Com recém completados 30 anos, a saúde pública brasileira é considerada referência como Sistema Universal ao redor do Mundo. A criação do Sistema Único de Saúde foi ferramenta fundamental no processo de redemocratização no Brasil. Talvez seja sintomático que o SUS vá perdendo a relevância com diminuição de investimentos, desvios, demissões e infelizmente tornando-se mais uma ala ideológica no atual governo.
No texto de hoje vou comentar sobre em como quando a democracia é atacada a saúde também é, passando pela Ditadura Militar no Brasil, a nova constituição do Chile, a derrota de Donald Trump nos EUA e o SUS pós COVID-19.
Saúde em tempos de Ditadura Militar
A realização da 8º Conferência Nacional de Saúde (CNS) em 1986, seguida da aprovação da saúde como um direito em 1988 e a constituinte de 1990, deu forma ao Sistema Único de Saúde como conhecemos atualmente. Até então ter saúde era não estar doente. A partir de 1988 tal conceito foi modificado tornando-se uma série de fatores de bem estar físico e mental, sendo considerada desde uma quadra para prática de esportes e lazer até o medicamento de Diabetes, por exemplo. Para chegarmos a esse ponto muito coisa teve que acontecer e a luta popular foi fundamental na conquista do direito à saúde.
Desde a vinda da família real para o Brasil, passando pela velha república até a era Vargas, a saúde de forma bastante resumida era apenas para a população mais rica, enquanto o público em geral encontrava serviços de saúde voluntários nas casas de Misericórdia. Apesar de haver pequenos avanços no decorrer do tempo, como o controle dos portos, criação de escolas de medicina e estruturas sanitárias básicas, o acesso a saúde era visto como algo elitizado. Vale destacar que até então o conhecimento de saúde e doença estava em evolução.
Se direitos básicos eram negligenciados, tais irresponsabilidades foram potencializadas no período da Ditadura Militar (1964/1985).
- Saúde no auge da ditadura militar entre 60/74
Existia, e infelizmente tal pensamento persiste até os dias atuais, de que o crescimento econômico deve vir em primeiro lugar. Nas palavras ditas durante o período, era preciso “esperar o bolo crescer para assim poder dividi lo”. O que não se falava era do aumento da desigualdade social e que muito provavelmente o pedaço do bolo era bem maior para alguns do que para outros.
Nesse contexto as políticas de saúde adotadas durante grande parte da Ditadura Militar baseava-se em expandir o setor privado com o repasse de dinheiro público, com objetivo de atender somente pessoas com carteira assinada. Entendia-se que serviços públicos médicos eram inadequados por não serem “lucrativos” (2).
É importante colocar aqui que a saúde dentro do meio previdenciário conseguiu alguns avanços, como a ampliação de sua cobertura incluindo trabalhadores rurais, domésticas e autônomos, algo bom em primeira vista, porém existia uma exclusão de donas de casa, pessoas desempregadas e jovens. O pouco acesso a saúde privada, tinha preços exorbitantes e uma visão econômica/lucrativa do setor (2).
“A contratação de serviços privados de saúde, especialmente de hospitais e laboratórios, era feita por meio de credenciamento e remunerada por Unidades de Serviços (US) essa modalidade de pagamento depois foi denominada como ‘fator incontrolável de corrupção’” (1).
Se a saúde era uma forma de mercadoria, optava-se então apenas pelos serviços que mais lucravam. Por exemplo: no meio privado é mais lucrativo uma intervenção cirurgia para Hérnia de Disco do que um tratamento ou prevenção baseados em exercícios físicos. Essa forma de pensamento dentro da saúde privada reflete até atualmente.
Durante a ditadura o Ministério da Saúde (MS) foi considerado disfuncional à modernização pois seu funcionamento no coletivo não tinha a preocupação de um retorno monetário. Apesar de ser sua função a organização de políticas nacionais de saúde, tais atividades conflitavam com o interesse da época, acompanhado de um orçamento precário (1).
“A saúde pública tornou-se uma máquina ineficiente, cuja a atuação ficava restrita a campanhas com baixos resultados. A carência de recursos – que não chegava a 2% do PIB – ajudava com o quadro decadente (…) Durante esse período outros ministérios como de Transporte e as Forças armadas tinha investimento do PIB respectivamente 12% e 18%.” (1).
Acredito que nesse ponto do texto já ficou claro que, no auge da Ditadura Militar, a maioria dos setores de Saúde não tinha uma organização. Quando se falava no âmbito individual saúde era cara, de difícil acesso e só tinham direito pessoas com carteira assinada. Já na saúde pública, por exemplo serviços de saneamento básico e vacinação, existia pouco investimento e campanhas incapazes de alcançar os objetivos propostos.
