A saúde engloba diferentes áreas, que vão bem além do estar ou não doente, algo que foi construído historicamente e que dentro do SUS (Sistema Único de Saúde) é bem compreendido, porém ainda se precisa de estruturação. Os serviços de abastecimento de água; coleta e tratamento de esgotos; limpeza urbana, coleta e destinação do lixo; e drenagem e manejo da água das chuvas, ou seja, o saneamento básico está totalmente ligado à saúde pública.

No texto de hoje vamos abordar a história do saneamento básico no Brasil, o seu cenário atual e o exemplo recente de como a sua falta afeta a saúde pública do país.

 

O que é saneamento básico?

De forma geral, saneamento se constitui nas medidas adotadas sobre o meio ambiente com objetivo de promover a saúde dos cidadãos, garantir sua qualidade de vida, e preservar os recursos naturais. Desse modo, são uma das principais ferramentas de prevenção em saúde de diversas doenças (ONU, 2015). 

De acordo com o Instituto Trata Brasil,

o saneamento básico é um direito garantido pela Constituição, é uma ferramenta estratégica essencial para o desenvolvimento da qualidade de vida no País. Mas além de ser essencial para a saúde das pessoas, o saneamento é vital para a sustentabilidade dos nossos rios, que hoje sofrem com toneladas de dejetos despejados em suas águas todos os dias.

(imagem 1 símbolo do saneamento básico com desenhos de uma torneira, escoamento d’água, lixeira e encanamento. fonte link)

Em 2015, a ONU reconheceu o acesso à água e ao saneamento básico como direito universal. Desde então, os países membros trabalham para que toda a sua população tenha acesso a estes direitos até 2030 (ONU, 2015). O saneamento é algo que deve acompanhar o crescimento das cidades de modo a garantir condições seguras para todos os cidadãos. 

De acordo com a Constituição Federal de 1988 (CF 88), art. 21, inc. XX, é de competência da União “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”, e seu art. 23, inc. IX, determina ser de responsabilidade comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.

Ainda de acordo com a CF 88, entre as competências do SUS está “participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico”.

Para que o saneamento básico seja estabelecido por lei houve uma série de marcos políticos históricos no Brasil, desde a elaboração do SUS até a Constituição Federal. Na segunda parte do texto pretendo passar brevemente nessa história até a chegada nos dias atuais.

 

Breve parte histórica

A nossa história começa na segunda metade do século XX. nos jornais frequentemente era noticiado sobre a qualidade da água, eram inexistentes os tratamentos químicos nos serviços prestados, além de haver operação defeituosa e ausência de fiscalização nas cidades que possuíam instrumentos de purificação da água (2).

Nesse momento da história brasileira já se era conhecida a influência da qualidade da água e a importância do saneamento básico para a saúde pública. As constantes epidemias de febre amarela e outras doenças no início do século XX fizeram com que a elite se mobilizasse, criando uma ideia de coletividade nas ações voltadas para a saúde. 

De acordo com Hochman (1988):

A preocupação comum a presidentes da República, governadores de estado e dirigentes de serviços sanitários de combater as doenças no território brasileiro possibilitou o incipiente desenvolvimento de uma colaboração sanitária entre as diversas esferas de governo no país (1).

Porém, nesse momento, mesmo havendo uma consciência coletiva das ações voltadas para o saneamento básico, essa ainda era pouco maleável no sentido de comunicação entre as esferas. De modo resumido, cada estado e município fazia o saneamento da forma que acreditasse ser melhor, ou seja descentralizada, sem necessariamente ter um objetivo em comum. 

“Diversos municípios operam de forma autônoma — alguns com resultados satisfatórios —, enquanto outros, em conjunto com os municípios vizinhos. O modelo mais bem-sucedido pode ser considerado como aquele em que os departamentos estaduais centralizavam desde o planejamento até a operação dos serviços. No entanto, alguns não tiveram a extensão da centralização da fase de operação, o que prejudicou o resultado encontrado” (3).

Por meados da década de 50 e 60, os movimentos migratórios do campo para a cidade aumentaram consideravelmente, criando um crescimento desordenado da região e colocando em risco a saúde e bem-estar de todos.   

