Quando criança eu e os amigos da rua tínhamos o hábito de colecionar carteiras de cigarros, isso não faz o menor sentido, mas é aquele tipo de coisa que acontece na infância no início dos anos 2000. As carteiras tinham cores diferentes e os valores variavam conforme a marca do cigarro, só que certo dia elas começaram a ficar estranhas, pois nas carteiras de repente tinha os malefícios, acompanhadas de imagens fortes, sobre o que o cigarro causava. Logo deixamos essa coleção de lado e fomos para algo mais comum como cartinhas de pokémon ou algo do tipo.  

Decidi começar com uma lembrança antiga de minha infância pois ela serve para ilustrar vários temas que voltaram à tona com a pandemia. Vamos falar sobre a história do negacionismo do cigarro, o papel do SUS na prevenção ao fumo e refletir um pouco sobre a covid-19. 

Vendendo dúvidas e cigarros

A história do cigarro é algo ideal que serve para ilustrar como o negacionismo funciona, pois a indústria tabagista fez tudo que pode para negar o seus malefícios por décadas. Atualmente é fato que cigarro causa diversos danos à saúde, é um dos fatores do câncer (CA) de pulmão e faz mal também àqueles que estão próximos dos fumantes. Porém nem sempre foi assim, por muito tempo se acreditou que quem fumava era uma pessoa mais “relaxada” e o cigarro era indicado inclusive por médicos. 

(fonte: propaganda da viceroys mostrando que “dentistas” recomendam cigarros, link)

A nossa história começa lá em 1954, quando os primeiros estudos que falavam sobre o consumo do cigarro fazer mal à saúde foram publicados, e naquele momento a indústria tabagista foi bem clara “se tivermos conhecimento de que nosso produto faz mal à saúde, paramos de vender amanhã.” Isso obviamente não aconteceu e hoje essa indústria vende em torno de 700 bilhões de cigarros ao redor do mundo (1).

Inicialmente existe uma correlação bem simples que liga diretamente o uso do cigarro com o CA de pulmão, pois quanto maior o seu consumo em algum país, maior é o diagnóstico desse tipo de CA. Essa observação foi feita nos EUA e em outros países da Europa pós primeira guerra mundial.

O auge do consumo de cigarro nos anos 60 resultou em uma epidemia de CA de pulmão nos anos 90 (1). Atualmente, de acordo com os dados do INCA (Instituto Nacional do Câncer) 90% dos casos de CA de pulmão estão relacionados diretamente ao uso de cigarro. 

(fonte: propaganda da Marlboro de 1954 que usava crianças para alcançar o público feminino link)

Alguns outros dados foram se comprovando no decorrer de décadas, mostrando que cigarro faz muito mal à saúde das pessoas em geral, porém a resposta da indústria tabagista foi criar uma dúvida na população por meio de um comitê científico totalmente enviesado e “sustentar a esperança de que, de alguma forma, o cigarro não causa câncer.

Obviamente o objetivo desse comitê não era fazer uma investigação séria sobre a indústria que o patrocinava, e sim criar uma insegurança ao falar que talvez a ciência não estivesse tão certa em afirmar que “cigarro faz mal”, até mesmo uma ideia de que “para algumas pessoas pode fazer bem” ou de que eram desconhecidas as causas de CA de pulmão. Ou seja, queria criar dúvidas, confusão, mentiras e combater os esforços de governos e outras entidades (1).

Anos depois, em documentos de uma das indústrias tabagistas, foi descoberta a afirmação de queA dúvida é nosso produto, já que ela é a melhor forma de competir com o ‘corpo de evidências’ que existe na mente do público em geral.”

O negacionismo do cigarro vai muito além do CA de pulmão, eles negaram que era uma substância viciante e que até mesmo o seu consumo causava gastos à saúde pública.

De acordo com o INCA e a FioCruz em pesquisa realizada em 2015, o consumo de cigarro causa cerca de R$ 57 bilhões de prejuízo aos cofres públicos ao ano entre gastos de despesas médicas (39,4 bilhões) e gastos indiretos como incapacidade e morte prematura (17,5 bilhões). Porém, o imposto pago pela indústria tabagista é apenas por volta de R$13 bilhões.

(fonte: propaganda da chesterfield, de 1951, mostrando que os “cientistas” descobriram que ela era a melhor marca link)

Já em 1963 se sabia que a nicotina, substância presente no cigarro, causa dependência, porém as autoridades públicas dos EUA só reconheceram esse fato décadas depois, em 1988, o que foi extremamente mal recebido.

Tal negação chegava até mesmo no Congresso estadunidense, no qual se criava uma ideia de que o cigarro era tão viciante quanto a TV ou doces. Tal afirmação não e verdadeira e remetem à estratégia mencionada — criar propositalmente uma dúvida disfarçada de ciência.