- 75/80
Em meados dos anos 70, nas conferências de saúde ao redor do mundo criava-se um movimento em favor da medicina comunitária e o acesso universal em saúde. Teorias que permanecem atuais no processo de saúde/doença como: as camadas pobres são mais acometidas, saneamento básico é ferramenta essencial no bem estar e principalmente saúde vai muito além de estar ou não doente.
Já no Brasil no meio dos anos 70 a ditadura militar, por diversas causas e entre elas os movimentos sociais, foi aos poucos perdendo sua força com pequenos movimentos de abertura democrática, como as eleições para o Senado (1974, 1976 e 1978), lei da anistia (1979) e o fim do AI-5 (1979). Interessante ressaltar que com as eleições do Senado o MS passou a receber mais verba do PIB, para que assim pudesse organizar melhor a saúde pública no combate de doenças como a hanseníase e a tuberculose que assolavam o Brasil na época (2).
“Nesse cenário questões ligadas a saúde e democracia ganha visibilidade e a relação entre ambas passa a ser apresentada constantemente nas pautas dos movimentos sociais e em suas manifestações. A luta pela saúde ampliou-se e favoreceu a articulação com outras entidades e movimentos populares. Destacavam-se, nesse período, como reivindicações das diversas manifestações: a luta pelo saneamento, água, luz e postos de saúde; a luta pelo fortalecimento do setor público e promoção da saúde e a luta pelas questões concretas da vida, impulsionada pelas Comunidades Eclesiais de Bases” (4).
Dois movimentos sociais em saúde foram fundamentais:
- Popular pela Saúde: surgiu a partir de grupos apoiados pela Igreja católica e pela militância de esquerda em bairros pobres de periferias das grandes cidades e tinha como uma de suas principais bandeiras a melhoria das condições de saúde dessas regiões.
- Movimento dos Médicos: surgiu a partir de críticas ao sistema de saúde vigente e lutas da categoria por direitos trabalhistas. Lideradas por associações e sindicatos médicos, as greves e outras mobilizações reivindicavam melhores condições de trabalho e mudanças no sistema de saúde, caracterizando-se também como resistência ao processo de mudanças da medicina que transformava os médicos – típicos profissionais liberais – em trabalhadores assalariados e ainda como uma forma de luta pela democratização da sociedade.
Ambos alcançaram grande expressão a partir dos encontros nacionais de medicina comunitária e, em pouco tempo, mudaram seu eixo de atenção das ações comunitárias de base local para a demanda por controle social dos serviços de saúde, melhoria da qualidade da medicina previdenciária e desenvolvimento de ações preventivas, além da melhoria das condições de vida que possibilitaram a conquista da saúde. Ajudaram a formatação do movimento sanitário, em especial a partir da atuação dos grupos organizados na oitava CNS, embora, no final dos anos 80, ambos os movimentos tenham enfraquecido (2).
-redemocratização:
Chegamos então a 8º Conferência Nacional de Saúde (CNS) de 86. Foram cinco dias entre 17 a 21 de março, no ginásio Nilson Nelson em Brasília, com mais de 4 mil participantes, 135 grupos aos que, além desses, somaram-se manifestantes que estavam ao lado de fora do ginásio exigindo a participação. Todos com um único objetivo: contribuir para a formação de um novo sistema de saúde (4).
Aqui que se deu início a defesa do SUS. As pautas ao redor da conferência giravam em torno de:
- Saúde como um dever do estado e direito de todos;
- A reformulação do sistema de saúde;
- O financiamento do setor.
Os temas foram divulgados e postos em discussão através das pré-conferências estaduais e municipais. O interesse da sociedade levou à participação popular que até hoje é uma diretriz fundamental do SUS. Sendo a primeira política pública no Brasil a adotar constitucionalmente a participação da comunidade no cotidiano dos serviços de saúde. Como fiscalizadora, por meio de conselhos e conferências (3).
Vale destacar que o setor privado até então beneficiado pelas políticas públicas fracas em território brasileiro, foi convidada pela CNS a enviar seus representantes para participar da conferência, porém não houve comparecimento (o enfrentamento entre setor público e privado de saúde no Brasil vale um texto a parte).
Mais afinal a quais conclusões chegaram na conferência?
- A separação da previdência e saúde sendo coordenada por um único ministério a nível federal;
- Propostas de integralização das ações, de regionalização e hierarquização das unidades prestadoras de serviço e de fortalecimento do município;
- Participação popular (como falado anteriormente);
- Estado deve garantir condições dignas de vida e de acesso universal à saúde, e apontaram a necessidade de integrar a política de saúde às demais políticas econômicas e sociais;
- Abrangência do conceito de saúde, que é descrita no relatório final como uma resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade, acesso à posse de terra e a serviços de saúde.
