(spoiler alert!!!)

E se houvesse pessoas com superpoderes? Te lembrou um episódio do Contrafactual, do Deviante? Você está certíssima! Foi o 17° episódio dessa série de podcasts que confabulou “e se isto ou aquilo…”.

Foi nesse espírito que Eric Kripke adaptou a HQ The Boys, do quadrinista Garth Ennis, para as telas.

Ao Omelete, Kripke contou:

“… a verdade é que se superpoderes existissem, eles teriam efeitos realmente violentos no ser humano.”

No jogo entre ficção e realidade, a série mostra toda essa violência a partir da ótica de The Boys, um grupo inusitado de pessoas afetadas pelos super-heróis.

Cartaz da série The Boys, divulgação da Amazon Prime Video

Superilegais e imorais

Para qualquer um que viu filmes da Marvel e DC, não passa despercebida a enorme destruição que se segue aos poderes de personagens como o Super-Homem e o Capitão América.

Ao satirizar esses e outros personagens clássicos de narrativas heroicas, The Boys retrata o lado daqueles que perderam bens, saúde e vidas graças à eterna campanha de luta do bem contra o mal.

A dualidade herói-vilão é colocada em xeque a todo momento. Se vilões agem contra as leis, assassinam e estupram, não são diferentes dos super-heróis (os supers) mais famosos dos Estados Unidos.

Assim, a série escancara que alguns males e práticas ilegais são tolerados e mantidos em segredo, como o assédio sexual praticado por supers. Ou ainda os frequentes acidentes decorrentes de suas ações, que matam e causam danos a cidadãos e estrangeiros.

Já outros males são combatidos em nome da lei e de valores como a defesa da pátria. Por exemplo, os delitos cometidos por cidadãos estadunidenses. Ou ações classificadas como terroristas, geralmente atribuídas aos estrangeiros e imigrantes recentes.

Assim, há ilegalidades permitidas e não permitidas em nome de ideais atrelados a uma visão de mundo e a um modelo de vida. Nesse caso, mais especificamente a um modelo de segurança pautado pelo bem Vs. mal.

 

Naturalização dos super-racistas

A corporação Vought International, que gere os principais supers, é um exemplo dessa perversão do bem na luta contra o mal. Seu nome já diz muito: seu fundador, o falecido cientista Frederick Vought, pretendia fortalecer o nazismo ao criar seres superiores a partir da raça ariana.

Ao notar a derrocada de Hitler com o fim da Segunda Guerra Mundial, Vought foi abrigado pelo governo dos Estados Unidos, onde fundou a empresa para dar continuidade a seu plano.

E como criaria super-heróis? Com uma droga chamada Composto V, testada por Frederick nos campos de concentração. A droga se mostrou bem-sucedida quando aplicada em bebês.

Contudo, a corporação vendia a crença de que os supers seriam escolhidos por Deus. Assim, o Composto V era um segredo guardado a sete chaves até para muitos super-heróis que acreditavam ter nascido com superpoderes.

“Detalhe” fundamental: os bebês selecionados para virarem supers eram quase todos brancos. Afinal, a empresa seguia os critérios nazistas de suas origens, embora esses fossem mais secretos do que o próprio uso da droga.

Outro “detalhe”: os supers mais famosos eram em sua maioria homens brancos heterossexuais sarados, seguindo o padrão normativo dominante não só na Alemanha nazista, mas nos EUA e grande parte do mundo.

Paralelos hoje

Democracias em vertigem

Guardadas as fantásticas proporções, isso tudo remete a situações bem concretas que vivemos atualmente. A própria série provoca o debate da retomada da adesão a ideais e práticas nazistas por governos eleitos democraticamente (e seus seguidores movidos a ódio, vide o trumpismo e o bolsonarismo).

Também problematiza o cinismo e racismo implicados em ideais como a “salvação da América”, escancarada na frase do super narcisista Capitão Pátria: “a liberdade tem um preço”. Ou seja, a morte de civis (geralmente não brancos e pobres) seria parte da luta do bem contra o mal.

