Qual a importância da memória na nossa vida? Uma âncora que nos prende ao passado, o que nos liga afetivamente com quem amamos, faz recordar tudo que sabemos e o que nos traz momentos bons e ruins. A nossa memória está presente em tudo, desde eu ter que lembrar a sequência de letras para escrever esse texto até você lembrar de como decifrá-las. Com o envelhecer da população, é cada vez mais comum o diagnóstico de demência e, em consequência, o da Doença de Alzheimer (DA), conhecida popularmente pela sua perda da memória.
No texto de hoje vamos falar da importância das memórias afetivas que temos com o futebol e a música no tratamento da Doença de Alzheimer.
O que é a Doença de Alzheimer?
Descrita pela primeira vez pelo neuropatologista Alois Alzheimer no ano de 1907. Definida como uma doença neurodegenerativa progressiva e irreversível, ou seja, nela acontece a morte de neurônios, que não podem mais ser recuperados, e com o decorrer do tempo tal fenômeno tende a progredir (1). Sua principal característica, além da perda de memória, são diversos distúrbios cognitivos como por exemplo: alterações na fala (afasia), dificuldades de lembrar nomes de objetos (parafasia) e desorientação de tempo e espaço (3).
- Leve: perda leve da memória recente, dificuldade de encontrar as palavras, sinais de depressão e agressividade são alguns dos sinais e sintomas iniciais;
- Moderado: Dificuldades nas atividades de vida diária, dependência de uma segunda pessoa nas atividade de higiene pessoal, alucinações;
- Grave: Prejuízo gravíssimo na memória, dificuldade de reconhecer pessoas, problema de alimentação, desorientação dentro da própria casa, dentre outros.
A DA na maioria dos casos ocorre a partir dos 60 anos. De acordo com os dados do Ministério da Saúde (2019) o Alzheimer acomete por volta de 11,5% da população brasileira acima de 65 anos. Em todo o mundo, no ano de 2017, por volta de 47 milhões de pessoas foram diagnosticadas com DA. Segundo Alzheimer Association, estima-se que em 2030 esse número ultrapasse os 74 milhões, tal estimativa se dá pelo aumento da perspectiva de vida (5).
Existem inúmeras hipóteses sobre o seu aparecimento e como principal está o fator genético, porém soma-se exposição a elementos tóxicos, causando uma reação inflamatória, e mais recentemente estudos apontam a incidência de problemas cerebrovasculares ligados diretamente ao Alzheimer (2).
Na DA ocorre uma diminuição do cérebro, tendo como principal área afetada o hipocampo, região que tem como função a regulação da memória e aprendizado. Por esse motivo os pacientes diagnosticados com a doença também apresentam dificuldade em aprender informações novas, porém as lembranças mais antigas continuam intactas inicialmente (4).
Memória sendo definida, de forma resumida, como: um processo que seres vivos têm de armazenar no sistema nervoso (SN) dados ou informações sobre o meio que os cerca, para assim modificarem o próprio comportamento (6). Na DA em consequência da perda desse processo de armazenamento, o paciente acaba tornando-se dependente de um cuidador, perdendo seus laços afetivos com o mundo, e em consequência isolando-se.
É importante pontuar que o Alzheimer e demência não são a mesma coisa. A demência é uma palavra que vem do latim e significa de modo geral “qualquer deterioração mental”. Está presente em uma série de outras patologias neurológicas que podem envolver a perda de neurônios, como por exemplo: o Acidente Vascular Encefálico (AVE), processo natural do envelhecer, doenças inflamatórias e em processos expansivos como o Câncer. Porém estima-se que por volta de 50% da demência diagnosticada esteja relacionada a DA (3).
O autor Matt Richtel, em seu livro ‘Imune: A extraordinária história de como o organismo nos defende de doenças’ (2019) relata que a DA acontece em função de que o nosso corpo com o passar dos anos continua a funcionar, porém o nosso cérebro começa a apresentar falhas (5).
Memória, futebol e música.
