Antes de entrar no assunto, aviso de spoiler: se você não leu a história em quadrinhos dos Watchmen, ou não viu o filme e não quer saber o que acontece, pare aqui! Ok, é meio esquisito avisar de spoilers de uma história com 34 anos de publicação, mas sempre é possível que alguém não tenha tido ainda a chance de ler.

A partir de aqui, leia por sua conta e risco!

O cenário de Watchmen é o auge da Guerra Fria. A Guerra do Vietnã se encerrou, mas as tensões são grandes entre as grandes potências da época, Estados Unidos da América (EUA) e União Soviética (URSS). Depois de uma série de peripécias, o grande vilão da trama, Ozymandias, se revela e, como bom vilão, revela o seu plano: lançar naves contendo gigantescos monstros a cada grande metrópole mundial, criando um ambiente de caos e pânico que obrigaria os líderes mundiais, em especial o Presidente estadunidense e o Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS, a deixarem de lado as suas discordâncias e trabalharem em conjunto para erradicar as criaturas e, no fim, estabelecerem um ambiente de paz e cordialidade entre as nações (nota: no filme, os monstros foram substituídos pela destruição de várias cidades por bombas atômicas).

O plano é tão espetacular e bem pensado que o único herói capaz de detê-lo é o Dr. Manhattan, antes um brilhante cientista e agora uma espécie de semi-deus, tido como uma das mentes analíticas mais racionais e perspicazes do mundo. Entretanto, ele acaba concordando com a estratégia pensada por Ozymandias. E assim acaba a história, com a destruição de dezenas de cidades por todo o mundo, a morte de milhões, mas tudo pelo bem maior da cooperação entre as nações e o fim das hostilidades entre o Ocidente capitalista e a Europa Oriental Comunista.

Como fã de quadrinhos, acho esse final excelente, com um plano bem elaborado e que, no final, levaria a Terra a uma experiência duradoura de paz.

Como estudante de História – e nem de longe com a inteligência de Ozymandias ou Dr. Manhattan -, devo dizer que essa estratégia não teria chances de funcionar.

Que burro! Dá zero pra ele!

Toda a ideia de Ozymandias baseia-se na hipótese de que, abaladas por uma ameaça comum, nações inimigas – que pouco antes estiveram à beira de um confronto nuclear – passariam a cooperar para eliminar essa ameaça e, a partir de então, conviveriam em paz por todo o restante da história da humanidade. No entanto, o roteiro da HQ desconsidera que circunstâncias similares são comuns ao longo da história, sem que isso tenha nos levado a um paraíso de compreensão e prosperidade.

Que tal examinarmos dois exemplos, um já levemente distante no tempo e outro atual?

Na década de 1930, após a Grande Recessão, que lançou milhões por todo o mundo na vala da miséria, movimentos políticos por todo o mundo ocidental começaram a lançar ideias de violências contra minorias, tendo como ponto central o exacerbado culto à identidade nacional. Pensou em fascismo? Acertou. Mas não pense que isso foi restrito à Alemanha e Itália. Partidos de matriz fascista existiam em diversos países – no Brasil tivemos a Ação Integralista -, mas não tiveram tanta força para conquistarem o poder. Também existiram associações ou partidos fascistas no Reino Unido, França, Estados Unidos, entre outros.

O ressurgimento da Alemanha, após ser humilhada pelos Acordos que encerraram a I Guerra Mundial, foi notado pela comunidade de nações. E também foi notado que o Reich germânico se expandia à custa de violência contra judeus, ciganos, negros, homossexuais e que tinha uma tendência de expansionismo violento sobre outros países, como acabou ocorrendo.

Apesar de perceberem a ameaça, as grandes nações fizeram…. nada. Bom, “nada” é exagero. Mas não atacaram o problema diretamente, não tentaram implantar soluções efetivas que pudessem deter a agressividade alemã para além de suas fronteiras, e nem partiram em defesa aberta dos grupos que estavam sendo violados em seus direitos. E por que não agiram? Por que, na visão dos países europeus e dos EUA, a grande ameaça não era o regime nazista alemão, mas o regime comunista soviético. Assim, muito tempo foi desperdiçado, Hitler passa a radicalizar cada vez mais e sem oposição, interna ou externa. O resto é literalmente História (observação: claro que isso é uma descrição muito grosseira de cenário, mas a intenção é apenas ilustrativa).

O segundo exemplo é extremamente atual e atende pelo nome de mudança climática.

Estamos vivendo numa época em que o consumo desenfreado de uma parte da humanidade, a situação de imensa miséria de outra grande parte está comprovadamente gerando desequilíbrios ambientais que resultam em alterações em todo o planeta. Vale repetir: isso é comprovado! Há um consenso na comunidade acadêmica sobre as alterações em ecossistemas e nas condições climáticas planetárias, apesar de alguns Ministros de Relações Exteriores e até Presidentes da República negarem o fenômeno por razões políticas.

