Quando falamos sobre Robert Johnson, algumas imagens específicas vêm à mente. Lembramo-nos do bluesman oriundo do Mississippi, nos Estados Unidos, que, apenas com sua voz e violão, teria, em plenos anos 1930, realizado algumas das gravações musicais mais influentes de toda a História. Isso, é claro, porque ele teria contado com o auxílio de forças ocultas do além, como sugerido por algumas de suas letras, e como amplamente explorado na cultura pop.
Raramente fazemos o exercício de tentar enxergar Johnson e sua curta trajetória (que durou de 1929 a 1938, data de sua morte) sob uma luz mais realista. Mesmo se ignorarmos o mito sobre seu suposto pacto com o demônio, que teria lhe conferido um virtuosismo sobre-humano, ainda sobra um indivíduo que tendemos a enxergar como um gênio absoluto, a quem temos dificuldade de humanizar, e principalmente, de contextualizar histórica e musicalmente. E é exatamente isso que o músico e pesquisador Elijah Wald busca fazer em Escaping The Delta: Robert Johnson And The Invention Of The Blues.
Logo de cara, chama a atenção o subtítulo da obra: Robert Johnson e a Invenção Do Blues. Ora, temos por fato histórico a informação de que o blues, enquanto forma musical, teria emergido como manifestação cultural genuína da população afro americana, de forma que não parece certo dizer que ele foi “inventado”. A presença dessa palavra, portanto, já dá indícios da abordagem adotada pelo autor. Extremamente rigoroso do ponto de vista historiográfico, Wald traça um panorama do blues, desde seu surgimento até sua chegada ao Reino Unido nos anos 1960.
Ao fazer isso, busca diferenciar nele os elementos que surgiram por expressão genuína de um povo; os que surgiram por demanda de um público consumidor; e os que surgiram como estratégia de marketing por parte de gravadoras e produtores. E assim o autor acaba por contar uma grande história sobre como fenômenos culturais são, em grande parte, moldados por quem os consome.
O livro é dividido em 3 partes, sendo que a primeira delas, adequadamente intitulada “O Mundo Que Johnson Conheceu”, abre com uma declaração bastante incisiva:
Provavelmente se escreveu mais baboseira romântica sobre o blues em geral, e sobre Robert Johnson em particular, do que sobre qualquer outro gênero ou artista do Século XX. Conforme urbanoides brancos descobriram as Race Records (Nota: Série de gravações da Paramount Records dedicada artistas negros) dos anos 1920 e 1930, eles remoldaram a música para caber em seus próprios gostos e desejos, criando uma rica mitologia que frequentemente guarda pouca semelhança com a realidade dos músicos que eles admiravam.
A partir disso, o que se segue é um meticuloso trabalho de contextualização da música negra nos Estados Unidos no 1º terço do Século XX. Explorando desde gêneros que podem ser considerados precursores do blues, como os chamados field hollers, até a primeira geração de blues queens, com nomes como Ma Rainey e Bessie Smith, Wald faz uma extensa análise histórica e discográfica para mostrar que, já nessa época, havia uma complexa dinâmica entre público, artistas e gravadoras, para definir o que faria ou não sucesso.
Para além disso, o autor mostra que mesmo o enquadramento de determinada gravação em um gênero como blues frequentemente ia além de seu conteúdo musical. Muitas vezes um mesmo tipo de música era comercializado sob diferentes rótulos, dependendo de quem o executava e de quem o ouviria, entre outros fatores.
Com base nesse contexto, por si já bastante desmistificador, Wald avança para falar especificamente sobre Robert Johnson. Uma das teclas em que o autor mais bate nesse ponto, fundamental para construir seus argumentos na parte final, é a de mostrar o artista de blues como um profissional do entretenimento, frequentemente disposto a negociar com as necessidades do público, e a colher os frutos materiais desse diálogo. Essa perspectiva contraria frontalmente a visão do bluesman como um sujeito totalmente desapegado, e dedicado exclusivamente à expressão de seu sofrimento intrínseco.
Em uma análise musical bastante profunda das poucas gravações que Johnson realizou em sua vida, Wald mostra que ele era, sim um artista excepcional por sua inventividade e expressividade. Mas mostra também que isso não foi suficiente para torna-lo o sucesso que se acredita que ele teria sido à sua época. E mais importante: mostra o quanto da qualidade artística de Johnson era, na verdade, fruto de meticuloso preparo e planejamento.
Uma das minhas passagens favoritas do livro fala sobre a gravação de Me And The Devil Blues, ocorrida em junho de 1937. O autor dá conta do quão espontâneo e repleto de detalhes de interpretação soa o take da música que foi inicialmente lançado para o público. Apenas para então admitir que um segundo take foi lançado postumamente, e que ele conta com exatamente os mesmos detalhes e inflexões do primeiro. O que mostra que, para Wald, “ele não dava um valor particular à improvisação, e (…) ele parece ter enxergado essa prática como bastante antiprofissional, ao menos em gravações”, já que “virtualmente cada frase musical, cada falsete, cada comentário havia sido planejado com antecedência”.
Com base nisso, Wald avança para falar justamente sobre o contexto em que de fato Johnson se tornou um mito: a Inglaterra dos anos 1960. Ele aponta como o relançamento de diversas gravações de Johnson, para um público majoritariamente jovem e branco, ajudou a fomentar o culto a um blues “raiz”, supostamente feito por pessoas que não se importavam com o sucesso comercial, que só queriam expressar suas almas e possivelmente narrar suas aventuras com o oculto.
Uma das curiosidades apontadas por Wald é como alguns dos contemporâneos de Johnson, ainda vivos nos anos 60, passaram a ser idolatrados como relíquias de uma época lendária, contrariando a falta de reconhecimento que tinham em seu próprio país de origem.
É claro que esse movimento acabou por nos dar artistas como Eric Clapton, os Beatles, os Rolling Stones, e toda a genealogia musical inaugurada por eles e seus pares. Mas é interessante pensar como o contexto que deu origem a essa geração foi em parte criado por ela própria, ao criar sua própria visão distorcida da história. O blues como o conhecemos hoje é real, mas Elijah Wald nos mostra como ele emergiu a partir da materialização de um mito.