“aqueles cientistas que não têm gosto
por esse tipo de empreendimento
especulativo terão que ficar nas
trincheiras e passar sem ele,
enquanto o resto de nós arriscam
erros embaraçosos e se divertem muito”
~ Daniel Dennett
Em O Oráculo da Noite (resenhado aqui), o neurocientista Sidarta Ribeiro faz uma alegação curiosa. Ele diz que a importância cultural dos sonhos diminuiu com a popularização da escrita. O que ele quis dizer com isso?
Lembre-se de que as religiões sempre estiveram ligadas aos sonhos. A tradição budista e cristã nos diz que os nascimentos de Buda e de Jesus, respectivamente, foram anunciados em sonho. Anjos apareciam a Maomé em seus sonhos. No xamanismo, a conexão com o transcendental, a comunicação com ancestrais e divindades depende de estados alterados de consciência, dos quais os sonhos são um exemplo.
O ponto de Sidarta nesse livro é que a escrita diminuiu a necessidade dessas experiências oníricas na espiritualidade. Isso porque a escrita permite o registro dessas experiências subjetivas. Quer dizer, se eu sonho com uma divindade me dizendo alguma coisa, eu posso escrever o conteúdo da mensagem para que outras pessoas leiam (sem que elas mesmas tenham que ter de novo as mesmas experiências que eu). O acesso à religião passa a ser pela leitura, então as mensagens dos sonhos ficam menos subjetivas e se tornam mais coletivas.
Isso pavimentou o caminho para que a mensagem das religiões passasse a ser cada vez mais universalista e preocupada com a salvação pessoal. Quer dizer, um elemento de pessoalidade continua a existir, mas ao mesmo tempo serve como projeto para a humanidade, algo como a lei de ouro “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você mesmo”.
Isso começa a ocorrer quando a escrita deixa de ser usada como mero registro contábil nas primeiras civilizações agrícolas e passa a ser uma reprodução mais fiel do cotidiano (a Era Axial, de 800 a.C. até 200 a.C). Não à toa, nesse período nascem várias das tradições filosóficas e religiosas mais conhecidas hoje. Por exemplo, “religiões do livro”, como Judaísmo, Hinduísmo e Budismo,tomam forma nesse período. O conhece a ti mesmo da filosofia socrática, que traz o ser humano para o centro das indagações filosóficas, também surge aí.
Isso significa que, de algum modo, a utilização da escrita como um reflexo da oralidade modificou fundamentalmente a psicologia humana. Riscar materiais como argila, papiro ou papel para registrar e observar seus próprios pensamentos trouxe uma nova forma de consciência para os humanos. É como se a escrita fosse um aplicativo instalado no cérebro humano, criando novas funções e aprimorando as existentes.
Essa influência da escrita sobre a consciência foi proposta no livro The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind [A Origem da Consciência com o Colapso da Mente Bicameral, tradução livre], escrito pelo psicólogo Julian Jaynes. Ele argumenta que, antes desse uso oral da escrita, as pessoas tinham a mente dividida em duas câmaras. Uma câmara dá ordens e a outra câmara obedece. Isso é basicamente o que acontece quando as pessoas estão distraídas olhando pela janela do ônibus e um pensamento surge, algo como “Ih, esqueci que hoje tenho um compromisso tal hora; que horas são agora?”, aí você pergunta a hora para a pessoa mais próxima, meio que sem pensar muito no que está fazendo. Isso acontece também na direção, quando o motorista experiente entra num estado de fluxo e só age, sem refletir muito, sem questionar pensamentos que por ventura brotem.
Você não sabe o porquê nem como surgiu esse pensamento, só sabe que do nada ele apareceu como se tivesse sido soprado por alguém. Pois é exatamente isso que as pessoas há milênios achavam. Essas vozes alucinatórias eram os deuses falando com os humanos. Esses humanos eram inconscientes no mesmo sentido do motorista em fluxo. Você não é um robô, mas é como se a capacidade de questionar esse fluxo fosse menor e menos voluntária.
