Visualize uma cena na qual você considera que se está fazendo ciência. Quem são os cientistas, como eles são, o que estão fazendo e em qual ambiente. Você deve ter pensado em pessoas trabalhando em laboratórios ou, já que está aqui, pode ter pensado na gente escrevendo esse texto e gravando os episódios.
Mas, vamos refletir um pouquinho… quando você imaginou essas e outras cenas, quantos dos “personagens” na sala eram mulheres? Quantos eram negros? E trans, quantos? Mais do que isso, esse cenário provavelmente estava ligado à academia, né? Mas será que só se faz ciência no ambiente acadêmico? Trazendo uma fala do filme-documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem, do Emicida, e modificando um pouquinho pra encaixar no tema de hoje: Assim como o prisma decompõe a luz branca em muitas outras cores, eu gostaria de decompor a ciência branca em muitas outras possibilidades.
O que nós imaginamos enquanto ciência e os portadores desse conhecimento científico está diretamente ligado ao pensamento colonial
Nesse texto irei falar especificamente sobre a experiência enquanto cientista negra, mas ressalto que a invisibilização de saberes acontece com todo saber que fuja da norma da ciência branca europeia.
Tainá Amaro (2018) traz a reflexão de que “considerando-se a lógica colonial e o silenciamento sobre a história que antecede a escravização de pessoas pretas, as Universidades ocidentalizadas e alguns campos de atuação profissional constituem-se como locus da branquitude”. Em outras palavras, o ambiente acadêmico se baseia numa ciência eurocêntrica como base da intelectualidade humana, ciência essa que deixa de fora outros saberes não ocidentais, assim promovendo o que chamamos de epistemícidio.
Outro ponto é que a ciência como conhecemos se utiliza de abordagens metodológicas que não conseguem dar conta da pluralidade, complexidade e diversidade que envolvem a identidade afro-brasileira, levando à invalidação de saberes que não são reconhecidos como epistemologia, ou seja, que não são científicos.
Advogar em defesa da bendita ciência ocidental, atribuindo-lhe uma universalidade epistêmica, é legitimar todo um processo de invisibilização, pautado no racismo e no embranquecimento dos saberes. (SILVA, 2019)
Partindo disso, trazemos então o que é a “ciência para o negro”.
“Então supera a tara velha nessa caravela!”*
A “ciência para o negro” traz a proposta de novas formas teórico-metodológicas a partir de pontos de vista que considerem a singularidade do sujeito negro que constrói sua própria história.
Temos como exemplo da ciência para o negro a Pretagogia, elaborada por Geranilde Costa e Silva (2013), volta o olhar para princípios oriundos de sociedades africanas, como religiosidade, coletividade, oralidade e outros como partes indissociáveis dos seres humanos e através destes constrói o entendimento dos saberes dos povos negros no Brasil de forma mais aprofundada.
Neste mesmo sentido de tradução de saberes a partir da perspectiva de filosofias africanas e afro-brasileiras, Marcio Goldman (2005) traz o “catar folhas” enquanto metodologia científica, que, de acordo com os estudos de Beatriz Martins Moura (2019, p. 6), “é uma expressão usada pelas comunidades afro-religiosas para se referir, por exemplo, aos processos de aprendizado pelos quais uma pessoa passa, ao longo de toda a sua vida, em um terreiro.”
Por sua vez, Leda Maria Martins (2003) nos remonta a valorização da tradição oral africana/afrobrasileira como um tipo de relato de experiência através da escrita de si, usando a Oralitura. Já em 2007, a mesma autora traz a Afrografia, que se trata das memórias e experiências da negritude.
Conceição Evaristo traz o conceito de Escrevivência, uma das mais importantes ferramentas metodológicas que proporciona o rompimento com as matrizes epistemológicas colonialistas através da enunciação das experiências, perspectivas e histórias de vida de grupos sociais marginalizados, em especial a população negra, com a opressão e negação do Estado, e suas participações enquanto sujeitos protagonistas. (EVANGELISTA, SIQUEIRA & ROCHA, 2021)
Um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gráficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. Potência de voz, de criação, de engenhosidade que a casa-grande soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por isso, afirmo: a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos injustos. (EVARISTO, 2020 p. 30).
E complementando, “[…] é pensada como um mecanismo que propõe o rompimento com a lógica de que não podemos escrever sobre nós mesmos, e imprimir nossos sentimentos na escrita.” (FORTES et al, 2020).
Neusa Santos Souza (1983) traz que o grande paradoxo do negro, em uma sociedade racista, é enxergar nos referenciais brancos a única saída de sua condição de subalternidade. Esse texto se propõe a colocar em pauta algumas das diversas formas de se fazer ciência para que nós, enquanto negros e outros grupos marginalizados, lembremos que essa não é a única saída. E para que a branquitude entenda a importância de buscar inteirar-se, compreender e respeitar as diversas formas de exercer a ciência, para evitar o reforço desse sistema colonialista e epistemicida no qual vivemos, abraçando a diversidade não somente quando ela está dentro das suas expectativas de como a ciência deve funcionar.
Não confunda diploma com vivência e visão. – Emicida (part. Miguel) – Oásis.
Referências e indicações de leitura
- As obras de Conceição Evaristo todas são de imensa relevância.
- O ebook Núcleo de Relações Raciais – Percursos Histórias e Movimentos aqui.
- O artigo Bendita seja a ciência branca, por Everton Lamare Costa Melo e Silva, aqui.
- O artigo O Movimento Macanudos Educa: Macanudos e a (RE)Existência Coletiva na Universidade, por Carine Ortiz Fortes, Charlene da Costa Bandeira, Tainá Valente Amaro, Luciane dos Santos Ávila e Marcel Jardim Amaral, aqui.
- O artigo “Escreviviências”, Narrativas Autobiográficas e Intelectualidade Negra: A escrita acadêmica como resistência, por Lázaro de Oliveira Evangelista, Caroline de Freitas Corrêa Siqueira e Cristianne Maria Famer Rocha, aqui.
- Pretagogia: construindo um referencial teórico-metodológico de matriz africana para a formação de professores/as, por Geranilde Costa e Silva, aqui.
- CATAR FOLHAS: ARTICULAÇÃO DE CONHECIMENTOS NO CHÃO DOSTERREIROS DE CANDOMBLÉ, por Beatriz Martins Moura, aqui.
- Performances da Oralitura: Corpo, lugar da memória, por Leda Maria Martins, aqui.
- Afrografias da Memória, por Leda Maria Martins, aqui.
- Tornar-se Negro, por Neusa Santos Souza, aqui.
- GOLDMAN, Marcio. (2005), “Formas do saber e modos do ser: observações sobre a multiplicidade e ontologia no Candomblé”. Religião & Sociedade , vol. 25, nº 2: 102-120.
- Assista também Medida Provisória, filme dirigido por Lázaro Ramos e atualmente nos cinemas, e AmarElo – É Tudo Pra Ontem, documentário de Emicida disponível na Netflix.
* Trecho de Eminência Parda, música de Emicida part. Dona Onete, Jé Santiago e Papillon.