Imagine a situação: quando outras pessoas descrevem você, elas sempre usam as palavras erradas. A sua vida toda você viveu isso e, apesar da certeza de que aquelas palavras estão erradas, algumas vezes você nem mesmo sabe quais são as palavras certas. Você até chega a pensar que talvez tenha algum problema, porque não existem palavras que expliquem quem você é, como você se enxerga e se sente. O que você faria nessa situação?

Eu, pessoalmente, recorri à poesia, porque é na poesia que eu consigo ressignificar palavras e criar novos entendimentos sobre o mundo à minha volta. E é na poesia e nas artes em geral que várias pessoas trans (travestis, transexuais, transgêneros, mulheres e homens trans, transmasculines, agêneres, pessoas não-binárias, etc) têm remodelado significados e expressões, criando espaço para fazer a língua comportar as nossas existências.

A poesia está ligada aos processos de construção de identidade trans há bastante tempo. Em 1982 foi publicado o primeiro livro autobiográfico escrito por um autor trans no Brasil: A Queda Para O Alto, de Anderson “Bigode” Herzer. O livro se divide em duas partes: “Depoimento” e “Poemas”.

Já são 40 anos passados desde a publicação de Herzer, e o número de livros escritos por pessoas trans só aumenta: autobiografias, ficções, poemas. Há também um número crescente de artistas trans lançando músicas e aparecendo na mídia, cada vez mais reconstruindo as formas de falar sobre ser trans, sobre nossas experiências, anseios, medos e vitórias.

Como pessoa transmasculina que ama poesia, tenho me debruçado sobre a produção de poetas trans do Brasil, trazendo este tema para minha pesquisa de mestrado. Antes de continuar o texto, preciso dizer: o que vem a seguir é uma adaptação de um ensaio que escrevi para a disciplina “Dimensões da poesia e do poético”, na Universidade Federal de Lavras (UFLA).

Em A Função Social da Poesia, o crítico e poeta americano T.S. Eliot discorre sobre como a poesia deve afetar “a fala e a sensibilidade de toda a nação”. Poderíamos discutir que ele menciona “nação” por causa do contexto em que estava (durante a Segunda Guerra Mundial, num momento com grande apelo às identidades nacionais), mas para este texto, basta extrapolar: em vez de nação, pensaremos em sociedade. Seguindo o que Eliot diz, a poesia deve causar transformações na linguagem e nos sentimentos dentro da sociedade em que ela é feita. A função da poesia é reorganizar a linguagem, fazendo surgir novas formas de comunicar. Entretanto, não é uma reorganização feita de qualquer maneira: o poeta deve ser capaz de levar o público do poema a descobrir novas formas de se expressar, de identificar em si e no mundo sentimentos e ideias. A poesia precisa desta dimensão que é em parte criadora, em parte descobridora dos caminhos da linguagem.

Quando pensamos na poesia de um grupo específico dentro da sociedade, principalmente de grupos marginalizados, nos deparamos com uma criação/descoberta potencializada. Não digo isso para sugerir que grupos hegemônicos não podem criar (isto seria falso), mas sim porque as vozes fora do cânone falam de coisas diferentes do que já é dito. Elas também falam de maneira própria: ainda que usem uma mesma língua, não falam exatamente a mesma linguagem, expressam-se de modo diferente. Com uma linguagem diferente, novos sentidos são produzidos, novas sensibilidades são descobertas, novos limites são reconfigurados.

Assim, a função social da poesia de poetas trans é criar novas sensibilidades e novos sentidos sobre as nossas experiências. É uma poesia que se faz a partir de vozes trans(gressoras), ou seja: poetas trans que usam suas vozes para transgredir os limites do cânone cisgênero. As vozes trans(gressoras) questionam e recriam os signos do que é corpo, sexualidade, marginalidade, violência, resistência, política, ser mulher/ser homem.

Essas questões são abordadas no livro “Antologia Trans: 30 poetas trans, travestis e não-binários”, que surgiu a partir de oficinas de poesia do Cursinho Popular Transformação, em São Paulo. Destaco “Vida sem título”, poema de autoria coletiva:

O mundo é puro segredo.
Tudo é proibido.