Nesse contexto criam-se diversas políticas com o objetivo de melhor habitação, porém pouco efetivas. Apenas nos anos 70, com a criação do Plano Nacional de Saneamento, foi possível falar de uma  política nacional de  abastecimento de água e esgoto no Brasil, visto que anteriormente a questão era tratada de modo descentralizado e apresentava condições relativamente precárias nas diversas regiões do país (2).

Dez anos após a criação do Plano Nacional de Saneamento a sua forma consegue melhorar os índices de abastecimento de água nas regiões urbanas, porém o saneamento básico não consegue se estruturar como universal em todo o território brasileiro. Junto a isso, a crise nos anos 80 enfrentada pelo Brasil fez com que o investimento na área diminuísse, resultando no encerramento do Plano Nacional de Saneamento em 1992 (2).

(imagem 2 símbolo do PMSB em um fundo azul, fonte link)

Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico — PNSB (IBGE, 2002), os avanços ocorridos entre 1989 e 2000 foram identificados em municípios de maior porte, principalmente nos pertencentes às regiões mais desenvolvidas. Assim, os municípios com mais de 300.000 habitantes possuíam quase três vezes mais domicílios ligados à rede geral de esgoto do que os domicílios em municípios com população de até 20.000 habitantes.

No decorrer dos anos 2000 houve uma série de políticas públicas que estabeleceram o saneamento básico. Porém, historicamente ainda existia um recorte de classe social, ou seja, locais considerados mais ricos têm o acesso ao saneamento básico melhor do que os locais mais emergentes.

Explicado e contextualizado o saneamento básico e como as suas políticas foram construídas historicamente no Brasil, agora vamos analisar os dados do último CENSO e observar como o território brasileiro caminha nessa questão atualmente.

 

Saneamento básico atualmente

As questões sociais acompanham lado a lado as questões de saúde, algo que já falei por diversos textos aqui no Deviante é: para enfrentar os problemas de saúde pública no território brasileiro temos que lidar com problemas estruturais que assolam a sociedade desde sempre, dentre eles a desigualdade.

O fator mais claro aos olhos da desigualdade brasileira é o acesso ao saneamento básico, que de fato vem apresentando uma melhora, mas talvez não na velocidade necessária.

De acordo com os dados do último CENSO (2022) a proporção de domicílios com acesso à rede de coleta de esgoto no Brasil chegou a 62,5% em 2022, registrando aumento em relação a 2000 (44,4%) e 2010 (52,8%).

Ainda de acordo com o CENSO:

A proporção da população residindo em domicílios com esgotamento por rede coletora mostrou relação com o tamanho populacional dos municípios: nos municípios com até 5.000 habitantes, apenas 28,6% deles viviam em domicílios com coleta de esgoto. Esse número sobe gradualmente a cada classe de tamanho da população, até atingir 83,4% nos municípios com 500.001 habitantes ou mais.

Como avaliado aqui, por mais que exista uma melhora considerável nas últimas décadas do acesso a saneamento, ainda há muito o que melhorar. Atualmente, cerca de 203 milhões de habitantes do país têm seus resíduos depositados em buracos e valas ou seguem sem nenhum tipo de tratamento para rios, lagos, córregos ou para o mar. Além disso, 0,6% dos brasileiros sequer têm banheiro em casa.

(imagem 3 cena de uma pessoa andando de bicicleta em uma rua com água acumulada e lixo jogado, fonte link)

Acredito que muitos problemas sociais do mundo podem ser analisados sob diferentes perspectivas, como localidade, raça e gênero. No contexto do acesso ao saneamento básico, essa análise também é relevante. Em resumo, as regiões mais desenvolvidas e as pessoas brancas têm maior acesso ao saneamento, enquanto a falta desse serviço afeta mais intensamente as mulheres, que sofrem desproporcionalmente com a carência de infraestrutura adequada.

