A quarta temporada de Black Mirror parece ter elegido o tema do upload de consciência como um dos centrais e mais recorrentes dos episódios. A ideia sugerida pela série é a de que no futuro entenderíamos tão bem o funcionamento do cérebro humano que milagres tecnológicos, como o tal do upload da mente, seriam, enfim, possíveis.

Na vida, digamos assim, “real” (e coloquemos muitas aspas aqui), uma tecnologia que permite transferir a consciência de um meio para outro enfrenta obstáculos fundamentais de engenharia reversa. Por exemplo, precisaríamos de energia suficiente para atingirmos esse objetivo. Atualmente, as estimativas mostram que upar um indivíduo gastaria energia equivalente a toda a produção de energia gerada pela hidrelétrica Three Gorges Dam, na China. Upar a população mundial gastaria cerca de 140 mil petawatts, ou seja, 800 vezes mais que a energia solar que atinge a Terra.

Além dos desafios práticos concebidos em um empreendimento de tamanha magnitude, existem muitas considerações teóricas a serem feitas antes de começarmos a calcular qual o tamanho mínimo do servidor que operacionalizará todas essas transferências, por exemplo.

A tecnologia sonha com antigos desejos humanos

Avanços tecnológicos, de forma geral, tendem a concretizar antigos sonhos humanos, originalmente concebidos no contexto da magia e do sobrenatural. Em Black Mirror, assistimos a alquimia do mito transformado em hightech.

Para muitos, o upload mental é a realização do sonho da imortalidade. Da realização da utopia e do desejo de perpetuação eterna do ser, de suas memórias, seus afetos e sua personalidade. Da possibilidade de burlar talvez a única barreira invencível pela humanidade, o único fenômeno sobre o qual o ser humano percebe não conseguir exercer nenhum tipo de domínio: a certeza de um fim que chega, cedo ou tarde.

De certa forma, o que observamos nos últimos anos é uma espécie de atualização da nossa compreensão filosófica de alma ou de espírito, culminando no deslocamento da essência humana imaterial para o reino da matéria. Afinal de contas, qual seria o lugar dessa essência imaterial se, a cada passo que avançamos no conhecimento, descobrimos que tudo parece uma questão de arquitetura funcional de células cerebrais? Logo, se mexermos na matéria, mexeremos na “alma”? Para ajudar (ou atrapalhar) na resposta, basta pensar nos pacientes tratados por Oliver Sacks e seus sintomas curiosos, geralmente causados por lesões no tecido cerebral. Um dano numa região do córtex, e o paciente acorda achando que aquela perna ali na cama de hospital não é sua própria perna, e sim uma coisa estranha colocada ali. Uma lesão na região pré-frontal, nos tornamos quase psicopatas funcionais, como o famoso caso de Phineas Gage.

Quadrados não podem ser redondos, mas pode haver um upload mental?

Embora hoje já possamos manipular a mente com alguma segurança por meio da manipulação do cérebro, muitas outras intervenções tecnológicas só podem se concretizar primeiramente diante de sua viabilidade teórica. Por exemplo, não importa o quão desenvolvida esteja a tecnologia, nem mesmo uma IA com 500 pontos de QI (a média humana é 100) poderia criar um quadrado redondo. É uma impossibilidade teórica. O mesmo pode ser discutido em relação à concretização da imortalidade via upload da mente.

Conceitualmente existem algumas minúcias importantes sobre o que isso significaria. A primeira e talvez mais fundamental delas pode ser resumida em uma pergunta: upar a mente de um meio biológico para um meio digital significaria uma transferência ou uma cópia? Por exemplo, passar um filme do computador para o pendrive não se trata, de fato, de uma transferência, mas sim uma cópia. Não existe nada de único naquele arquivo instalado no pequeno flashdrive. Ele é apenas um padrão de códigos binários se combinando e gerando um padrão, que pode ser literalmente reproduzido através de outras mídias.

Transferência ou cópia de consciência?

Uma transferência requer algo que se desloque de um meio para o outro. Em termos ancestrais, seria uma espécie de possessão. O “espírito” em questão simplesmente muda de receptáculo, transfere-se com sua essência preservada. Mantém aquilo que o caracteriza como um ente específico, mudando o “seu ser” de lugar, mas ainda se reconhecendo como único. Único não necessariamente em quantidade, mas como existência singular. Qualitativamente único. Numa simples cópia, em contrapartida, não existiria essa pressuposição platônica de essência.