Como já falado, a memória tem o papel fundamental em definir quem somos e os pacientes diagnosticados com DA acabam por perder essa âncora que os ligam ao passado. Vamos ver como futebol e a música tem um papel importantíssimo na melhora da qualidade de vida de pessoas que convivem com o Alzheimer.
Existem diversos recursos terapêuticos que podem ser utilizados na DA, seja o diagnóstico precoce, o tratamento medicamentoso, o acompanhamento psicológico e fisioterapêutico para encontrar a melhor forma de lidar com a perda funcional. Todos eles têm sua importância, porém só tornam-se viáveis se o paciente tiver estímulo e aqui entram as memórias do futebol.
Gostando ou não do esporte acredito que você, assim como eu, tenha alguma lembrança relacionada, seja onde estava no 7×1, acordar cedo para assistir os jogos da copa de 2002 ou o gol do Romarinho na final da Libertadores. O projeto “Revivendo Memórias“, sendo uma parceria entre o Museu do Esporte de São Paulo e a USP, tem como objetivo usar um meio comum e popular, como o futebol, para estimular as memórias em pacientes diagnosticados com Alzheimer.
De acordo com Leo Takada, um dos idealizadores, “Nos baseamos nesse projeto da Escócia para usar a paixão pelo futebol como uma forma de estimular o ponto de vista cognitivo e estimular a interação social. Quando falamos em incentivar o cérebro de uma pessoa, a gente sempre tenta procurar algo que seja interessante. E a gente sabe que o futebol é uma paixão para muitos brasileiros.”
Ocorrendo no Museu do Futebol os educadores usam imagens de jogadores, estádios e times para reativar memórias, estimulando assim a interação e conversas. Todas essas informações ligadas ao esporte não estão relacionadas necessariamente a uma informação, tipo de quanto saiu o jogo ou quem fez o gol, mas sim ao sentimentos e a emoção. De acordo com Takada “A principal razão é o amor e suas consequências no cérebro. Trabalhar com a paixão de uma pessoa traz resultados melhores do que os velhos impulsos conhecidos.”
Existe algo mais sentimental e emotivo do que a música? Ela está presente em nossa vida mesmo que de forma indireta, seja a trilha sonora de um filme, um lo-fi que você deixa de fundo tocando enquanto estuda ou aquela playlist pra começar o dia bem. Por exemplo, no momento que escrevo esta parte do texto está tocando “Esquadros” da Adriana Calcanhoto, e essa música me traz lembranças de uma época mais “normal” e de pessoas que a muito tempo não vejo.
Estudos recentes mostram que a música aumenta o bem-estar, melhora a respiração e a circulação sanguínea, promove o aumento da atenção e contato com o ambiente, e estimula a memória (7). Apesar de ainda não estar completamente claro a razão pela qual a música estimula a memória, ela vem apresentando resultados positivos como recurso terapêutico mnemônico (8).
Quando levado em consideração indivíduos sem patologias neurológicas, a música é mais fácil de se lembrar do que um texto. Quem nunca fez uma canção pra lembrar da fórmula de Bhaskara na escola?! Em casos do diagnóstico de Alzheimer tem-se relatos de pacientes que não recordam de memórias que lhe ocorreram há poucos dias, porém lembram perfeitamente de uma canção de sua infância. Em casos específicos de músicos que sofrem de demência nota-se que, apesar de perderem a memória de coisas em geral, não se esquecem da música (8).
Agora lembre-se de uma música, sem juízo de valor, pode ser qualquer uma desde um clássico dos Beatles, os Barões da Pisadinha ou Engenheiros do Hawaii. Segundo Daniel Levitin (9) ao se lembrar de uma canção seja para tocar um instrumento ou somente cantar, envolvem várias áreas do nosso cérebro:
- o recrutamento dos lóbulos frontais para o planejamento;
- o córtex motor na região posterior do lóbulo frontal, logo abaixo do topo da cabeça, para acionar os movimentos caso necessário.
- e o córtex sensório, que dá um retorno tátil para que você possa saber se foi acionada a tecla correta no instrumento ou se a batuta foi para onde você pretendia levá-la;
- recruta os centros linguísticos, incluindo as áreas de Broca e de Wernicke, bem como outros centros linguísticos nos lóbulos temporal e frontal, ao lembrar da letra.
