A figura clássica do biomédico é, sem dúvida, o analista clínico. Com seu jaleco de procedência duvidosa e olheiras profundas de dor e sofrimento, a falta de um piso salarial reflete diretamente em seu humor. A presença dele em um laboratório é quase fantasmagórica, sempre muito atento aos equipamentos e aguardando qualquer alteração para entrar em ação.

Após um plantão de 12 horas, qualquer lugar é lugar para um cochilo longo para descansar brevemente seu corpo e sua mente. Entretanto, sabemos que a falta de sol prejudica muito a saúde de um indivíduo, e apesar de não parecer, o biomédico precisa viver também. A vida dentro do laboratório tem muitos benefícios, como o ar-condicionado, o microscópio particular e a solitude, para quem a deseja. Mas tem muita coisa por aí que está pronta para ser explorada, descoberta e descrita, que apenas os olhos desse profissional captam de uma forma especial.

Eu moro no centro de São Paulo. Como você deve imaginar, aqui é um lugar caótico, assim como geralmente aparece na televisão nas compras de Dia das Mães ou de Natal. Carros, motos, bicicletas, patinetes, pessoas, animais e pombos, muitos pombos. Para navegar nesse oceano turbulento, meu meio de transporte é o ônibus.

Durante minhas idas e vindas para o trabalho, sempre observo bastante ao redor quando estou dentro do ônibus, primeiro porque se eu me perder, sei para onde voltar, e segundo, pois tem muita coisa interessante acontecendo em São Paulo a todo o momento. Discussões, brigas, anúncios, acidentes, promoções… Tem de tudo.

Um dia desses, observei uma placa dessas bem características da prefeitura, com o nome “CTA DST/AIDS – HENFIL | HENRIQUE DE SOUZA FILHO”, praticamente em frente ao prédio da prefeitura, ao lado do Viaduto do Chá. Isso me despertou muito o interesse, pois não sabia se aquele centro havia sido inaugurado recentemente ou se eu mesmo que nunca havia notado. Fiquei refletindo muito sobre isso, em relação a localização daquele ponto, possíveis pacientes atendidos, estrutura interna, atendimento, enfim, fiquei muito curioso. Como um cientista que sou, resolvi fazer o que todos que tenham a oportunidade de fazer, façam um dia: ir lá conhecer.

Antes de continuar a história, meu leitor, vamos entender o que é essa unidade. Segundo o próprio site da Prefeitura (vide referências), as CTAs (Centros de Testagem e Aconselhamento) são parte de uma iniciativa da Rede Municipal Especializada em IST/AIDS, da Prefeitura de São Paulo que têm como objetivo oferecer orientações sobre prevenção, testes para diagnóstico do HIV, preservativos internos e externos, gel lubrificante, além das Profilaxias Pré e Pós-Exposição (os conhecidos PEP e PrEP, respectivamente).

Além das CTAs, existe outro serviço associado chamado de SAE, ou Serviço de Atendimento Especializado, que realiza tratamento de HIV/AIDS e rastreio de outras possíveis coinfecções, como hepatites e tuberculose.

O CTA que fui visitar, especificamente, fica na Rua Líbero Badaró, 144, no Centro da capital, mas no site da Prefeitura constam 10 unidades espalhadas pela cidade, em todas as regiões. Ao contrário do que minha desatenção permitiu pensar, essa unidade não foi inaugurada recentemente, na verdade, em 2014 o CTA Henfil completou 25 anos, ou seja, agora em 2022, quando estou escrevendo esse texto, ele tem 33 anos. Iniciou suas atividades em 1989 e se estabeleceu onde está hoje em julho de 1995, quando recebeu o nome de “Henrique de Souza Filho – Henfil” em homenagem ao cartunista que faleceu em 1988 por complicações da AIDS.

Novamente, segundo dados da própria Prefeitura, este CTA atende majoritariamente a população masculina, cerca de 82.000 coletas em homens e 24.000 em mulheres entre janeiro de 2003 a junho de 2014, como uma taxa de soropositividade de 70% de uma categoria denominada “Homens que Fazem Sexo com Homens (HSH)”, além de 4% de soropositividade em homens que são profissionais do sexo (dados de 2014).

Em 2021, foi realizado um evento chamado “XIII Congresso Brasileiro da Sociedade Brasileira de DST, IX Congresso Brasileiro de AIDS e IV Congresso Latino Americano de IST/HIV/Aids”, no qual foram realizados diversos estudos que tinham como base de dados as CTAs e SAEs.

