Olá pessoas. Como bem sabemos, lancei um livro que aborda a questão das mudanças no cenário alimentício a partir da perspectiva ampliada da Teoria Cultural de Riscos. Uma dessas mudanças em voga está relacionada com a estética do poder nas relações trabalhistas.
Comemora-se o dia do trabalhador na data de primeiro de maio. O período é importante para refletirmos sobre o trabalho, nossas expectativas e a maneira como podemos alcançar maneiras mais atrativas de vivenciarmos a dimensão ontológica do mesmo.
É sobre este tema que trataremos nesse texto. Hoje, iremos abordar a questão da mudança na estética de poder dos trabalhos relacionados com alimentos. E para deixar a redação ainda mais temperada, irei exemplificar toda a problemática com meus próprios relacionamentos laborais ao longo de 2022!
O tema é bem importante, pois esse mercado foi um daqueles de maior alteração pós-pandemia. Muitas cadeias de suprimentos se reorganizaram e os contratos laborais ficaram mais flexíveis, abrindo espaço para pejotização da situação laboral, trabalho análogo à escravidão e bloqueio branco de trabalhadores.
Experiência pessoal
Minha relação mais próxima com o mercado de trabalho começou relativamente cedo, quando ainda estava na graduação. Durante meu TCC, fiz um caminho diferente de meus colegas e escrevi uma análise etnográfica dos relacionamentos laborais. Ao todo, realizei seis atividades de trabalho com alimentos (vigilância sanitária, restaurante comercial, restaurante turístico, comércio ambulante, indústria de congelados e pescaria artesanal). Tudo isso foi um pouco antes da pandemia de Covid-19.
Adorei ter realizado cada uma dessas atividades. Gostei tanto que me especializei em Engenharia de Suprimentos, a fim de estudar ainda mais essa associação logística entre matéria prima e forças produtivas. Ao final de minha graduação, eu já havia passado em um concurso e esperava não ter que realizar atividades análogas a essas novamente. Esperava ser um fiscal de vigilância sanitária por muito tempo…
Porém, muita coisa aconteceu em 2022 e isso mudou radicalmente minha visão. Eu e minha adorável noiva fomos morar juntos, isso fez com que eu não pudesse mais esperar sentado a convocação do órgão público. Tive que procurar trabalho no setor privado, e assim o fiz. Contudo, o mundo laboral pós-pandemia havia mudado bastante desde 2019. Muitos processos descritos em meu TCC haviam se intensificado. Olhando de retrospecto, foi monstruoso ver como o mundo havia mudado tão rapidamente!
Os trabalhos e os poderes
Esse texto analisa a perspectiva dos micropoderes na esfera do trabalho (interorganizacional) e dos macropoderes, representados pelas cadeias de suprimentos (interorganizacional). Reconhecer a maneira como um influencia o outro é a chave para entender o comportamento organizacional como um todo. Por isso, prefiro iniciar nossa jornada mostrando um pouco de minhas lições pessoais.
Recomeçando na iniciativa privada, eu queria iniciar com atividades mais manuais e repetitivas. Afinal, eu havia saído de um ciclo hercúleo de estudos para concurso. Escolhi trabalhos compatíveis com meu conhecimento em logística de alimentos e cultura alimentar.
Em quase todas essas atividades, deparei-me com situações de trabalho mais instáveis e apreensivas. Os ambientes pareciam incertos com relação ao dia de amanhã, e tudo isso se refletia na política da empresa ao tratamento dos colaboradores. E também ao tratamento entre os próprios funcionários!
Muitos problemas foram levantados nesse período relacionados ao comportamento. Em uma empresa, funcionários eram assediados a vigiar (e filmar) outros colaboradores. Havia até mesmo aqueles que falavam mal do chefe para gravar o colaborador retrucando de volta! O uso de drogas entre funcionários também fora pronunciado durante algumas atividades. A instabilidade empregatícia e o assédio moral foram realidade por um longo tempo durante essa jornada.
Porém, durante minha fase mais desesperadora por emprego, nada foi tão ruim quanto trabalhar onze hora por dia, sem direito a folga e com horário de almoço que não dava uma hora. Essa foi minha atividade de repositor de estoque, em que o contrato de trabalho fora pelo regime de pejotização.
Para não cair no crime de ser desonesto, eu tinha, sim, uma folga. Eu podia tirar um domingo a cada três semanas de trabalho para descansar. Porém, quase sempre o patrão pedia para usar aquele dia como hora extra. Não havia maneira alguma de negar esse “privilégio”.
O regime de pejotização é aquele em que o trabalhador é contratado como se fosse um prestador de serviços [1]. Assim, instaura-se a ideia de que o mesmo é uma entidade jurídica e empresarial ao invés de um se humano, que tem direitos no seu local de trabalho. Trata-se, dessa forma, um CPF como CNPJ (pessoa jurídica, ou “pejota”).