Esse debate remonta à Filosofia da Mente, área da filosofia que trava debates acerca da definição do conceito mente e de sua relação com o cérebro. Porém, essa discussão está longe de ser assim tão simples.

Mente seria o resultado da atividade cerebral, uma função do cérebro, assim como a digestão é uma função do sistema digestório? A mente dependeria do cérebro para existir, mas, uma vez existindo, funcionaria de maneira independente? Mente e neurobiologia na verdade seriam duas formas linguisticamente diferentes de tratar um mesmo fenômeno? Mente é somente consciência?

Devo observar que nenhuma das diferentes perspectivas filosóficas acerca do que seria a mente concorda com o conceito religioso de uma alma ectoplasmática feita de uma substância não-física. O último a defender isso ruidosamente foi René Descartes. Hoje, independente dos detalhes, a mente, seja lá qual a definição dada, é um fenômeno físico, porque faz parte do reino ontológico do corpo. Por mais que hoje seja possível identificar um movimento de substituição da noção de “alma” pelo conceito científico de “consciência”, essas duas noções versam sobre sistemas de interpretação do mundo bem diferentes.

Ainda assim, filósofos da mente basicamente se dividem em dois grupos. (i) Aqueles que veem a mente de maneira funcionalista, ou seja, como o resultado do que o cérebro faz; (ii) e aqueles que também veem a mente como função, entretanto possuindo propriedades emergentes, irredutíveis à neurobiologia.

Para os primeiros, não haveria grandes problemas teóricos no upload da mente. Na medida em que o eu seria apenas uma rede de conexões passíveis de reprodução em diferentes meios físicos (corpo biológico, de silício, etc.), não haveria grandes problemas conceituais em se referir a esse processo como transferência ou cópia. Na realidade, poderia muito bem existir diferentes eus ao mesmo tempo, já que todos teriam em comum sua estrutura de personalidade, suas experiências, suas lembranças…

O problema fácil e o problema difícil da consciência

Para o segundo grupo, os termos importam. Filósofos, como o expoente David Chalmers, dividem o problema da mente em dois, o problema fácil e o difícil. O problema fácil envolve explicar os mecanismos cognitivos, tanto em termos psicológicos quanto em termos neurobiológicos. Nas últimas décadas, a ciência tem sido extremamente hábil nessa tarefa, mas pouco se tornou conhecido sobre o problema difícil. Isto é, explicar cientificamente a sensação inconfundível de que somos alguém, as sensações sentidas em primeira pessoa. Esses filósofos chamam essas experiências subjetivas de consciência experiencial ou qualia. Essa seria a sensação inconfundível de ser você mesmo e não outra pessoa, de sentir algo diante do medo, ou mesmo de seus dedos tocando o teclado ao digitar um comentário. Nesse sentido, estaríamos fadados a ter a experiência de ser nós mesmos, do mesmo jeito que só um morcego pode saber o que é ser um morcego.

Você pode upar sua mente para um robô, um um robô-macaco-de-pelúcia

Essa consciência experiencial, ou qualia, não poderia ser explicada em termos de redução a processos cognitivos ou neurais. Como traduzir um sentimento/experiência em termos físico-químicos? Por exemplo, sabemos que todo um circuito cerebral se ativa quando estamos diante de uma ameaça, incluindo uma região chamada amígdala. Mas esses filósofos argumentam que a experiência de sentir medo não é explicável em termos da ativação desse circuito. O medo pode emergir dessa atividade cerebral, mas como explicamos que processos físico-químicos causam uma experiência subjetiva?

Isso motivou alguns filósofos a pensarem que essas experiências subjetivas são qualitativamente diferentes de fenômenos físicos. Eles fariam parte do reino ontológico fisicalista, mas seriam um tipo diferente de fenômeno, assim como o átomo e a força eletromagnética são físicos, mas um é concreto, enquanto o outro parece algo com natureza diferente.

Suponha que a consciência emerge da atividade cerebral

Concordar com essa concepção requer aceitar suas consequências lógicas. Deve-se também aceitar que o upload seria realizado apenas no sentido fraco. Memórias, estrutura de personalidade, ou seja, tudo aquilo de alguma forma é codificado num complicado algoritmo orgânico será traduzido com sucesso em processos digitais. Mas os qualia não passarão.

Estaríamos lidando com o que ficou popularizado na filosofia como o zumbi. Zumbis são seres com mente, mas sem a experiência subjetiva. Em outras palavras, eles teriam todo o processo neural associado ao medo, mas não teriam a sensação que identificamos como “estar com medo”. São geringonças desenhadas para parecer desfrutar de experiências internas. Se você perguntar se eles sentiram medo, vão dizer que sim.