Anos depois foi descoberto que políticos que faziam essa afirmação recebiam investimentos da indústria tabagista (1). Em abril de 2022, segundo a Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11), o tabagismo passou a integrar o grupo de transtornos mentais e comportamentais devido ao uso da substância psicoativa (link).  

Estamos no início dos anos 90. Os cientistas e profissionais de saúde que alertavam sobre os riscos do cigarro eram tratados como lunáticos ou até mesmo “agentes com interesses políticos”. Afirmava-se que impedir as pessoas de fumarem quando, quanto e onde quiserem, era um ataque à liberdade.

Na segunda parte do texto vamos para o Brasil, onde a discussão era a mesmo, só que com um sistema público de saúde se estabelecendo.  

Brasil rotulando embalagens

Um trecho da entrevista do ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, em 1995 no Roda Viva, voltou à tona anos atrás no Twitter. Na época, a proibição do uso de cigarros em restaurantes causou polêmica, levando a uma série de perguntas que eram consenso na época e hoje chegam a ser engraçadas, vale uma olhada no link. Lá se observa o pensamento dos jornalistas em certas frases como “eu por exemplo prefiro viajar ao lado de um fumante, é uma pessoa mais relaxada” , ou propondo que “garçons tabagistas atendam clientes tabagistas.

Como já vimos no texto, existia uma disputa desonesta entre as políticas públicas em saúde e as industrias tabagistas milionárias. As primeiras tentavam alertar sobre os vários malefícios do uso do cigarro com uma postura bem amena de mostrar os males do uso do cigarro, já a última subvertia de maneira desleal a verdade para vender seus produtos: a dúvida e o cigarro.

(fonte: link)

As políticas públicas demoram muito para atender o que já é consenso na ciência. Um exemplo recente é o aquecimento global: dentro da ciência é uma realidade absoluta e não existe nenhum cientista sério que o negue, já na política… bem sabemos como é, os interesses políticos sempre vão estar acima até que a realidade bate na porta, e alguns políticos até conseguem alterar a realidade, ao menos para o seu público, mas vamos voltar ao cigarros a ao SUS.

Logo no ano seguinte da criação do SUS (1988), criou-se por meio do Ministério da Saúde o Programa Nacional de Controle do Tabagismo (1989), que tinha como objetivo descentralizar as ações de prevenção e promoção em saúde e reduzindo, assim, a prevalência de fumantes em território brasileiro e os problemas decorrentes do fumo. Atualmente esse programa é denominado de “Programa Nacional de Controle do Tabagismo e Outros Fatores de Risco de Câncer” (PNCTOFR) (2).  

Nos últimos 30 anos houve uma diminuição considerável de fumantes no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, em 1989, quando o programa de controle do Tabagismo foi implementado, existiam por volta de 34,8%  de fumantes com idade acima de 18 anos. Em 2019 esse número ficou em torno de 12,6% (3). Isso torna o Brasil uma referência mundial no combate ao tabagismo por meio de suas diversas políticas públicas.

O principal fator do Brasil ser referência está nas ações do SUS. Já na constituição de 1988 está previsto as ações de promoção, proteção e recuperação em saúde, sendo um dos pilares principais para os profissionais da saúde pública. Lembram da frase “melhor prevenir do que remediar”? Ela é verdadeira, e não só é melhor prevenir como também é bem mais barato (5).  

As palavras promoção, proteção, recuperação e educação em saúde se relacionam entre si e todas têm como objetivos melhorar a saúde do indivíduo e da comunidade por meio do conhecimento científico e de forma a se adaptar a cada situação.

Acho importante ressaltar que nos últimos anos o capitalismo pegou esses termos da saúde e resumiu em fazer um check-up, porém essas ações englobam muito mais valores como a forma de adotar modos mais saudáveis de vida, de equidade, democracia, solidariedade, ética, justiça social, dentre outros. Sempre é bom lembrar que a saúde se produz socialmente (5).  

(fonte: link)

Agora voltando ao cigarro, o Brasil, por meio da Portaria no 490/1988, foi o primeiro a banir descritores das embalagens, proibindo frases como “light” ou “mais suave“, substituídas apenas pela mensagem “Ministério da Saúde Adverte: Fumar é Prejudicial à Saúde.” Em 2001, também foi o segundo país no mundo, atrás apenas do Canadá, a inserir frases e imagens nas embalagens alertando sobre os riscos do consumo por meio da Medida Provisória n. 2.134-30 (4).

Desde então, fabricantes e importadores de produtos de tabaco no Brasil têm a obrigatoriedade de inserirem advertências sanitárias acompanhadas de fotos que ocupam 100% de uma das maiores faces dos maços de cigarros, acompanhadas do número Disque Saúde – Pare de Fumar, que é um serviço de atendimento telefônico do Ministério da Saúde, cujo objetivo é apoiar os fumantes a deixarem de fumar (6).