Nessa época, parei por completo com produção de textos ao portal e a escrita de meu projeto autoral. Só havia tempo de estudar um pouco minha pós-graduação e refletir em como seguir adiante.
Depois desse período, quando finalmente consegui fechar algumas contas em aberto e fazer minha mudança, tive uma crise de burnout que me deixou incapacitado ao mercado por algum tempo. Quando finalmente senti-me à vontade para retornar, consegui me consolidar em uma empresa com mais cuidado em relação aos recursos humanos e capital social.
Essa jornada de 2022 foi aterradora para mim. Pensei muito naquelas pessoas que, ao contrário de mim, não tinham mais esperanças de empregos e relações melhores no ambiente laboral. Claramente reconheço que problemas assim sempre estarão rodeando o meio profissional de alimentos de última milha, contudo a frequência e o grau de exposição aos riscos gastro-anômicos deixaram-me com curiosidade para saber o quanto o mundo havia mudado…
A gastro-anomia e o trabalho
Em meu livro, abordo diferentes maneiras pelas quais os riscos gastro-anômicos afetam a realidade laboral, bem como os problemas que são gerados no campo social. O risco em que ocorre mais destaque é o risco estético, que destaca a forma como o poder é estruturado e mantido pelas empresas do ramo alimentício. Tudo que envolve poder inevitavelmente está relacionado com a capacidade de alterar nossa interpretação do passado, mexer com o presente e criar novas visões de futuro [3]. Logo, o poder possui uma perspectiva atemporal e multidimensional, que impulsiona a criação de relacionamentos estéticos e artificiais que mudam a conjuntura do trabalho, seus valores e apreensões.
Novos aparatos estéticos surgiram, impulsionando poderes emergentes no trabalho. Talvez o mais proeminente seja o poder coercitivo, que ganhou novas conotações com a lógica laboral mais recente. Agora, a gerência pode castigar funcionários usando táticas de bloqueio branco, ou seja, minando o crescimento do trabalhador por métricas totalmente aquém do profissional.
No Brasil, a prática ocorre rotineiramente com motoboys de aplicativos de entrega de alimentos [2]. O bloqueio aparece quando os mesmos faltam ao serviço para irem aos eventos sindicais. Depois de bloqueados, os colaboradores não conseguem usar o aplicativo de trabalho como antes, conseguindo menos clientes e serviços.
Em meus ambientes laborais, eu fui bloqueado logo quando disse que preferia meu dia de descanso ao invés de hora extra. Consegui o que queria, porém me foram delegadas muitas funções, diminuíram meu horário de almoço e fui constantemente assediado e vigiado no trabalho.
A natureza das relações de poder mudou bastante também com o poder de recompensa. Ele se refere à capacidade de agentes serem premiados por seguirem alinhamentos e estratégias consoantes aos dos atores mais poderosos. Numa cadeia de suprimentos robusta, refere-se à recompensa através da valorização de parcerias, compras esporádicas, divulgação, crédito facilitado e apoio técnico.
Numa perspectiva intraorganizacional, esse poder é facilmente observado com o funcionário que acata ordens de filmar e assediar outros colaboradores. Muitos benefícios podem ser colhidos sobre quem pratica, mas a inconstância e a salvaguarda minam táticas mais profundas de melhoria laboral.
Há ainda o poder de conhecimento, relativo ao agente que sabe por si mesmo o que deve ser feito por assimetria informacional. Outros funcionários acatarão suas ordens e imitarão seu comportamento, apesar de o mesmo não estar alinhado com os ditames da organização.
O exemplo mais claro desse poder é visto na cadeia de suprimentos, quando olhamos em retrospecto uma empresa líder de mercado de certo segmento. Todas as outras empresas do ramo, que não conseguem processar dados com tanta veemência, estarão seguindo estratégias organizacionais e financeiras iguais a adotadas pela empresa maior.
Muitos riscos podem ser colhidos dessa relação. O grau de similaridade cultural, nível de serviço, quantidade de parceiros, suporte financeiro e objetivos podem ser diferentes entre cada empresa.
Quem é leitor das antigas talvez se lembre de uma relação econômica que reforça esse poder. Estou me referindo à estratégia me-too de redes de fast food. A primeira vez que escrevi sobre o tema foi nesse texto aqui. A redação reforça que esses estigmas já existiam antes da pandemia, mas certos fatores conjunturais alteraram sua intensidade. No meu livro em especial, destaco esse tipo de estratégia entre estabelecimento voltados ao consumo de produtos artesanais.
O livro já havia sido divulgado em minha última redação. Você já leu sobre ele? Recomendo a leitura através desse link aqui. Não deixe de conferi-lo se o tema for de seu interesse!
Esse é somente um texto do que é, para mim, um mês em comemoração ao trabalho e ao trabalhador. Pretendo lançar uma resenha analítica sobre um filme moderno que exemplifica esses relacionamentos laborais no meio culinário: fome de sucesso! Muito obrigado pela leitura e até a próxima!