A ideia de escrever esse texto surgiu enquanto eu assistia o The Great Debate: The Storytelling of Science (O grande debate: A Narrativa da Ciência, em tradução livre). Um dos debatedores, o Bill Nye, conhecido pelo programa de divulgação científica infantil Bill Nye the Science Guy, foi convidado a responder uma pergunta sobre a possibilidade de um indivíduo, supostamente um cientista, de ser “cético proativamente” e durante sua resposta mencionou o que ele descreveu como uma conflação dos termos ceticismo e cinismo. Talvez isso ocorra pelo uso no dia a dia desses dois termos, e nesse contexto eu deixo para os colegas linguistas :-). Mas quando somos céticos, ao menos como cientistas, ocorre esse mal entendido que o Bill Nye trouxe, já que cinismo e ceticismo não são a mesma coisa.
Um outro ponto é que, embora o ceticismo possa ser visto como útil, o cinismo costuma ser tóxico, como apontado pelo Dharmesh Shah no seu texto “Skeptics vs. Cynics: Know Which Are Toxic?”, no qual ele abordou esses dois tipos de atitudes no ambiente de trabalho. No atual período de pandemia, mais do que em tempos recentes, tem havido uma interação muito grande entre cientistas e o restante da população. Tenho visto ser reforçado o estereótipo do cientista “cético” e arrogante, aquele que sempre quer estar certo. Talvez, no contexto da COVID-19, para algumas pessoas o ceticismo de muitos cientistas com relação a alguns estudos, ou alguns tratamentos, possa parecer cinismo. Possa parecer que são “do contra”, que apenas não querem dar o braço a torcer.
Ainda que existam casos em que isso ocorra, esses indivíduos não estão sendo céticos, mas cínicos. O ambiente acadêmico está longe de ser um ecossistema onde todos concordam. Nós somos treinados para ser céticos, para fazer perguntas com o intuito de verificar a plausabilidade dos fundamentos de uma hipótese. Tudo isso justamente para diminuir as chances de obtermos respostas erradas para as perguntas feitas. No ambiente acadêmico, um dos modos mais rápidos de adquirir relevância e fama, assim como premiações, é justamente melhorar modelos, encontrar falhas nas conclusões de outros cientistas famosos. No entanto, ninguém vai ganhar o Nobel por dizer que um modelo está errado sem ele estar. Ninguém vai se tornar um cientista positivamente conhecido por sair criticando cegamente o trabalho de todos, falando besteira, ou se negando a concordar com a hipótese de seus pares, sem fundamento, o que seria justamente um comportamento cínico. O cinismo pode ser visto também quando o interlocutor supõe que o outro tem interesses escusos e que portanto a hipótese dele está errada, ou qualquer outra artimanha de uma longa lista de falácias argumentativas.
As evidências científicas costumam participar de categorias que comumente são organizadas de acordo com a pirâmide de evidências científicas da figura abaixo.
Diversos estudos foram disponibilizados ao longo da pandemia tratando de algum tema relacionado à COVID-19 e esses estudos podem ser organizados de acordo com os andares dessa pirâmide. Muitas pessoas sem treinamento científico liam os trabalhos e, com base no conhecimento do assunto que elas tinham, acabavam tratando aqueles resultados como de alta evidência científica, de algo certo, em contraponto a algo incerto. Ignoravam que em muitos casos o trabalho se tratava de estudo preliminar, ás vezes pré-prints ou estudos sequer submetidos para servidores de pré-print. Ignoravam que em muitos casos o design do estudo não era adequado para as perguntas que os autores buscavam responder, ou que os autores não utilizaram a metodologia mais adequada para se analisar aqueles resultados. Como eu falei no Spin de Notícias #896 “O que são os Preprints e como estão sendo usados no contexto da Pandemia?”, existem muitos estudos mal elaborados, ou com extrapolações irresponsáveis, que em outras épocas são ignorados pela comunidade científica. Como raramente são citados, sequer chegam nas principais rodas de discussão, é como se existisse uma espécie de filtro. No entanto, durante uma pandemia qualquer estudo que tenha as palavrinhas chaves do momento acabam ocupando as páginas principais dos jornais. Esse tipo de coisa acaba passando a impressão que o estudo tem evidências indiscutíveis sobre o assunto, o que em muitos casos está longe de ser verdade.