Com isso, em 1988 na Constituinte, a saúde foi representada por Sérgio Arouca, que apresentou ao Congresso uma Emenda Popular, em que agregava ao documento analisado mais de 50 mil assinaturas, chegando assim a saúde como um direito de todos prevista até atualmente na constituição.
- Vindo para o contexto atual resumidamente qual a importância da democracia para a saúde no Brasil?
Para me ajudar a responder essa pergunta chamei minha antiga professora, hoje amiga, que me inseriu na luta pelo SUS Ivna Figueredo “A democracia é fundamental para qualquer política pública, ainda mais na saúde, que é uma das políticas essenciais na manutenção da vida. A democracia favorece que cada pessoa tenha a possibilidade de ser co-gestor no sistema de saúde. A democracia permite, como exemplo, que os conselhos de saúde, sejam federal, municipal ou estadual, possam continuar a existir, fazendo com que a voz do povo chegue de forma mais forte e clara a quem realmente ordena o sistema de saúde.“
Entre Chile e EUA
Infelizmente sistemas de saúde gratuito e universais ao redor do mundo ainda são uma raridade. De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), metade da população mundial não tem acesso a serviços básicos de saúde (dados de 2019). Vamos da uma olhada rápida em dois países que tiveram os modelos democráticos ameaçados, possuem sistemas de saúde dominantemente privados e como a perspectiva de um futuro para esse debate tende a ser otimista.
-Chile
No texto que escrevi “Acorde de Bom dia e lute pelo o SUS” eu dou uma passeada no Chile, que naquele momento estava em ebulição. Havia inúmeros protestos na capital Santiago que entre as reivindicações principais da população estava o fim da desigualdade social.
Não vou me alongar em como funciona a saúde no Chile (caso tenha curiosidade eu abranjo mais o tema no texto citado no parágrafo anterior), mas, de forma bastante resumida, lá o sistema de saúde é privatizado/público. Os que pagam têm acesso com mais facilidade, os que não têm condições financeiras ficam a mercê. Diferentemente do Brasil, saúde no território chileno não é um direito universal previsto na constituição.
Em meados dos anos 70/80 a América do Sul como um todo viveu um período de regime militar. São várias as razões desse acontecimento, mas o que pretendo abordar aqui é como no Chile as marcas de tal regime ainda eram abertas. A constituição de 80 é considerada ilegítima por muito dos chilenos , pois a mesma foi obra do período militar e até hoje a população vive sob essa constituinte.
Apesar de ter tido pequenas alterações no decorrer do tempo, como em 1998 e 2005, de acordo com Gilberto Aranda, professor do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, “Mesmo com as mudanças, ainda é a Constituição que foi preparada pelo regime militar e, portanto, nesse contexto, uma parte muito importante da sociedade chilena diz que ela teria uma falta de legitimidade de origem.”
Não há muito tempo o Chile era considerado um modelo “exemplar” de país neoliberal. De acordo com a Professora da USP em História Econômica Joana Salém em entrevista ao Brasil de Fato “com modelo imposto na Constituição de 1980, o Estado chileno passou a ter como função principal garantir o funcionamento dos negócios, isto é, proteger a propriedade privada e o mercado financeiro em detrimento dos direitos básicos da população.”
Com isso não só a saúde estava precária e de difícil acesso, como também aposentadoria e a educação. Isso gerou uma desigualdade social gigantesca no país, que em 2019 foi a eclosão dos protesto no território, marcados com forte repressão policial. Em outubro de 2020 tais movimentos resultaram em uma votação para nova constituinte, da qual 78% dos chilenos votaram a favor.
Importante destacar também que a Assembleia da nova constituinte será formada inteiramente por novos membros eleitos, 50% masculino e 50% feminino, sem necessidade de filiação partidária. Será a primeira constituição feita em tempos de internet e vamos poder acompanhar de perto os rumos que a pauta de saúde universal dos chilenos irá tomar.
-EUA
Na semana que escrevo esse texto, Joe Biden acaba de ser eleito o próximo presidente dos EUA, no que marcou como sendo a eleição com mais votos registradas na história do país. Era o candidato democrata, conhecido por ser vice presidente nos mandatos de Obama (2009/2016), cuja gestão o debate de uma sistema de saúde acessível ganhou forma entre os norte americanos, que até então estavam a mercê de planos de saúde de alto custo, o chamado Obamacare.
