Bom dia! E bem-vindas e bem-vindos a mais um Spin de notícias, o seu giro diário de informações científicas… em escala subatômica. Aqui é a Debbie Cabral e hoje 21 Driadan no calendário Dekatrian ou “who cares” no calendário da régua torta, voltamos a falar de linguística forense, agora com Entrevista policial e, em seguida, o tão esperado comprimido efervescente de gramática.
E no programa de hoje:
– Entrevista policial
– E, no comprimido, as reticências!
O podcast Projeto Humanos está apresentando, nesta última temporada, um caso de desaparecimento de crianças na década de 90, o Caso Evandro. Com maestria de narrativa, Mizanzuk apresenta o desenrolar da trama judicial, que inclui vídeos e fitas que contêm confissões do suposto assassinato da criança. Ouvir as fitas não é para todo mundo… é bem pesado, mas como tem tudo a ver com o que ando estudando resolvi dar uns pitacos.
Maaaaaas, como acadêmica e divulgadora científica, não posso simplesmente jogar uma análise aqui sem explicar no que estou me baseando para fazer essas análises. Então estou dividindo esse meu comentário sobre o caso Evandro em vários spins e textos. Tomara que dê certo. Acho que pode ficar melhor porque, depois de tudo pronto, quem quiser acessar uma parte e não outra tem como. Enfim, vamos lá.
Primeiro, eu queria lembrar que estou estudando no Reino Unido, então algumas das comparações que vou fazer, obviamente, serão com o que já foi feito por aqui quanto a entrevistas/interrogatório de suspeitos. Segundo, se você é policial e está me ouvindo, por favor, entre em contato. Seria muito legal poder conversar com alguém que vive esta realidade no Brasil para saber como funciona, por exemplo, o treinamento de vocês.
A primeira coisa que eu queria pontuar é o peso que a palavra interrogatório traz. Até muito recentemente (historicamente), o que importava era conseguir uma confissão. O Delegado da Polícia Civil, Wellington de Oliveira, que treina policiais, escreveu em seu manual de técnicas de entrevista e interrogatório que “Até o início do século XX, o abuso físico era um método aceitável, se não lícito, de se obter uma confissão, por meio de técnicas de privação de água e comida, luzes ofuscantes, desconforto físico e isolamento por longos períodos, espancamento com mangueiras de borracha e outros instrumentos que não deixam marcas eram frequentemente admitidas em juízo, contanto que o suspeito assinasse um documento dizendo que a confissão tinha sido voluntária.” No material da minha aula com a professora Michelle Aldrigde (já falei dela em outro Spin), ela coloca que essa prática durou até meados da década de 80, bem próximo da época em que se passa o Caso Evandro.
Muitos policiais hoje têm tentado se distanciar do conceito de interrogatório exatamente porque ele remete a esses eventos de violência e excesso de controle e poder por parte da polícia. Shuy (1998: 12-13) destaca algumas características próprias do interrogatório: “‘interrogadores’ usam amplamente seu poder. Eles desafiam, advertem, acusam, negam e reclamam. São mais diretos. Demandam e dominam. Perguntas abertas não são frequentes e perguntas que testam a veracidade tendem a virar desafios que, geralmente, indicam descrença no que o suspeito está falando”. Apesar dos tempos sombrios que vivemos hoje, essa não é uma imagem boa para os policiais.
Criou-se no Reino Unido, então, o PACE (Police And Criminal Evidence act), uma reforma que dá mais direitos aos suspeitos, e que levou ao desenvolvimento de melhores treinamentos para os policiais. O link, para quem se interessar, está nas referências. O que temos no Brasil que assegure isso, uma entrevista de suspeitos que não leve a torturas? O Código de Processo Penal. O Código foi criado em 1941, no entanto, o artigo 187 do capítulo III do Livro VII, que fala do interrogatório do acusado, só foi incluído em 2003. Ainda assim, ele não é específico para os policiais, mas para o juiz. Na parte que trata do inquérito policial, o código indica “ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII”. Ênfase em “no que for aplicável”.
No Reino Unido, como eu disse, a reforma levou a uma tentativa de uniformização da entrevista policial, em 1993, com o treinamento PEACE, que é a estruturação de 5 passos para a entrevista:
- Planejamento e preparação: ocorre antes de entrevista em si, com a investigação
- Engajamento e explicação: deixa claro para o suspeito e seu advogado o porquê de estarem ali
- Explicação, esclarecimentos e desafio: parte efetivamente da entrevista
- Fechamento: da entrevista
- Avaliação: depois da entrevista
E no Brasil? De novo, além do que está no código penal, existem manuais de técnicas de entrevistas e interrogatórios, mas nada a nível nacional. O que diz o Código Penal, então:
“TÍTULO II – Do Inquérito Policial (Art 4-23)
Art. 6o Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:
IV – ouvir o ofendido;
V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura”
Capítulo este que diz:
“Art. 187 – O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos
§ 1º Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais.
