Durante esse período de pandemia muito tem se falado sobre medidas para prevenir infecções. O que talvez nem todos saibam é que todo hospital deve possuir uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar, conforme determina a Portaria 2616/98 do Ministério da Saúde, e que muitas das medidas que estamos atualmente discutindo para prevenir a transmissão do SARS-CoV-2 já eram implantadas no ambiente hospitalar.
Tudo começa com Ignaz Semmelweis, médico húngaro, em meados do século XIX. Durante o período em que atuava numa maternidade de Viena, Semmelweis se deparou com uma questão, no mínimo, intrigante: por que mulheres no pós-parto atendidas por estudantes de medicina morriam mais do que as mulheres na mesma condição atendidas por parteiras? A explicação estava justamente em quem fazia o atendimento. Os estudantes de medicina, todos homens, realizavam autópsias antes do atendimento às mulheres como parte do treinamento. Vamos lembrar que naquela época não havia luvas, os materiais não eram esterilizados e os estudantes sequer utilizavam aventais.
Já as mulheres não participavam da dissecção de cadáveres. Semmelweis chegou na relação entre a realização de autópsias e a febre puerperal após realizar a autópsia em um colega que havia falecido após se ferir com um bisturi contaminado. Ele notou que tanto o colega quanto as mulheres apresentavam as mesmas características da doença causada por uma bactéria (na época ninguém sabia ainda da existência de bactérias). Após essa constatação, ele passou a exigir que os estudantes de medicina lavassem as mãos com água clorada. Com essa simples medida, a taxa de mortalidade média caiu de 9,92% para 1,27% na enfermaria atendida pelos estudantes.
Contemporânea a Semmelweis, Florence Nightingale é considerada a precursora da enfermagem moderna (saiba mais sobre essa grande mulher aqui) Durante a Guerra da Criméia, reorganizou a assistência em enfermagem no hospital dedicado a feridos de guerra britânicos, construindo cozinha, lavanderia, dividindo os pacientes em enfermarias menores e estabelecendo rotinas de limpeza e desinfecção. Com essas medidas, a mortalidade no serviço caiu de 42,7% para 2,2%. Florence também foi responsável por instituir a vigilância epidemiológica nos hospitais, empregada até hoje, e a utilização de gráficos para demonstrar resultados obtidos com as análises estatísticas que ela realizava.
No Brasil a história do controle de infecção propriamente inicia com a organização de algumas comissões de controle de infecção hospitalar a partir de 1968, principalmente em instituições de ensino. Mas é a partir do final da década de 1970 que o Ministério da Saúde (MS) começa a publicar normas e regulamentações sobre o tema e, em 1985, o assunto ganha destaque na mídia com a morte do então recém-eleito presidente Tancredo Neves, decorrente de uma infecção generalizada após diversos procedimentos cirúrgicos. Ainda na década de 1980, o MS, assim como associações recém fundadas nos estados, passou a promover congressos e cursos para educar os profissionais da saúde para atuarem na área. Durante a década seguinte, o MS editou uma portaria e uma lei federal obrigando os hospitais a manterem um Programa de Controle de Infecção Hospitalar, até publicar em 1998 a Portaria 2616, ainda em vigor, que obriga os hospitais a manterem um serviço dedicado à prevenção e ao controle de infecções.
Mas por que esse tema é tão importante, ainda que pouco falado? Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 7% dos pacientes adquirem uma infecção hospitalar em países desenvolvidos. Nos países em desenvolvimento, caso do Brasil, essa taxa chega a 10%. E as consequências dessas infecções nem sempre são tangíveis. Além do aumento de custos para o sistema de saúde, aumento do tempo de internação e diminuição da força de trabalho decorrente de afastamentos, há o impacto psicossocial das infecções tanto no paciente quanto nos familiares, além do risco de óbito.
Outra atuação dos serviços de controle de infecção hospitalar é o controle do uso de antimicrobianos, com o objetivo de prevenir a resistência microbiana. É fácil imaginar que, com tantas infecções nos serviços de saúde, o uso de antibióticos também seja alto, o que faz com que bactérias adquiram mecanismos capazes de inibir a ação deles e sejam cada vez mais difíceis de serem tratadas. Um relatório britânico de 2014 estimou que, em 2050, infecções causadas por essas superbactérias serão responsáveis por mais de 10 milhões de mortes ao ano, ultrapassando inclusive a projeção de mortes por câncer (8 milhões ao ano).
Em 2017, a OMS publicou uma diretriz com 8 medidas cujo objetivo era reduzir a incidência de bactérias resistentes a diversos antibióticos. São elas: Acinetobacter baumannii, Pseudomonas aeruginosa e enterobactérias resistentes a carbapenêmicos (uma classe de antibióticos). E, sim, elas também são problema no Brasil. Segundo dados da ANVISA de 2018, essas bactérias estão entre as cinco principais causas de infecção generalizada dentro de UTIs para adultos no país. E entre elas o perfil de resistência do Acinetobacter sp. é o mais assustador: quase 80% deles são resistentes a antibióticos de amplo espectro.
Mas são apenas os hospitais responsáveis pelo aparecimento dessas superbactérias? Não. O uso indiscriminado de antibióticos na comunidade também tem grande influência. São os antibióticos receitados para tratar aquela dor de garganta, que na maioria das vezes é causada por um vírus, ou aquela diarreia duvidosa. Um estudo que analisou o impacto da lei que restringiu a venda de antibióticos em farmácias no Brasil revelou que o consumo deles era crescente até o início da vigência da lei (novembro de 2010). A partir desse momento, houve uma queda abrupta na venda desses medicamentos em farmácias privadas, sendo mais significativa nos estados do sul e sudeste.
Muitas vezes não nos damos conta do impacto que nossas ações têm na emergência de infecções e suspergermes. O uso de antibióticos não acontece apenas na saúde humana, mas é amplamente utilizado na agropecuária como fator de crescimento animal. Tanto que a OMS lançou em 2017 a iniciativa One Health, cujo objetivo é atuar através de diversas frentes de trabalho em prol da saúde pública. Nos próximos artigos vamos falar mais sobre o uso de antibióticos, o programa da OMS e como nossas atitudes impactam nesse sistema.
Referências:
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Oliveira R, Maruyama SAT. Controle de infecção hospitalar: histórico e papel do estado. Rev. Eletr. Enf. [Internet]. 2008;10(3):775-83. Disponível aqui.
O’Neill, Jim. Antimicrobial Resistance: Tackling a crisis for the health and wealth of nations. The Review on Antimicrobial Resistance, 2014. [Internet]. Disponível aqui.
Organização Mundial da Saúde. Guidelines for the prevention and control of carbapenem-resistant Enterobacteriaceae, Acinetobacter baumannii and Pseudomonas aeruginosa in health care facilities, 2017. [Internet]. Disponível aqui.
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Excerpted from lgnaz Semrnelweis. The Etiology, Concept, and Prophylaxis of Childbed Fever, trans. K. Codell Carter. Disponível aqui. Acessado em 21/02/2021.
Moura ML, Boszczowski I, Mortari N, Barrozo LV, Neto FC, Lobo RD, Pedroso de Lima AC, Levin AS. The Impact of Restricting Over-the-Counter Sales of Antimicrobial Drugs: Preliminary Analysis of National Data. Medicine (Baltimore). 2015 Sep;94(38):e1605. doi: 10.1097/MD.0000000000001605. PMID: 26402824; PMCID: PMC4635764.
Karin R. Kolbe. Médica infectologista, fã de Assassin’s Creed, rock, gatos e quebra-cabeça. Não necessariamente nessa ordem.