Com a eleição de Donald Trump, o Obamacare perdeu a força, já nas primeiras semanas do novo presidente, com a justificativa de ser muito caro para o estado manter tal programa e prejudicar os planos de saúde. Trump referia-se ao programa como “desastroso” “máquina de destruir empregos” mesmo sem apresentar nenhuma alternativa, baseando-se exclusivamente em fatos alternativos e no livre mercado.
O programa Obamacare não é perfeito, porém um passo importantíssimo para saúde universal dos norte americanos. Tal falácia de que “a saúde deve está no livre mercado e o indivíduo escolher pagar por ela ou não” se mostrou mentirosa frente a Covid-19. Agora com o recém eleito Joe Biden o debate volta a ganhar força. Também entendo que Biden não é o salvador do universo mas só em ele não negar e estar disposto a combater o Corona baseados em evidência científica já é algo positivo. A ver também em como esse tema vai se desenrolar em 2021.
A luta pelo tem que SUS continuar.
Como termino esse texto sobre democracia e saúde que escrevo no final de 2020 em plena pandemia de uma forma otimista? Não sei. Esse ano foi cansativo, um filme de terror pra quem entende de saúde pública, com a inação do governo federal, com manifestações para acabar o isolamento, cloroquina, agressões a colegas de profissão, presidente pedindo para invadir hospitais, a desvalorização dos profissionais de saúde. Foi tanta, tanta coisa… porém, apesar de tudo, a luta pelo tem que SUS continuar.
Existe um movimento neoliberal no governo atual que visa à privatização como uma solução mágica para todos os problemas. É importante se colocar sempre ativamente contra os processos de ataque ao SUS. Apesar de parecerem pequenas mobilizações como diminuir o investimento em medicamentos gratuitos ou deixar na mão do meio privado a Atenção Básica, quando analisadas como um todo, têm como resultado diminuir o dever do governo, omitindo sua responsabilidade, já que “Saúde é um direito de todos e dever do Estado.”
O SUS não se resume a filas de espera e hospitais lotados. Engloba um sistema gigantesco que, mesmo que você não tenha conhecimento, atua na sua vida desde o momento do nascimento, da água que bebe, do saneamento… enfim são inúmeras as ações que se mostram ainda mais essenciais em tempos de pandemia. Campanhas de saúde Global sempre usam o SUS como um ótimo exemplo de que, sim, é possível oferecer serviços gratuitos e de qualidade. Com a COVID-19 sabe-se que o mais modesto em saúde básico foi fundamental no combate da doença.
Mais um vez na palavra Ivna para me ajudar nas perspectivas de uma futuro da saúde pública pós Covid “Um dos pouco benefícios que a pandemia trouxe foi o da reconstrução da imagem social que as pessoas têm do SUS. Imagino que perceberam o real patrimônio que o Sistema Único de Saúde é para nós brasileiros. E ele (SUS) foi muito ágil e eficiente em uma resposta a altura da pandemia. Penso que daqui pra frente não só o povo brasileiro como os gestores olharão mais atentos para esse sistema, que é o maior sistema universal de saúde que existe no mundo, com mais investimentos, mais qualificação para a gestão e mais formação para os profissionais de ponta.”
Recentemente quando Bolsonaro assinou um decreto que previa a possibilidade da iniciativa privada dentro das UBS (Unidade Básica de Saúde) feita de forma não clara e irresponsável, houve mobilização rápida se opondo a ela, pelas redes sociais, com abaixo assinados. Teve uma harmonia em defesa ao SUS que nos dá um pouco de esperanças para o futuro. Talvez seja da proteção do SUS que venha a união nos brasileiros que estão divididos após 2018, já isso são cenas para os próximos capítulos.
Antes de terminar o texto um agradecimento em especial a minha professora e mestre Ivna Figueredo. Sem ela muito provavelmente jamais escreveria textos assim aqui para o Portal Deviante. Críticas, sugestões e comentários são sempre bem vindos. Defenda o SUS e paz.
REFERÊNCIAS:
(1) ESCOREL, S. História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990: do Golpe Militar à Reforma Sanitarista. Políticas e Sistema de saúde no Brasil. Scielo Books. 2012.
(2) PAIVA, C. H; TEIXEIRA, L. A. Reforma sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde. v .201, n.12, jaabnr.-mjuanr.. 22001134,, pp..61553-3-657 3
(3) ROLIM, L. B, et. al. Participação popular e o controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 37, n. 96, p. 139-147, jan./mar. 2013.
(4) SANTOS, M. A, Lutas sociais pela saúde pública no Brasil frente aos desafios contemporâneos. Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 233-240, jul./dez. 2013.