Em 2014 o governo chinês anunciou um plano que assustou todo mundo que já leu algum livro sobre distopias na vida: um “sistema de crédito social”, uma plataforma de avaliação de cada cidadão, empresa ou empreendimento do país através de uma classificação por pontos, que conferiria mais e melhores benefícios para os que estiverem no topo do ranking, enquanto jogaria os com poucos pontos numa situação de total ostracismo e marginalidade.

O sistema deverá ser implementado em sua totalidade só em 2020 e testes já vem sendo feitos há algum tempo, mas agora o governo chinês decidiu implementar o programa em maio e de cara restringirá viagens de avião e trem.

O governo chinês trabalha há algum tempo para controlar e prever as ações de sua população com um sistema que parece saído de Minority Report, mas isso ainda não é suficiente. O politburo deseja incutir uma forma de adequar o comportamento dos cidadãos de forma que eles andem na linha o tempo todo, com medo das consequências e a forma que encontraram para fazê-lo, por mais absurda que seja a ideia, foi criar um sistema de crédito social com base num ranking, conferido a cada cidadão ou empresa.

A ideia surgiu da necessidade de contornar o sistema bancário caótico da China: o Banco Popular possui dados de todos os chineses mas não os meios para cruza-los, a grande parcela dos cidadãos fazia compras com dinheiro vivo e poucos possuíam cartões de crédito além dos emitidos por seus próprios bancos.

Assim a gigante local Alibaba criou uma carteira virtual chamada AliPay, que se tornou uma unanimidade entre os chineses pela facilidade de uso e quase acabou com o costume de pagar contas em espécie. Hoje todo mundo, todo estabelecimento suporta o sistema e por isso mesmo a Apple tem sérias dificuldades em implementar o Apple Pay no país. Já a Samsung preferiu se render e fechou uma parceria com a Alibaba, onde o Samsung Pay se tornou compatível com o Alipay.

 

A partir daí a Alibaba, cumprindo a solicitação do governo chinês, criou um sistema de crédito social atrelado ao Alipay chamado Zhima Credit, em que “zhima” em chinês significa “sésamo” (uma piadinha óbvia com o nome da empresa) é uma referência a como o serviço funciona: ele atribui pontos ao usuário de acordo com seu estilo de vida e os com score alto terão acesso à Caverna dos Tesouros, que nada mais é do que uma vida decente. Os demais ficarão do lado de fora, à mercê dos ladrões.

O slogan oficial do Zhima Credit deixa bem claras as intenções do serviço: “permitir que os cidadãos confiáveis tenham acesso a tudo e possam ir a qualquer lugar, enquanto impede os indignos de confiança de darem um passo sequer”.

O Zhima Credit, no entanto, é um de, pelo menos, oito soluções em teste de diversas empresas; a também gigante Tencent possui um sistema próprio, criado em parceria com a China Rapid Finance nos mesmos moldes e que utiliza a plataforma WeChat para coleta de dados.

Tanto a Tencent quanto a Alibaba possuem em seus apps já estabelecidos um enorme ecossistema, que integra apps dos mais diversos como AirBnb, Uber e seu concorrente local DiDi, Youku (o YouTube chinês), a plataforma de games mobile da Tencent e muito, muito mais. Assim, coletar os dados sobre tudo o que os chineses fazem, cruzar as informações e atribuir os pontos sociais é até fácil. Todas as empresas não entregam como os algoritmos funcionam em nenhuma hipótese, apenas dizem que os sistemas são “muito complexos”.

Com o Estado controlando tudo e concentrando o poder nas mãos (lembrem-se, apesar de ser uma das maiores economias do planeta, a China ainda é uma nação comunista), Pequim pode implementar um sistema que cria facilidades para quem atinge uma pontuação alta e dificultar enormemente a vida de quem está no rodapé do ranking. A pontuação do Zhima Credit, por exemplo, começa em 300 e vai até 850 pontos e tudo, tudo pode e será quantificado.

Manter as contas em dia, mensagens nas redes sociais, os contatos do indivíduo, seus hábitos particulares (por exemplo, jogar várias horas por dia pode levar à perda de pontos pelo sistema considera-lo um indivíduo preguiçoso e pouco proativo), a constituição familiar (pais de família que educam seus filhos para se tornarem cidadãos-modelo poderão ganhar mais pontos), tudo será coletado, quantificado e convertido em mais ou menos pontos. E claro, comportamentos subversivos e não alinhados à ideologia estatal também se refletirão em perda de pontos.

Ainda que não esteja oficialmente em vigor, fontes indicam que o sistema estaria em testes desde o ano passado e já punindo cerca de 6,15 milhões de pessoas. Estes estariam impedidos de viajar de avião por conta de “crimes sociais”, e, segundo informes, atos menores como “se apresentar de forma pouco sincera” num tribunal (seja lá o que isso signifique), ou coisas totalmente bestas como não estacionar sua bicicleta adequadamente seriam passíveis de descontos na pontuação social. Há inclusive casos em que o sistema pune até quem não aderiu ao cruzar informações com a “lista negra dos desonestos” da Suprema Corte da China, usada tanto pela Tencent quanto pela Alibaba para alimentar seus bancos de dados.

O resultado disso é que quem não conseguir se adequar ao sistema terá sérias dificuldades em conseguir emprego, assegurar empréstimos ou. num primeiro momento. ter acesso a algo muito simples: transporte. A primeira fase do sistema será implementada a partir do dia 1º de maio e aqueles que cometeram algum ato considerado punível será impedido de viajar de avião ou de trem por um ano. Na lista entram atividades como espalhar notícias falsas de ataques terroristas, causar algum tipo de transtorno em voos no passado, usar passagens vencidas ou… fumar nos trens.

Por enquanto a adesão ao sistema é voluntária, e tanto a Tencent quanto a Alibaba utilizam meios de atrair os chineses oferecendo recompensas por uma alta pontuação, mas a partir de 2020 a implementação será compulsória e todos os mais de 1,3 bilhão de cidadãos vão ter que dançar conforme a música do Partido Comunista da China para ter uma vida minimamente confortável e digna; já os demais terão sérias dificuldades para meramente sobreviver.

Se vivos fossem Aldous Huxley, George Orwell, Ray Bradbury e Philip K. Dick, ficariam assustados com quão certos estavam sobre o futuro.

Fonte: Reuters.