Extrativismos

Mas podemos pensar em outros debates possíveis. Um deles é o dos impactos sociais e ambientais dos extrativismos.

Não me refiro ao extrativismo local de pequena escala, realizado por camponeses, comunidades tradicionais e povos indígenas. Essas populações extraem sementes, plantas, mel, frutos, castanhas e muitas outras fontes de alimento, saúde e renda da natureza para viverem.

Me refiro aos extrativismos elencados pelo pesquisador uruguaio Eduardo Gudynas com base no contexto latinoamericano.

São empreendimentos que extraem, com alta intensidade, grandes volumes de bens primários direcionados majoritariamente para a exportação. Por terem pouco ou nenhum processamento industrial, não geram valor agregado significativo.

Demandam insumos e tecnologias importados e mão de obra qualificada sobretudo estrangeira, embora prometam gerar empregos para a população afetada e recursos para as economias locais.

Abarcam atividades de mineração, agropecuária, petróleo e gás.

 

Composição de imagens que representam extrativismos. De cima para baixo, da esquerda para a direita: venda de madeiras nobres; plantio de grãos em extensas áreas, como a soja; criação de animais para exportação de carne, como ocorre na pecuária bovina de corte; mineração não artesanal; extração de petróleo e gás, na foto por meio de plataformas marítimas; por último, o desmatamento e devastação imbricados em muitas dessas atividades. No caso da exploração de petróleo e gás, os vazamentos do combustível causam danos a comunidades pesqueiras e animais marinhos.

Impactos nos territórios

O conceito de extrativismo nasceu de mobilizações cidadãs locais e regionais contra esses empreendimentos. Dessa forma, se centra nos territórios enredados nas cadeias globais de produção e distribuição de commodities que reforçam a posição da América Latina como fornecedora de matérias-primas (Nota 1).

Os danos causados aos territórios pelos variados extrativismos não são contabilizados ou previstos em sua totalidade em documentos oficiais como o EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental).

Por isso, é importante calcular a mochila ecológica desses empreendimentos. Ou seja, além da matéria efetivamente utilizada e comercializada (como ferro e petróleo), são consumidas toneladas de matérias e bens como água, energia elétrica, solo etc.

Além disso, há efeitos como: desmatamento ilegal; contaminação de rios e solos; adoecimento de seres vivos e impacto na saúde pública; dependência econômica de municípios a empresas; os recorrentes deslocamentos forçados de populações; desemprego deixado após a saída de uma mineradora; entre muitos outros.

Fora a reprodução de desigualdades de gênero, sexualidade e raça/etnia na seleção de trabalhadores e nas suas condições de trabalho (Nota 2).

Se os danos previstos raramente são reparados após a saída de um empreendimento extrativista, imagine aqueles omitidos dos relatórios…

 

Consenso das commodities

Apesar disso tudo, governos nacionais incentivam as atividades extrativistas por meio de medidas como: isenções fiscais; crédito e perdão de dívidas; financiamento de grandes projetos de infraestrutura.

Esses projetos de infraestrutura são pensados como parte da “logística” dos extrativismos. Logo, são priorizadas as demandas de empreendimentos exportadores em detrimento de reivindicações das populações locais relativas ao acesso a direitos: saúde, educação, mobilidade, energia, água, saneamento básico etc.

Há um consenso em torno da importância dessas atividades intensivas. Consenso esse construído diariamente por empresários que agem em conluio com nossos representantes políticos. Muitas vezes, os próprios políticos são empresários em ramos dos extrativismos (Nota 3).

E esse modelo de exploração é propagado pelos principais meios de comunicação – vide o “Agro é Pop, Tech, Tudo” antes, durante e depois da novela.

Isso cria respaldo social para a flexibilização de normas ambientais, trabalhistas, fundiárias e fiscais pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de cada país.