Nesse cenário, faz toda diferença se um upload implicará em cópia ou transferência. Cópias serão inviáveis, pois, no máximo, o que se produzirá é um exército de zumbis. E uma transferência implicaria na passagem dos estados mentais qualitativos irredutíveis para o meio digital.

Criamos, então, um cenário paradoxal. Se experiências subjetivas (qualia) forem irredutíveis a processos físicos ao mesmo tempo que são emergentes desses processos, logo temos duas conclusões possíveis: (i) transferir os qualia de um meio físico para outro meio físico, o que tecnicamente não será uma cópia, e sim transferência; ou (ii) copiar os processos cognitivos e torcer para que deles surjam as mesmas experiências qualitativas da mente original, o que tecnicamente não será nem transferência nem cópia.

Tornar possível o upload mental seria viabilizar a criação de infernos reais, com mentes em estado de dor eternamente, como souvenir de circos de horror?

Todavia, nem tudo parece ser tão consistente assim… Alguns cientistas e filósofos vão olhar para toda essa discussão e afirmar que o pressuposto a respeito dos qualia serem irredutíveis está simplesmente equivocado. Outros, como o filósofo Daniel Dennett, vão dizer que esse debate não passa de pseudoproblema (uma vez que somos capazes de criar um sistema que ao menos se comporte como consciente, então, justamente, ele é consciente).

A consciência pode não passar de um processo biológico moldado pela seleção natural

Nem propriedade irredutível, nem pseudoquestão. Segundo o neurocientista Michael Graziano, a consciência pode ser um fenômeno bem biológico. Estar consciente de si seria uma melhora evolutiva da capacidade atencional. Evolutivamente, todos os indivíduos são máquinas de produzir cópias de si mesmas. As diferenças entre as espécies são selecionadas justamente porque, de maneira geral, são inovações biológicas que melhoram ainda mais essa habilidade de se replicar. Seres vivos precisam se alimentar e fugir de ameaças para cumprir tal objetivo. Neste sentido, para nós, seres complexos, saber o que significa cada estímulo e ter critérios para decidir em qual se focar é essencial. A atenção é o aprimoramento biológico dessa capacidade.

Segundo a attention schematic theory, a consciência experiencial seria um melhoramento da própria atenção. Assim, somos capazes não só de direcionar nossa percepção e cognição a estímulos específicos, mas também de sabermos que estamos fazendo isso, o que, de certa forma, nos confere também a habilidade de voluntariamente mudar o foco. Em outras palavras, somos tal qual projetores que não só direcionam o feixe de luz para um alvo involuntariamente, como também entendem o que estão fazendo e podem decidir apontar o holofote para outro alvo, se assim desejarem ou precisarem.

Parece que chegamos à conclusão de que a possibilidade de realizar tecnologicamente o upload da mente, ou da consciência, depende de modo vital dos nossos modelos conceituais sobre o que afinal é a mente. Apesar de certas posições sustentadas por certo grupo de filósofos impossibilitar a concretização completa desse sonho, a ciência pode (e deve) caminhar junto aos teóricos da mente e fornecer algumas respostas que ajudem ambas as áreas. Esse diálogo com a ciência é justamente uma das belezas da Filosofia da Mente, posto que infelizmente não encontramos esse tipo de diálogo em toda e qualquer área da filosofia.

O ser humano tenta entender a si mesmo e o mundo onde vive, mas, é verdade, sempre arrumamos um lugar para manter o contato com nossas aspirações metafísicas. Esta talvez seja a ideia por trás do dilema entre algumas das posições filosóficas mais complexas e as tentativas da ciência em compreender aquilo que originalmente pensamos ser imune às explicações operacionalizadas por ela. Lidemos com este dilema, ora preservando alguma variação da ideia de essência, ora realizando tecnologicamente aquilo que pertencia aos nossos sonhos mais sobrenaturais. No fim, a ficção científica de Black Mirror espelha uma das manifestações desse fenômeno. Gostamos do secularismo, da nossa laicidade, mas continuamos a sonhar com os mitos de outrora.


Felipe Novaes, mestrando em Psicologia Social. Estuda a interface entre cultura e evolução. Gosta de reflexões mindblowing sobre filosofia da ciência e filosofia da mente, principalmente misturadas em doses de ficção científica. Acredita que Dataísmo pode ser o futuro. Tentando aprimorar suas habilidades Jedi no aikido.