Vislumbres de consciência apareciam em momentos de estresse. Hoje ainda passamos por isso. Já reparou que no dia da prova da autoescola erramos procedimentos que nunca erramos nos treinos? Isso acontece porque sob estresse tendemos a não entrar em estado de flow nas tarefas. Ficamos hipervigilantes em relação a qualquer comportamento e isso dificulta a realização de certas tarefas. Uma voz alucinatória começa a narrar o que estamos fazendo, a dizer o que foi feito, o que será feito. Você está nervoso e pensa em cada movimento do volante, da marcha.
A diferença entre nós e pessoas pré-Era Axial é o gap entre as vozes alucinatórias e a tomada de decisão. Não havia muita reflexão antes de realizar um comportamento. Não havia introspecção. As pessoas só questionavam essas vozes e suas próprias ações nos momentos de estresse, quando esse fluxo automático das coisas se rompia.
A capacidade de ouvir essas vozes internas e debater com elas racionalmente não nasce pronta nos humanos. Pesar prós e contras cuidadosamente e tomar decisões racionalmente é algo que se aprende. Pode-se dizer que o ser humano não nasce racional, mas torna-se.
Julian Jaynes argumenta que em obras como Ilíada as pessoas pareciam ter mente bicamerais. Por exemplo, Aquiles nunca pensava sobre si mesmo, nunca se engajava num processo de introspecção. Eram sempre os deuses instruindo sobre suas ações. Do mesmo jeito, no Antigo Testamento bíblico a voz de Javé ordenando coisas se parecia muito com um processo de tomada de decisão rudimentar. Por exemplo, Javé fala para Abraão sacrificar seu filho para provar sua fé. No meio do procedimento Javé diz que o fato de Abraão ter concordado com o sacrifício já era suficiente prova. Isso poderia muito bem ter sido o patriarca deliberando e tirando conclusões diferentes sobre o que significariam suas próprias atitudes. Mas essas vozes alucinatórias em sua cabeça não eram entendidas como pensamentos como as entendemos hoje. Era a voz divina.
É como em Westworld. Os robôs são construídos de modo a produzir vozes alucinatórias. Alguns robôs começam a dar ouvidos demais a essa voz. Eles acham que essa voz vem de outra pessoa, o seu arquiteto, Arnold. Mas esses autômatos só se tornam conscientes de si mesmos quando decifram a real charada da história: a voz pertence a eles mesmos. Eles deixam de ser mentes bicamerais.
Como os textos que compõem o Novo Testamento foram escritos depois da Era Axial, então são fartos os exemplos de introspecção. Um exemplo célebre é a tradição na qual Jesus pede à multidão para verificar seus pecados antes de apedrejar a adúltera. O que é isso senão um belo convite à introspecção? Perguntar isso para um grego da Ilíada seria o mesmo que perguntar a Aquiles quem é o verdadeiro Aquiles. Ele provavelmente diria “ora, eu sou o verdadeiro Aquiles”, apontando para seu próprio corpo, não falando de uma instância abstrata platônica chamada “eu”.
A escrita possibilita essa habilidade de introspecção porque permite colocar as ideias num meio físico manipulável. O argumento é que assim como não é possível escrever um artigo de cabeça, sem escrever e estar o tempo todo alterando o que foi escrito, não é possível organizar seus próprios estados internos e questioná-los muito eficientemente. Não é que toda pessoa precise de um diário para ser capaz de pensar sobre o que ela mesma pensa. A ideia é que a criação da escrita como forma narrativa criou um trending cultural. A escrita fabricou a possibilidade cultural de um novo modo de ser humano. Você não precisa de um diário, mas só de viver numa cultura letrada você já aprende oralmente que você tem uma biografia, que pode controlar seus devaneios internos e transformá-los em reflexão racional