Por quê? Os extrativismos são vistos como inescapáveis para que haja crescimento econômico.

Governos progressistas e conservadores, de esquerda e de direita, todos buscaram o crescimento por via das commodities. A diferença, como Gudynas explica, é a forma de justificar essa opção. Para governos progressistas, esse crescimento possibilitaria maior justiça social: mais obras, mais empregos, mais renda para os pobres.

Mais: os extrativismos são vistos como naturais dada a abundância de recursos existente em regiões como a América Latina – nisso, progressistas e conservadores muitas vezes concordam…

Nessa lógica, se Deus (e/ou a natureza) nos deu um subsolo rico em minérios, florestas ricas em árvores nobres, rios ricos em peixes, solos férteis para agricultura e capim para gado, devemos explorar! Devemos???

 

Efeitos derrame

Se o lema é “exploração acima de tudo, Deus acima de todos”, os sentidos de justiça e de democracia são corroídos. Pois a exploração estaria acima da própria natureza e dos seres vivos, inclusive dos direitos humanos. E o conceito de natureza é reduzido à ideia de “recursos naturais” exploráveis.

Assim, Gudynas destaca que os impactos socioambientais não se esgotam nos territórios afetados, pois seus efeitos se derramam para toda a sociedade.

Por isso, a sociedade não só permite que empresas extrativistas atuem ilegalmente, como mesmo suas práticas aparentemente legais subvertem as normas socioambientais. Daí o conceito de alegalidade de Gudynas (2013, p.11):

“prácticas que en su apariencia formal contemplan las exigencias legales, pero sus consecuencias son claramente ilegales. En otras palabras, la alegalidad aprovecha vacíos legales, o cumple la formalidad de la ley, pero sus consecuencias son indeseables en lo social o ambiental”.

 

Narrativas heroicas

A essa altura talvez você tenha captado a referência ao The Boys. A crença disseminada nos super-heróis e nos extrativismos faz com que alguns males e ilegalidades sejam tolerados em nome do combate ao mal.

A narrativa heroica do Agro é Tudo pode ser vista nas promessas de desenvolvimento, crescimento econômico, justiça social, produção de alimentos e tecnologia, oferta de empregos e geração de renda.

Especialmente porque os países que se tornaram os principais fornecedores de commodities são aqueles vistos como pobres ou menos desenvolvidos.

O tal Sul Global se cristaliza como exportador de bens primários para o Norte Global, de onde importa produtos manufaturados com maior valor agregado e tecnologia.

Para a narrativa heroica ser persuasiva, não são contabilizados ou ponderados os impactos locais e seus derramamentos por toda a sociedade.

Impactos como a reprodução de desigualdades regionais e sociais na implantação de grandes projetos. Ou o aumento de desemprego e da pobreza quando se esgotam determinados recursos de uma localidade. Ou o aumento do custo dos alimentos para a população do país, enquanto se exporta grãos e carne.

 

Super-heróis

Assim como nos supers, as vítimas diretas não são as únicas afetadas pela existência de superpoderes. Toda a sociedade é afetada pela crença nos super-heróis em The Boys.

Na série, a Vought pressiona o Congresso para que os supers sejam incluídos no orçamento das Forças Armadas e se tornem um poder acima da Constituição e da soberania nacional.

Em nome da defesa do bem vs. o mal, os supers nem mesmo precisam responder à opinião pública pelos seus erros e injustiças.

Para isso, eles têm equipes de advogados e especialistas em relações públicas. Graças a eles, as vítimas diretas abrem mão de seus direitos constitucionais para receberem indenizações pelas suas perdas. E os danos que os superpoderes causam não são divulgados pela imprensa.

Como se não bastasse, mesmo quando seus segredos sórdidos são revelados, o consenso criado em torno dos supers abre brecha para a contínua fragilização da democracia.

Na série, o ódio e o medo à diversidade social foram mobilizados em prol do autoritarismo que promoveu, direta ou indiretamente, o extermínio de imigrantes, cidadãos negros etc.

