filosófica (estudo dos princípios da demonstração e inferência). Em geral, generalizações servem para reforçar um discurso ou chamar a atenção para uma grande premissa geral. Capturada a audiência, você entra nos pormenores.
Eu sei que 99% das pessoas deduzem o sentido de “religião” como tendo a ver com uma dimensão mais etérea e metafísica da existência humana. E, por definição, ciência e cientistas não podem basear premissas e conclusões em coisas não palpáveis nem irreplicáveis. Tudo isto está correto. Todavia, por “ciência” entendemos uma forma de conhecer o mundo (“estar ciente”) como o mundo é de fato, como as coisas acontecem “de verdade”, independente de querermos ou concordarmos. Ou seja, a ciência lida com aqueles fenômenos que estão aí antes de os seres humanos existirem, lida com aqueles fenômenos que se bastam por si, que não foram criados pela mente humana. Obviamente, estou sendo muito, mas muito tendencioso para o lado das ciências exatas e biológicas, as ditas “hard sciences”. Isso é porque eu desprezo as ciências humanas? Não, é simplesmente porque quem mais “sofre” desconfiança por ser cientista e religioso é justamente quem trabalha no campo das “hard sciences”.
Cientistas das áreas exatas e biológicas lidam com raciocínio binário (algo é ou não é) e explicações lógicas sobre os porquês de as coisas serem como são. Uma pedra cai =gravidade. Um filho é mais parecido com a mãe do que com a tia = herança genética. Perímetro de um círculo dividido pelo seu diâmetro = número Pi. E assim sucessivamente. Existem exceções? Sim, em tudo na ciência. Princípio de Popper. Nada é absoluto, tudo pode ser falseável ou falhar. Mas, tudo deve ter uma explicação lógica que faça sentido com a realidade e que funcione independente de os humanos acreditarem ou não que funciona. Este é o ponto que separa ciência hardcore de crença religiosa.
Por isso o preconceito e os muxoxos com, por exemplo, o fato de Francis Collins, do Projeto Genoma Humano, ter se declarado cristão praticante. Acho estranho? Sim. Julgo? Não mais. Hoje, acredito que importa mais o que as pessoas fazem de fato do que o que elas dizem. Como diz Nassim Taleb, um dos meus gurus intelectuais: você deve ter skin in the game. Ou em bom português, “o rabo na reta”. Você deve praticar e sofrer as consequências do que você fala, caso contrário, você é um, pra citar Taleb nas suas próprias palavras, um BS vendor (ou “falastrão enrolador fdp” em vernáculo). Desde que Francis Collins mantenha intactos o raciocínio lógico e o rigor nas análises, nos cálculos e na argumentação, não há problema em professar uma fé sobrenatural. Se o trabalho está sendo bem feito e sua crença religiosa não está causando mal a ninguém, deixa o cara em paz! Isso é bem diferente de certos indivíduos eleitos, que usam o dinheiro do contribuinte para passar leis com viés religioso fundamentalista em um país laico e secular. Aí, sim, julgo, desaprovo e incentivo o repúdio maciço. Não se deve misturar o privado com o público e é isso que muitos “Vossa Excelência” não sabem fazer, mas, até prova em contrário, Francis Collins o faz muito bem.
A crença religiosa pura, como entendemos na maior parte das vezes, não é uma coisa única. Na verdade, existem centenas de religiões, cada uma com uma forma de lidar com o mundo que não compreendemos. Porque o que basicamente faz uma pessoa precisar de algo no que se apegar é justamente o medo do desconhecido. A ciência não ajuda em nada, pois ela parte do princípio socrático do “só sei que nada sei”, vamos investigar. E se as coisas dão errado, bom, é porque o mundo é assim mesmo, tudo pode dar muito errado mesmo. Para uma parte da população isso pode ser confortável e até libertador. Meu caso, por exemplo. Desde que me convenci de que não era lógico acreditar que, se eu não fosse na Igreja no domingo ou não rezasse, Deus iria me punir, passei a sentir uma sensação de liberdade que é inexplicável.
Tenho meus problemas, meus medos, angústias, tristezas como todo mundo, mas busquei outras formas de encarar estes monstros desconhecidos e os dilemas da vida, como a filosofia e a análise probabilística (pela definição ampla, religiões também). Na verdade, várias religiões, especialmente orientais, como o budismo, não baseiam sua fé em uma ou mais divindades sobrenaturais, sendo mais filosofia de vida do que propriamente religiões como encaramos no Ocidente. Ou seja, pegar no pé de alguém se este alguém trabalha com pesquisa e vai à missa é simplesmente encher o saco porque sim. Desde que a fé se restrinja ao ambiente privado e não atrapalhe o trabalho acadêmico nem coloque em risco a saúde de outrem, deixe estar.
Mas, por que estou escrevendo sobre isso e defendendo um assunto aparentemente sem importância? Justamente para mostrar que isso não tem importância. Tenho visto muitas vezes nas Internets da vida um monte de tempo e recursos serem desperdiçados com discussões envolvendo ciência e religião, ora fundamentalistas criticando evolucionistas, ora cientistas tentando convencer religiosos sobre ciência, etc. e etc., em uma espiral de conversas de louco que no final explodem em um Big Bang gigantesco que dá origem a…nada.
As pessoas confundem o combate que deve ser empreendido contra desinformação e leis anti-científicas com discussão de internet para ganhar likes e views. Uma coisa tem efeitos práticos para a sociedade, a outra tem efeitos sobre o ego de alguns. O que será que tem maior potencial de fazer avançar o conhecimento e o esclarecimento científico para a população leiga? Fica a reflexão!
Até a próxima!