Os dados do CENSO (2022) corroboram com a desigualdade das regiões do país, de modo que as áreas mais desenvolvidas, como a região Sudeste são as que apresentam a maior parcela da população morando em domicílios com coleta de esgoto (86,2%). No sentido oposto, a região Norte mostrou a menor taxa nesse indicador (22,8%). Fazendo um cálculo bem rápido levando em consideração a população da região, mais de 14 milhões de pessoas vivem na região sem o acesso ao saneamento básico. 

Cerca de 83,5% da população brasileira que se declara branca mora em locais com uma estrutura adequada de saneamento básico. Entre os que se declaram pretos, o percentual é de 75%, e entre pardos, de 68,9% (link).

Segundo a pesquisa Mulheres e Saneamento “27 milhões de mulheres – ou uma a cada quatro brasileiras – vivem sem acesso adequado ao saneamento. Além dos males sofridos por elas mesmas, muitas também são responsáveis pelos cuidados de seus familiares, de modo que, se um deles adoecer, essas mulheres acabam se afastando de suas atividades econômicas, o que compromete ainda mais a renda da família.”

 

As consequências da falta de saneamento.

A falta do saneamento é o foco da proliferação de muitas doenças, como diarreia, leptospirose e hepatite. As causas estão desde a água contaminada e o esgoto que corre a céu aberto, até no acúmulo de lixo em ambientes impróprios. No primeiro semestre de 2024 tivemos um bom exemplo de como a falta de saneamento básico impacta a saúde pública da população com a dengue.

(imagem 4 pneu com água parada e possível foco de dengue. fonte link)

Nos primeiros meses de 2024 o Brasil bateu recorde de casos de dengue. Dados do Painel de Arboviroses do Ministério da Saúde revelam a maior incidência da série histórica, iniciada em 2000. O país também registrou 561 mortes por dengue. O saneamento básico, especificamente sua falta, tem total ligação com essa alta de casos.

De acordo com o artigo do site Outra Saúde,

A indisponibilidade de serviços de saneamento pode contribuir para diversas enfermidades já conhecidas, e também para as arboviroses. Especialistas da ONU enfatizam que o acesso à água e ao esgotamento sanitário diminui a prevalência de doenças como a tríplice epidemia que ocorreu em 2016 (dengue, chikungunya e zika). Também adverte que o controle vetorial deve ser adotado como uma política de prevenção e promoção da saúde que não se restrinja unicamente ao combate direto ao mosquito. Isso porque as estratégias mais eficientes e sustentáveis de controle são as melhorias sanitárias – que incluem aumento da cobertura do saneamento básico e redução das desigualdades em saúde.

São diversas as referências afirmando que o descarte irregular de materiais sólidos contribuem para a proliferação de doenças como a dengue. Ainda de acordo com o site Outra Saúde, as questões relacionadas à falta de saneamento:

são causadas pela ineficiência do planejamento urbano e pelo descaso do poder público, afetando a saúde da população. E que, nas áreas periféricas da cidade e dos aglomerados informais, localizados em terrenos inadequados para habitação humana, predominam a falta de higiene e inexistência de condições sanitárias, favorecendo a proliferação de epidemias.

Já existem diversos caminhos e evidências científicas, então por qual motivo não conseguimos fornecer o básico em saneamento para toda a população? Aliás, colando sobre a perspectiva atual de um mundo na beira de uma crise climática, quais os caminhos para oferecer o acesso ao saneamento básico para toda a população? 

Essas são perguntas que vou deixar para o próximo texto, em que abordarei o papel do SUS, a privatização e o futuro do saneamento básico, até lá.

 

Referências

( 1 ) DOS SANTOS, Fernanda Flores Silva et al. O desenvolvimento do saneamento básico no Brasil e as consequências para a saúde pública. Revista brasileira de meio ambiente, v. 4, n. 1, 2018.

( 2 ) PEIXOTO, André Luís Almeida; AHMED, Flávio Villela; SALES, Camila Mendonça Romero. Saneamento Básico: direito de todos? Uma breve análise. Petróleo Royalties e Região, v. 19, n. 70, 2021.

( 3 ) SOUSA, Ana Cristina A. de; COSTA, Nilson do Rosário. Política de saneamento básico no Brasil: discussão de uma trajetória. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 23, p. 615-634, 2016.

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