 

Superextrativismos

No caso dos extrativismos, tornados superextrativismos pela narrativa heroica, as suas ilegalidades são toleradas legal e socialmente, em maior ou menor grau.

Ilustrativo disso são as muitas ocorrências de violência física e trabalho análogo à escravidão em fazendas do agronegócio, áreas de mineração e de exploração madeireira.

Ou a atuação de empresas extrativistas sem atender a exigências do direito nacional e internacional, como a licença ambiental e a consulta prévia aos povos indígenas e comunidades tradicionais que habitam o território (Nota 4).

Menos evidentes são as alegalidades, ou seja, as práticas com aparência de respeito às leis.

Como nos casos de mineradoras que parecem cumprir as exigências da lei de licenciamento ambiental.

Porém, fracionam um único projeto em múltiplos pedidos de licença ambiental, o que dispersa os danos e fragmenta os afetados pelos projetos extrativistas, dificultando a responsabilização das empresas.

Ou quando as empresas afirmam que as condicionantes da instalação de seus projetos estão “em cumprimento”, o que subverte a necessidade lógica da condicionante anteceder o fato.

Ou ainda, quando produzem documentos e dados de seus impactos diretos, mas não disponibilizam essas informações para a população afetada. Pelo contrário, produzem desinformação e confusão acerca dos procedimentos legais de participação na instalação dos projetos.

 

Produção de inimigos

Talvez uma das piores consequências das narrativas heroicas seja a noção do que é o mal a ser combatido: aquilo e aqueles que não se adequam ao modelo de vida dos supers. Quem poderia ir contra o que é supostamente bom, natural ou divino?

Os superextrativismos não são tão diferentes dos super-heróis nisso.

Populações que resistem à implantação de grandes projetos e ao Agro são taxadas de ignorantes, contrárias ao desenvolvimento e até de criminosas – não raro, respondem criminalmente por resistirem.

Daí a corrosão das noções de justiça e de democracia, pois outras vozes são silenciadas e reprimidas.

A luta dos the boys contra os supers revelou que esses não têm nada de divino ou natural. E o que foi criado por humanos, com determinados interesses e ideais, pode ser denunciado, desfeito, combatido.

 

Notas

Nota 1:

Segundo Maristela Svampa (2013), commodities são produtos indiferenciados cujos preços são fixados internacionalmente. São produtos de fabricação, disponibilização e demanda mundial que não requerem tecnologia avançada para sua fabricação e processamento.

Nota 2:

Sobre desigualdades de gênero, sexualidade e raça/etnia em grandes projetos, ver o livro do PACS (Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul), “Mulheres atingidas: territórios atravessados por megaprojetos” (2021).

Nota 3:

O site De Olho nos Ruralistas tem mapeado políticos que são figuras-chave do extrativismo, como donos de grandes fazendas, de mineradoras e de madeireiras.

Nota 4:

A Convenção nº169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais estabeleceu o direito de consulta e participação dos povos indígenas no uso, administração e conservação de seus territórios.

 

Para saber mais

Ana Luisa Queiroz et al. (2021). Mulheres atingidas: territórios atravessados por megaprojetos. Rio de Janeiro: Instituto PACS.

Andréa Zhouri (Org.). (2018). Mineração: violências e resistências: um campo aberto à produção de conhecimento no Brasil. Marabá: Editorial iGuana; ABA.

Eduardo Gudynas. (2013). Extracciones, extractivismos y extrahecciones: un marco conceptual sobre la apropiación de recursos naturales. Observatorio del Desarrollo, CLAES, Quito, n. 18, p. 1-17.

Maristella Svampa. (2013). Consenso de los commodities y lenguajes de valoración en América Latina. Revista Nueva Sociedad, n. 244, p. 30-46.

Renata Lacerda. (2021). Violações de direitos humanos em conflitos socioambientais no Brasil. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Pelotas (RFDP), v.7, n.1.