§ 2º Na segunda parte será perguntado sobre:
I – ser verdadeira a acusação que lhe é feita;
II – não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela;
III – onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta;
IV – as provas já apuradas;
V – se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas;
VI – se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido;
VII – todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração;
VIII – se tem algo mais a alegar em sua defesa”
Lembrando que o Código Penal também deixa claro que o interrogatório deve acontecer na presença do advogado e que o acusado tem o direito de permanecer calado.
Tendo tudo isso como preâmbulo, como a linguística se encaixa nisso tudo? Infelizmente, em uma avaliação em 2000, pesquisadores perceberam que a implementação das estratégias PEACE ainda é um processo e que não havia muita mudança no comportamento dos policiais. A ideia de good cop/bad cop (policial bom/mau) ainda permanece, ao invés de open-mind cop (policial de mente aberta); as perguntas fechadas que tentam colocar informações de maneira capciosa ainda são muito usadas; escolhas de vocabulários técnicos que confundem os acusados também são usadas… Enfim, ainda temos um longo caminho de pesquisa para identificar esses problemas linguísticos e tentar mudar toda uma cultura policial.
O delegado Oliveira, em seu manual de técnicas diz, por exemplo:
“Para obter informações detalhadas sobre o crime, fazer perguntas abertas. Procure corroboração – dados conhecidos pelo autor (não revelar provas). Uma vez que o suspeito tenha admitido o crime, você deve tentar corroborar as informações do suspeito e reforçar a importância de dizer toda a verdade”.
Ele sugere ainda utilizar o Artigo 187, do Código de Processo Penal como referência das perguntas.
Bom, primeiro, o que são perguntas abertas? Existe a ideia de que perguntas abertas são as que não tem sim/não como respostas, ou seja, algo como: “Por que fez isso?” ou “Como isso aconteceu?” podem ser consideradas perguntas abertas. A ideia é que sejam perguntas que deem espaço para ao acusado (ou a testemunha) falar mais livremente. Mas uma pergunta como “Você poderia nos contar o que aconteceu naquela tarde?”, que seria considerada fechada por ser sim ou não (poderia ou não poderia), na verdade pode dar mais espaço para a pessoa falar. Se voltarmos ao artigo 187, indicado como referência para os policiais e juízes fazerem perguntas temos:
§ 2º Na segunda parte será perguntado sobre:
I – ser verdadeira a acusação que lhe é feita
= É verdade isso? Sim/ Não
II – não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela;
= Você sabe de algum motivo que teriam para incrimina-lo? Sim/ Não Você conhece a pessoa que cometeu o crime/ Sabe quem cometeu o crime? Sim/ Não Você já esteve com essas pessoas? Sim/ Não
III – onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta;
= Onde você estava no momento do ocorrido? Em casa/ No trabalho. Você ficou sabendo do ocorrido? Sim / Não. Como você ficou sabendo do ocorrido? Agora sim temos espaço para uma narrativa
IV – as provas já apuradas;
= Aqui o direcionamento é menor, então, cabe ao policial, com o treinamento que lhe é dado, elaborar perguntas que sejam “””abertas”””””, que deem espaço para que o suspeito fale.
V – se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas;
= Você conhece a vítima e testemunhas? Sim/ Não Desde quando? Data. Tem algo a alegar contra elas? Não. Talvez caiba alguma história aqui.
VI – se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido;
= Você conhece este instrumento? Sim/ Não Algum parecido? Sim/ Não
VII – todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração;
= mais uma vez, aqui entra a liberdade e treinamento do policial em tirar informações com a escolha do tipo de pergunta que irá fazer
VIII – se tem algo mais a alegar em sua defesa
= Tem algo mais a alegar? Não/ Oportunidade de narrativa (mesmo sendo uma pergunta fechada)
A forma como as perguntas são elaboradas dará, então, mais ou menos espaço de fala para a pessoa. O professor Heffer (2005), que estuda linguagem de tribunais, fala de propósitos das perguntas, ao invés de perguntas abertas ou fechadas e acho essa uma análise mais eficiente. Para ele, existem três tipos de perguntas: 1. as que querem só confirmar uma informação; 2. as que querem especificidade a respeito de alguma informação; e 3. as que pedem uma narrativa (Heffer 2005). Eu falei um pouco sobre isso no Spin 398, em que trato de testemunhas em situação de vulnerabilidade. A escolha de cada uma dessas perguntas pode parecer aleatória, mas elas indicam não só o propósito de cada pergunta, mas o nível de controle que o advogado tem sobre a informação extraída. E gostaria de fazer um paralelo aqui com a entrevista policial. É importante lembrar que nessas duas situações existe uma discrepância de poder entre o advogado ou policial e a pessoa interrogada. Esse poder é exercido, dentre outras formas, pelo controle da fala do outro. É esperado, por exemplo, que o advogado de acusação interrompa se o suspeito estiver fugindo do assunto. O inverso dificilmente acontece. Da mesma forma, um suspeito normalmente não interrompe o policial para contar a sua versão da história.