Essa situação começou a ser percebida em finais da década de 1960, foi bastante estudada entre 1970 e 1990 e, finalmente, concluiu-se que, se não alteramos o comportamento de consumo, os modos de produção e se não for reduzida a miséria, caminhamos a passos largos para um apocalipse ambiental.

Vale repetir novamente: na comunidade acadêmica mundial, isso é um consenso. Há alguns cientistas que refutam essa tese, mas seus argumentos são sempre rebatidos com muitos dados. E, mesmo em países que negam oficialmente essas mudanças, há agências governamentais que já publicaram estudos no sentido de haver uma degradação acentuada do ambiente (veja links abaixo).

Quer dizer, então, que nos encontramos frente-a-frente com uma ameaça mundial que afeta a toda a população humana. É ou não é um cenário que deveria levar os líderes mundiais a um plano de cooperação completa para evitar a extinção da humanidade nos próximos séculos?

Acontece que, se observamos o noticiário, podemos perceber que estamos muito longe de uma ação integrada para reverter a situação. Como já dito, diversos países negam a ocorrência de mudanças climáticas e chegam a abandonar ou ameaçar deixar acordos internacionais que têm como objetivo diminuir os efeitos da ação humana sobre o clima.

Mas se a ameaça é tão grande, por que é tão difícil a cooperação para enfrentá-la?

Bem, países possuem interesses próprios. Não sou internacionalista, mas sei que um dos grandes princípios que regem a Política Internacional é o pragmatismo. Nenhum ator político internacional vai agir por que possui boa índole. Como vamos parar a emissão de gases e manter os empregos nas grandes indústrias de automóveis? Como é possível diminuir a poluição sem fazer decrescer a exploração de recursos minerais (atividade extremamente poluidora)? E os empregos dos cidadãos dos diversos países?

Há um conjunto de fatores que são pensados sistemicamente, mas quando aplicados em cada país, com sua conjuntura interna específica, leva a outros efeitos também indesejados, como desemprego e, especialmente, diminuição dos lucros de suas empresas.

Outro ponto fraco do plano de Ozymandias é considerar apenas a importância dos Estados Nacionais. Há uma série de outros atores em relações internacionais, com interesses próprios e que podem ou não ter controle pelos países, e que detêm muito poder na hora de negociar acordos. Vamos citar um trecho de quem entende do assunto:

“As Relações Internacionais operam por meio de diferentes redes e canais dinâmicos com diferentes níveis e com base em simultâneas formas de articulação entre Estados nacionais, grupos internacionais de pressãop, unidades subnacionais, empresas transnacionais (GCTs – Grandes Corporações Transnacionais) incluindo bancos, agências de crédito e de risco internacionais, indivíduos, ONGs em escala transnacional, organismos internacionais e áreas internacionalmente protegidas. As relações diplomáticas e consulares, por exemplo, indicam, no âmbito da esfera público-estatal, a constância e o volume de informações, de posturas de proteção e de representação entre Estados e entre Estados e Organisos internacionais. Em contrapartida, os trilhões de dólares que são comercializados, diariamente, em mercados financeiros, incluindo mercados de derivativos, estratégias de hedge e de arbitragem de moedas e de fundos de private equity, revelam, em parte, o alargamento do ethos das Relações Internacionais e a incapacidade relativa de os Estados nacionais terem efetivos controles sobre tais fluxos transnacionais financeiros interbancários”(veja referência ao final do texto).

Enfim, devemos concluir que a paz e a cooperação internacional são objetivos que dependem de muitos fatores e que as Relações Internacionais vão muito além do ideal de trabalho conjunto entre os países. São vários outros atores, com interesses próprios e que agem pragmaticamente.

Apesar se muito inteligente, Ozymandias parece não ter sido um aluno de História muito dedicado.

 

Link para consulta

Trump rejeita relatório sobre aquecimento global – https://www.dw.com/pt-br/trump-rejeita-relat%C3%B3rio-sobre-aquecimento-global/a-46463167

Crédito da Imagem

Ozymandias em Watchmen – imagem retirada de https://vignette.wikia.nocookie.net/superheroes/images/5/5b/Ozymandias.jpg/revision/latest?cb=20170210020030

Texto citado

“Fenômeno e ciência: inteligibilidade das Relações Internacionais”, do livro Teoria das relações internacionais, de Thales Castro, 2012, p. 82. Disponível para download gratuito em https://vignette.wikia.nocookie.net/superheroes/images/5/5b/Ozymandias.jpg/revision/latest?cb=20170210020030