Tal medida traz uma linha segura onde fumantes e não fumantes encontram informações sobre o uso do cigarro e fez com que as linhas do Disque Saúde recebessem mais ligações. Essas imagens são constantemente atualizadas, falando de problemas circulatórios, de impotência, doenças respiratórias, risco de AVC, dentre outras (4).

De acordo com a OMS, ações como essas realmente funcionam muito bem ao mostrar aos fumantes que devem proteger os outros quando usam o cigarro, optando sempre por espaços abertos, além de aumentar a conscientização das pessoas sobre o malefício do uso do tabaco.

Em pesquisa realizada em 2002, ano da implementação do uso das imagens, cerca de 67% dos entrevistados consideraram parar de fumar.

Existiram diversas outras ações que fizeram do Brasil um exemplo do combate ao tabagismo, dentre elas: proibição de propagandas, aumento dos impostos sobre esse produto, intervenções na atenção primária, intervenções em locais públicos e no ambiente de trabalho (4).

(fonte: link)

Voltando lá no primeiro parágrafo do texto, quando colecionava embalagens de cigarro, essas medidas foram fundamentais para tirar a ideia de que o cigarro era algo legal e divertido de se ter. Ao ver as imagens fortes, os meninos, no auge da pré-adolescência, logo não queriam colecionar algo que estava ligado diretamente à impotência e diversas outras doenças.

Já era sabido naquele momento que essas embalagens eram usadas para atrair novos públicos e com uma ação bem sincronizada mostrou-se que ao unirmos comunicação e ciência podemos melhorar a saúde pública. 

A educação em saúde deve sempre estar se atualizando e de acordo com a sua época, em um piscar de olhos a história do cigarro se repete, só que desta vez disfarçado nos cigarros eletrônicos, mas esse já é pauta para outro texto. Na parte final vou apenas refletir um pouco sobre o Brasil na pandemia.  

…     

Talvez você esteja lendo bem lá no futuro, então é sempre importante colocar o momento político no qual escrevo esse texto.

Vivemos uma pandemia global que levou mais de 660 mil vidas em território brasileiro, muito fruto de políticas públicas em saúde negacionistas. A mortalidade por COVID-19 no Brasil foi 3 vezes maior do que no restante do mundo. O SUS possui historicamente meios de promoção e prevenção a saúde que foram simplesmente ignorados durante todos esses anos de pandemia. Ações simples, que deveriam ser ordenadas pelo governo federal, como cartazes que lembram sobre a importância do uso de máscaras, dentre outras medidas não farmacológicas poderiam ter salvo muitas vidas.  

(fonte: link)

Um artigo recente publicado pela FioCruz analisa o trabalho na Atenção Primária, em que ocorrem as medidas de promoção e prevenção em saúde durante a pandemia da COVID-19, relatou que essas estratégias já estavam consolidadas no Brasil e foram, no que talvez seja a maior crise de saúde pública da nossa história recente, abandonadas. Relatou-se que havia quantidades insuficientes de máscaras, outros insumos descartáveis e de teste RT-PCR, além da precarização para com os trabalhadores em saúde (6).

Ver como o Brasil consegue ser exemplo mundial em saúde pública com o combate do cigarro e, em pouco tempo, um dos piores países para se viver na pandemia, me faz pensar em como as políticas públicas baseadas em evidências e aplicadas de forma ética são a coisa mais importante que deveríamos procurar nesse momento. Talvez em um futuro próximo falar que a COVID foi uma gripezinha seja tão ridículo para a população em geral quanto hoje é falar que cigarro não faz mal à saúde.

 

REFERÊNCIAS:

(1) OLSI, C. PASTERNAL, N. Contra a Realidade: A Negação da Ciência suas Causas e Consequências. Editora: Papirus 7 Mares, 2021.

(2) Brasil. Ministério da Saúde (MS) . Instituto Nacional de Câncer (Inca). Coordenação de Prevenção e Vigilância – CONPREV. Programa Nacional de Controle do Tabagismo e outros Fatores de Risco – Brasil . Rio de Janeiro: Inca; 2001.

(3) INCA – Dados e números da prevenção do Tabagismo, disponível em 

https://www.inca.gov.br/observatorio-da-politica-nacional-de-controle-do-tabaco/dados-e-numeros-prevalencia-tabagismo#:~:text=Segundo%20dados%20do%20Vigitel%202020,7%2C6%20%25%20entre%20mulheres.

(4) SILVA, S. T. et. al.  Combate ao Tabagismo: A importância de ações governamentais. Revisão • Ciênc. saúde coletiva 19 (02) Fev 2014.

(5) SUCUPIRA, A. C. MENDES, R. Promoção de Saúde Conceito e Definições. 2003. 

(6) FROTA, A. C. et. al. Vínculo longitudinal da Estratégia Saúde da Família na linha de frente da pandemia da Covid-19. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 1, P. 131-151, Mar 2022