Como pudemos ver no episódio 10 do Caso Evandro, os advogados de defesa costumam dar mais espaço de fala para seus clientes, já que pode ser importante deixá-los contar seu lado da história. Ainda assim, ouvimos interrupções e direcionamentos de perguntas, pedindo especificidades. Existe, então, um cálculo não muito consciente, mas certamente treinado (ensaiado) do tipo de perguntas que devem ser feitas e a ordem que elas devem seguir, mas essa análise virá mais pra frente.
Vamos, então ao comprimido efervescente de gramática!
Ainda pensando no Caso Evandro, vou me deter um pouco nas reticências, que foi um dos pontos que chamaram a atenção do Mizanzuk. Como apontado por ele, temos diferenças de representação, na escrita, da forma como foi falado. Mizanzuk chama a atenção, na sua análise das fitas, para a entonação que um ponto final daria ou a que uma reticência daria.
Então, vamos lá: Para que serve uma reticência? Quando terminamos nosso turno de fala, em uma declaração, abaixamos a voz ao final. E isso costuma ser simbolizado pelo ponto final. Quando não baixamos, deixamos “o interlocutor em suspenso, esperando uma continuação. O objetivo desse procedimento é sugerir, em vez de dizer” (Abreu 2003: 245). Só que, em uma transcrição,
- elas podem significar uma interrupção;
- elas podem significar que a pessoa está dando espaço para que a próxima fale, como em uma fala do policial que diz “Quem estava no carro? Você…”, em que, aparentemente, ele espera que ela complete com o nome de quem estava com ela no carro;
- elas podem significar uma omissão intencional um de trecho, como quando listamos as coisas em um texto e damos a entender que tem mais coisas relacionadas, mas que não vamos citar aqui;
- elas podem significar hesitação, como na fala de Beatriz “Pra eles se tornarem mais é… Pra se tornarem mais pais de santo…”.
Uma análise só das reticências daria bastante pano pra manga. Por exemplo, das 63 falas de Beatriz (só nas seis primeiras páginas), 41 têm reticência, 38 no final. Tendo acesso a fitas, podemos ver que 5 são interrupções, 1 é silêncio (não resposta), 1 pausa, 1 interrogação, tom agudo e mais alto, 3 claramente com entonação declarativa, abaixando o tom, 1 claramente subindo o tom. Digo ‘claramente’ porque não estou com nenhum aparelho para confirmar as outras, mas visivelmente o uso das reticências não é uniforme.
Transcrições, de modo geral, têm propósitos diferentes e isso em si já é suficiente para termos um problema para uma análise linguística. Talvez não um problema, mas um foco de pesquisa bem interessante sobre os diversos usos de reticências. Uma transcrição oficial que é anexada a um processo jurídico, por exemplo, tem como foco o conteúdo e não a interação entre as pessoas ou a entonação usada. No entanto, a gente sabe, mesmo “apenas” como falante da língua, que, linguisticamente, esses elementos importam para uma interpretação mais acurada do que foi dito (Quem nunca foi mal interpretado num texto de WhatsApp que jogue a primeira pedra). É por isso que em análises linguísticas temos que, metodologicamente, definir bem que critérios usaremos e como representaremos cada aspecto, como interrupção ou falas sobrepostas, pausas curtas e longas, ênfases, alongamento de vogais, hesitação, e assim por diante.
P-p-por hoje é só,p-p-pessoal! Lembro que todos os links comentados estão no post e deixe lá também seu comentário, elogio, crítica, declaração de amor ou sugestão de comprimido que queiram que eu dissolva. Lembro ainda que esse podcast só é possível acontecer por conta de seu apoio no patronato do SciCast, no Patreon, no Padrim ou PICPAY. Um grande abraço apertado e até amanhã!
Abreu, A. S. (2003).Gramática mínima: para o domínio da língua padrão. São Paulo: Ateliê Editorial.
Buchholtz, M. (2000). The Politics of Transcription. Journal of Pragmatics, 32, 1439-1465.
Heffer, C. (2005). The language of Jury Trial: A Corpus-Aided Analysis of Legal-Lay Discourse. Basingstoke: Palgrave MacMillan.
Brasil. (2017). Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal: Editora Forense.
Oliveira, W. de. Aplicando técnicas de entrevista e interrogatório na investigação-método Reid
Shuy, R. W. (1998).The language of Confession, Interrogation and Deception. London: Sage Publications.
Tracy, K., Parks, R.M. (2012). ‘Tough questioning’ as enactment of ideology in judicial conduct: marriage law appeals in seven US courts. Equinox Publishing. The International Journal of Speech, Language and the Law, Vol.19, No.1, pp.1-25.
Reino Unido. (2018). PACE code C.
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