E aqui entra outro fator importante no tratamento DA, ao ouvir ou cantar uma música ocorre também uma estimulação da linguagem. Em casos de afasia, onde ocorre a perda em partes o total da comunicação verbal, e que está presente no Alzheimer, tem-se relatos de pacientes que mesmo tendo dificuldade de falar conseguem cantar (8).
Tal fato se dá por a música e a linguagem não serem processados no mesmo local do cérebro, sendo processos independentes (8). Estudos recentes têm mostrado a eficácia da Terapia de Entonação Melódica, no qual se utiliza essa habilidade que permanece de cantar, na melhora da comunicação de pacientes com Afasia, como resultado tem-se uma melhora na fluência verbal e na organização de palavras (10).
Seja no futebol ou na música é o sentimento que liga a nossa memória ao passado, não necessariamente algo nostálgico, mas aquilo que forma quem somos e principalmente o que nos conecta afetivamente. Talvez seja o que nos faz humanos? algo que nunca perdemos. Meu avô no final de sua vida, com mais de 90 anos, apresentou um quadro de demência, e engraçado esses dias, assistindo aquele filme Minari (2020) quando um dos personagens crianças ganha um baralho de presente de sua avó, eu lembrei dele.
Importante colocar aqui, o diagnóstico de Alzheimer é feito somente por consulta com profissionais de saúde adequados. Muitos dos conceitos descritos foram resumidos e simplificados, caso seja da área ou queira se aprofundar mais no assunto sempre vale uma olhada nas referências que deixo no final do texto. Logo voltarei a abordar o tema memória, dessa vez partindo dos filmes do Charlie Kaufman. É isso, paz!
REFERÊNCIAS:
Algumas das imagens colocadas no texto são tiradas de filme que de certa forma fala da Doença de Alzheimer.
Créditos da imagem na capa: Quadrinho Rugas do Paco Rosa, edição brasileira Devir, publicada em 2018.
Documentário Alive Inside, conta a importância do uso de música no tratamento da Demência. Disponível gratuitamente no Youtube
https://www.youtube.com/watch?v=QcKktBdENes&ab_channel=Cl%C3%A9ssiusMartini
Artigos usados:
(1).SMITH, M.A; Doença de Alzheimer, Rev. Brasil. Psiquiatra. vol.21 s.2 São Paulo Oct. 1999.
(2). CAVALCANTE, J. L; ENGELHARDT, E. Aspectos da fisiopatologia da doença de Alzheimer esporádica. Rev Bras Neurol, 48 (4): 21-29, 2012
(3).HAMDAN, A.C; AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA NA DOENÇA DE ALZHEIMER E NO COMPROMETIMENTO COGNITIVO LEVE, Psicol. Argum. 2008 jul./set., 26(54), 183-192.
(4).ABREU, I. D; FORLENZA, V. O; BARROS, H. L. Demência de Alzheimer: correlação entre memória e autonomia. Rev. psiquiatra. clín. vol.32 no.3 São Paulo May/June 2005.
(5). RICHTEL, M. Imune: A extraordinária história de como o organismo se defende das doenças, HarperCollins; 1ª edição (2019).
(6).CHAPOUTHIER, G. Registros evolutivos. Viver Mente & Cérebro: Memória, n.2, p. 8-13, jul. 2006. Ed. Especial.
(7). ARAÚJO, T. C; et.al. USO DA MÚSICA NOS DIVERSOS CENÁRIOS DO
CUIDADO: REVISÃO INTEGRATIVA. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 28, n. 1, p. 96-106, jan./abr. 2014.
(8). ROCHA, V, C; BOGGIO, P, S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140.
(9). LEVITIN, Daniel. This is our Brain on Music: Understanding a Human Obsession. Londres: Atlantic Books, 2006.
(10). FONTOURA, D. R. et.al. Eficácia da Terapia da Entonação Melódica Adaptada: Estudo de Caso de Paciente com Afasia de Broca. Distúrbios Comun. São Paulo, 26(4): 641-655, dezembro de 2014.