É preciso, mesmo,
estar atento e forte,
porque de morte
a gente já tá cheio

Na boca, gosto de medo.
Difícil mesmo temperar o silêncio.

No grito de dor, no prazer temporal
do sexo anal.
Preenchimento, satisfação.
Solitude.

O nascimento é o fim de tudo.
Ponto final.

Em poucos versos, o poema elabora sobre questões recorrentes (mesmo que não onipresentes) na experiência das pessoas trans: o medo e a insegurança de enfrentar a sociedade; a constante ameaça de morte no país que mais mata trans segundo os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA); a prostituição; o sexo; a solidão.

Outro aspecto da poesia trans é o uso do pajubá, código linguístico LGBT brasileiro. Um exemplo é o poema “Literatura do corpo”, de Ika Eloah, também na Antologia Trans:

Picumã,
cílios de garota,
prótese, eu quero prótese,
neca,
Pirelli,
edi,
e unha de boneca.
Corpo de pajubá,
travestilidade comunica,
travestidade comunista.

(Picumã = cabelo ou peruca; neca = pênis; Pirelli = silicone – geralmente industrial – injetado para criar curvas no corpo; edi = ânus)

Utilizando o pajubá, a poeta expressa o desejo de modificar o corpo, ressignificando, inclusive, o que é o corpo feminino: não é só ter características tradicionalmente associadas às mulheres (cabelos e cílios longos, seios, curvas, unhas compridas), mas também o que a norma cisgênera determina como de homem (o pênis). Ao definir este “corpo de pajubá”, Ika ressalta que aquele é um corpo diferente, marginalizado, mas desejado – por ela, por outres.

O pajubá não é só a linguagem usada pela poeta, é uma forma de se reconhecer e se constituir socialmente.

Outro poema que aborda os limites do corpo de uma perspectiva trans é “Sinfonia do Corpo”, canção de Jup do Bairro. No trecho a seguir, Jup questiona o corpo e o analisa:

Paz é corpo
Afinal, o que pode um corpo?
O juízo judaíco-cristão me silencia
Mas é que eu falo demais
Se eu ‘to com fome, falo que eu ‘to com fome
Se eu ‘to com frio, falo que eu ‘to com frio
E caio
Caio, mas me levanto
Mesmo sem me mover, ainda danço
As veias pulsam
O coração em processo de musicalização
Eu não sei o que pode o corpo
Células, tecidos, órgãos
Os órgãos compõem a melodia para o sistema
Sistema tegumentar, esquelético, muscular, cardiovascular
Respiratório, digestório, urinário, nervoso, genital
Capitalista
E não consigo ouvir
Passei toda a minha vida sob a imersão dessa sinfonia

Jup disseca o corpo com palavras, para poder desconstruí-lo poeticamente. Ao listar os sistemas que compõem a fisiologia humana, Jup adiciona o sistema capitalista, que também estabelece significados sobre o que é um corpo humano. O capitalismo, em conjunção ao “juízo judaico-cristão” que a silencia, cria limites para o que é o corpo. Os dois versos finais apontam para o quão limitante é estar preso às convenções sociais.

Quando consideramos as criações estéticas destes e de outres artistas trans brasileires, podemos perceber novas vozes e novas formas de falar e sentir: são criações que desafiam o que foi estabelecido pelo status quo. Com isso, as vozes trans(gressoras) ampliam as possibilidades do que é dito pela poesia.

Assim, a poesia cumpre sua função social de usar e reinventar a língua, enquanto reinventamos formas de falar sobre nós.

Fontes:
Sinfonia do Corpo, Jup do Bairro. Disponível aqui.

Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. ANTRA, IBTE. Disponível aqui.

De poesia e poetas. Capítulo: A função social da poesia. T. S. Eliot

Antologia trans: 30 poetas trans, travestis e não-binários. TRANSFORMAÇÃO (org.).

Fonte da imagem de capa (modificada)