Em uma outra história, o Neil deGrasse Tyson, famoso astrofísico que também estava n“O Grande Debate”, comenta o seguinte, em tradução livre:
Mas você não pode ser um cientista se não se sentir à vontade com a ignorância, porque os cientistas vivem na fronteira entre o que é conhecido e o que é desconhecido no cosmos. Isso é muito diferente da maneira como os jornalistas nos retratam. Muitos artigos começam: “Os cientistas agora precisam voltar à prancheta”. É como se estivéssemos sentados em nossos escritórios, com os pés em nossas mesas – mestres do universo – e de repente disséssemos: “Opa, alguém descobriu algo!”
Não. Nós estamos sempre na prancheta. Se você não está na prancheta, não está fazendo descobertas, você não é um cientista; você é outra coisa. O público, por outro lado, parece exigir explicações conclusivas, ao pular, sem hesitação, de declarações de abjeta ignorância para declarações de absoluta certeza.
O ceticismo está justamente em compreender a nossa incapacidade de dar respostas com 100% de certeza em fenômenos que nós temos treinamento e conhecimento o suficiente para saber que são muito complexos e não têm resposta, ou que não sabemos a resposta. A razão de ser tão mal visto responder não sei no dia a dia é porque as pessoas não costumam ter responsabilidade sobre as suas resposta. Não costuma haver impacto considerável caso a resposta esteja completamente errada. Ao iniciar minha carreira acadêmica eu observei que, na academia, responder não sei não tem esse mesmo feedback pela simples razão das pessoas compreenderem que alguns fenômenos são bastante complexos e simplesmente não têm respostas. Alguns diriam “ainda”, outros dirão que nunca, afinal, existem paradoxos para os quais não há resposta (enquanto outros com o tempo tornaram-se paradoxos verídicos, isto é, tem resposta que por mais que não pareça intuitiva, é correta).
Infelizmente, a formação científica de nossa sociedade no geral costuma ser muito fraca. Isso implica a incapacidade das pessoas de compreender como as descobertas científicas são feitas, como funciona o pensamento científico, assim como a razão de várias análises que parecem estar corretas, na verdade estarem erradas. Mesmo conceitos simples como o de correlação não implicar causalidade costumam ser pouquíssimo compreendidos pelas pessoas (Papo casual: Correlação não é a mesma coisa coisa que causalidade, página 30).
Um outro ponto que é levantado no grande debate pelo Richard Dawkins, famoso biólogo evolutivo, é de um relato sobre um episódio onde falaram sobre “Dumbing Down”, isto é, a simplificação exagerada de conhecimento científico de forma deliberada. Embora o ponto tenha sido abordado de forma superficial e bastante rápida no debate, gostaria de utilizar disso para apontar o perigo da simplificação exagerada de conhecimento científico. O processo de desenvolvimento científico é extremamente difícil. Requer bastante dedicação. Em um momento do debate, uma pessoa compartilha que gostaria muito de ser cientista, mas que ela não se considerava muito boa em matemática. Os debatedores que participaram da discussão, em resumo, disseram que, ainda que matemática seja a língua da ciência, ou do universo como complementou o Tyson, não é necessário ser um gênio da matemática para fazer ciência. No entanto, é necessário muita dedicação, muito trabalho duro.
A impressão de que é simples fazer ciência leva a críticas constantes que eu tenho visto sobre ainda não termos vacina, ou tratamentos específicos com alta eficácia contra COVID-19. É esse tipo de insatisfação que surge quando tentamos pintar algo extremamente complicado, caro e difícil, como algo simples de se fazer. E quando esses indivíduos que fazem essa “coisa fácil”, ciência, vem com papo complicado para dizer que o estudo tal está equivocado ou com evidências insuficientes para se chegar a conclusão que chegaram, é justamente a impressão de cinismo que vai ser passada. Estariam os cientistas querendo complicar a discussão de algo simples para estarem certos? Qual o problema de dizer que um remédio funcionou se a pessoa tomou um remédio e melhorou? Parece-me, portanto, que a incompreensão da ciência é uma das causas dessa confusão entre cinismo e ceticismo. E, ainda que pessoas céticas possam ter momentos cínicos, o ceticismo por si só não implica em ser cínico, assim como o ceticismo na ciência é por natureza pró-ativo, já que estamos sempre buscando testar novas hipóteses e estudar novas perguntas.