Um trabalho que chama a atenção é o feito pela Professora Kátia Cristina, em 2003, com o título “Perfil epidemiológico dos usuários de um Centro de Testagem e Aconselhamento para DST/HIV da Rede Municipal de São Paulo, com sorologia positiva para o HIV”.

Nesse estudo, entre janeiro de 2001 e dezembro de 2002, a média de idade para soropositivos era cerca de 32,4 anos, com desvio padrão de 8,3 anos e predominância gritante para pessoas do sexo masculino. 75% possuíam trabalho e tinham uma média mensal per capita de 3,8 salários-mínimos. A maior parte era branca (65%), com nível de instrução formal de 30% para o primeiro grau incompleto e 32% para segundo grau completo. O artigo explora mais outros aspectos como região de moradia, estado civil, além do corte por sexo.

Tudo muito legal e interessante no papel, mas vamos à realidade. Fui ao CTA Henfil numa segunda-feira, próximo ao horário das 16h. Estava um pouco cheio, provavelmente resultado da saída dos pacientes de seus respectivos empregos. Fui muito bem atendido na recepção, onde deixei meu documento e recebi uma ficha, que segue na imagem:

A ficha contém muitas informações extremamente relevantes para o posterior aconselhamento e acolhimento dos pacientes. Existem perguntas clássicas de formulários socioeconômicos, porém, em seguida, existem perguntas interessantes.

É questionado sobre a execução de autoteste. O autoteste de HIV é distribuído nas CTAs e SAEs, entretanto, também é distribuído em locais “pouco ortodoxos”, como o Soda Pop, que é um bar na região da República voltado ao público LGBT+, e o Hotel Chilli, um hotel voltado somente a homens localizado no Largo do Arouche, facilitando muito o acesso a esse tipo de teste diagnóstico com o bônus da discrição quanto a testagem, por serem locais “disfarçados” (contudo a distribuição de autoteste nos pontos alternativos foram suspensos pela Prefeitura por conta da pandemia do Coronavírus).

Outra pergunta interessante é relacionada ao “Motivo da Procura”, na qual existe a opção de “Conhecimento de Status Sorológico” ou “Exposição a Situação de Risco”, ou seja, o CTA auxilia tanto paciente que já sabem do seu quadro quanto pacientes que foram expostos recentemente. Também há outras opções, como “Acidente com Material Biológico”, uma situação que profissionais da saúde, como biomédicos e enfermeiros, estão expostos todos os dias.

No verso existem perguntas relacionadas ao estilo de vida, como uso de drogas e recorte populacional relacionado à parceria sexual.

No final é relatada a busca tanto pelo HIV, quanto por outras ISTs conhecidas, como Hepatite B e Sífilis. Ao finalizar o exame, ele não é retirado na recepção como em laboratórios comuns, mas sim com uma assistente social, que fica em uma sala no primeiro andar.

Apesar de saber que meus exames seriam todos negativos, pois como biomédicos realizamos a testagem sorológica todo ano, fui disposto a escutar as orientações. A assistente social foi muito gentil ao apresentar os resultados dos exames, explicando sobre a janela imunológica e outros aspectos relacionados aos testes, além de oferecer, no final da orientação, a opção de preservativos masculinos e femininos.

Saí do CTA muito satisfeito com o atendimento prestado, serviços como esse devem ser elogiados e copiados por outras regiões, pois quanto mais informação, aconselhamento e tratamento aos pacientes soropositivos, melhor a qualidade de vida dessa população. De nada adianta ter avanços espetaculares dentro do laboratório relacionados a pesquisa e desenvolvimento e esses progressos não chegarem à ponta da linha. Se você não acredita em mim, dá um Google e veja, ou melhor, visite um CTA ou SAE perto da sua casa.

Sempre importante lembrar que: INDETECTÁVEL = INTRANSMISSÍVEL!

 

Referências:

 

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/istaids/index.php?p=245171

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/noticias/?p=186464

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/istaids/?p=314037

BASSICHETTO, Kátia Cristina et al. Usuários do Centro de Testagem e Aconselhamento para HIV (CTA) Henfil/São Paulo, com sorologia anti HIV positiva. II Inventário de Pesquisas e Estudos em DST e AIDS. Tradução . São Paulo: DST/AIDS – Cidade de São Paulo, 2003. . . Acesso em: https://www.scielo.br/j/rbepid/a/ZvDXJWqx6pHdnGJ9xjzxsnM/?lang=pt&format=pdf – 26/08/2022.

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/istaids/index.php?p=269665