Nos últimos anos os olhos de todo o mundo voltaram-se para a saúde pública, muito devido à COVID-19. Nunca antes se falou tanto de pandemia, de epidemiologia e de vacinas. Vindo para o Brasil, o SUS foi o principal pilar que sustenta nosso país, com seus profissionais, leitos de UTI e, novamente, as vacinas. Todo cidadão em território brasileiro que se vacinou, foi pelo SUS. A nossa saúde pública resistiu, muito ferida, é verdade, ao discurso irresponsável e negacionista pregado durante todo esse período.

No texto de hoje comento sobre o final do governo de Jair Bolsonaro, que impediu o avanço das pautas de saúde pública, em como o orçamento secreto é usado de forma irresponsável no SUS, encerro com Belchior e meu Nordeste. Bora lá. 

 

Tirar a palavra “gasto” em saúde para se tornar investimento em saúde

Durante todo governo de Jair Bolsonaro, e em especial ao final de seu mandato, na busca desesperada de uma reeleição, o SUS foi de forma constante sucateado. Apenas para citar alguns exemplos: Saúde Indígena, Farmácia Popular, campanhas de vacinação, tratamento e controle do HIV, Atenção Primária, Saúde da Família e Mais Médicos. Todos programas já bem estabelecidos, ou que estavam se estabelecendo, foram colocados de lado com um financiamento que os torna insustentáveis (link).

Para trazer um exemplo atual no Farmácia Popular, caso o orçamento feito pelo governo de Bolsonaro se mantenha no próximo ano, haverá uma queda considerável no número de pessoas atendidas. Apenas para se ter uma noção, o valor previsto para 2023 é 50% menor do que o do ano de 2022, sendo o valor de 2022 considerado um dos menores investimentos no programa desde sua criação (link), além de o governo não apresentar proposta alguma aos beneficiários do programa que ficarão sem esses remédios.

Uma das principais fragilidades do SUS desde sua criação (1988) é o investimento, pois, afinal, “de onde tirar dinheiro para cuidar da saúde de um país com dimensões continentais?” 

Já tenho um texto inteiro aqui no Portal Deviante voltado para esse tema. Falando de forma bem resumida — com o tempo, o SUS conseguiu avanços importantes em seu financiamento, porém tais avanços foram parados pelo Teto de Gastos, que diminui consideravelmente o investimento em saúde no Brasil. Destaco que nosso país é um dos que menos investem em saúde por cidadão, cerca de R$ 3,38 por pessoa ao dia, isso sendo em torno de 3,8% do PIB (link). 

(figura 1- cofre de um porquinho ao lado de um estetoscópio)

Um maior investimento do PIB na saúde é uma das principais pautas da saúde pública brasileira. Porém, na gestão do governo de Jair Bolsonaro esse debate nem ao menos existiu, era quase como se ao falar de gastos em saúde fosse algo prejudicial ao governo e a população. Porém, a literatura científica mostra o total oposto. Um gasto maior em saúde pública melhora consideravelmente a qualidade de vida das pessoas (1). Por isso até mesmo a palavra “gasto em saúde” não deve ser usada, e sim “investimento em saúde.” 

São muitos os fatores que influenciam na saúde, então falar de investimento na saúde é algo muito abrangente. Abrange, por exemplo, alimentação de qualidade, moradia, acesso à informação, renda e educação. Então todo tipo de investimento público, desde que seja aplicado com responsabilidade, tem resultado numa melhor saúde da população e assim uma melhor qualidade de vida (1).    

Aqui chegamos na palavra chave dessa parte do texto: responsabilidade nas questões de saúde pública. Trazendo meu texto já citado, lá comento sobre os gastos desnecessários da pandemia, por ex. na compra e distribuição de cloroquina (link). O que eu quero trazer agora é o intitulado “orçamento secreto” e como ele age dentro do SUS. 

Orçamento secreto na saúde pública (os dedos, os dentes e os testes)

Antes do orçamento secreto temos o orçamento público — que é feito todos os anos, com base nos impostos arrecadados nos anos anteriores. Esse tem algumas regras, como um investimento mínimo para áreas como saúde e educação. Esse orçamento é elaborado pelo Congresso Nacional junto ao Presidente da República no ano anterior, por exemplo, o orçamento de 2023 está sendo elaborado no final de 2022 (link). 

Existem, então, as Emendas parlamentares que podem ser modificadas conforme as propostas dos Senadores e Deputados Federais, ou seja os políticos direcionam recursos e orçamentos para suas bases eleitorais. São 4 tipos de Emendas: Individuais, de Bancada, de Comissão e Emenda do relator (link). 

Essas emendas têm regras em torno delas, por exemplo: a identificação dos beneficiários dos recursos públicos destinados através das emendas, bem como o nome de qual deputado ou senador que indicou a emenda e o repasse para determinado beneficiário, com o objetivo de dar publicidade e transparência aos recursos públicos destinados. 

 

(imagem 2 – representação dos batimentos cardíacos com uma ambulância de fundo. Fonte: link)

E chegamos no Orçamento secreto que é um tipo de nome dado às emendas do relator, mas nas quais não se precisa atender às regras de publicidade e transparência dos outros tipos de emendas. Desde o ano de 2019, essas emendas não constam o nome do parlamentar que solicitou o dinheiro presente, pois o relator negocia quanto cada deputado poderá indicar, mas sem a identificação do deputado ou senador no projeto de orçamento, por isso o nome de orçamento secreto (link).

Apenas para resumir, o orçamento secreto não precisa apresentar a destinação dos recursos, nem qual parlamentar foi responsável por indicar tal emenda para o relator. A destinação de verbas ocultas é uma máquina de barganha política. Para explicar qual o impacto desse orçamento no SUS, vou falar dos dedos de Igarapé Grande, dos dentes de Pedreiras e dos testes de Santa Quitéria.   

Em 2020, uma cidade no interior do Maranhão, Igarapé Grande, com 11.5 mil habitantes, realizou mais de 12 mil radiografias de dedos, apenas naquele ano. Tal fato leva ao aumento dos recursos, ou seja o dinheiro, repassado para o município no ano seguinte.

De acordo com o documento que levou à ação da PF, “com o intuito de majorar indevidamente o teto de repasse de ações e serviços de média e alta Complexidade financiados com recursos de emendas parlamentares do famigerado ‘orçamento secreto’ (…), desviando os recursos através de contratos administrativos fraudulentos” (link).  

Agora vamos para Pedreiras, também no Maranhão, com cerca de 40 mil habitantes. O município realizou, no ano de 2021, mais de 540 mil extrações dentárias… isso mesmo, cada habitante extraiu por volta de 14 dentes, incluindo bebês. Isso gerou o título na reportagem da revista Piauí como “A cidade mais banguela do Brasil” (link).

Continuando no Maranhão, agora na cidade de Santa Quitéria, os números de 2020 são bizarros, como por ex. 49 mil dosagens de de colesterol, o que dá mais ou menos duas por habitantes, 52 mil exames para identificar lesões no fígado, mais de duas por habitantes e quase 60 mil eritrogramas, que é tipo um exame de sangue, e, por acaso, no ano anterior o mesmo município não tinha realizado nenhum (link).  

Aqui é importante destacar que houve, sim, escândalos de corrupção envolvendo o SUS em outros governos, porém essas aberrações como a do orçamento secreto vieram no que talvez seja uma das maiores crises de saúde pública que veremos. Deixo um ponto pra vocês pesquisarem, por que motivo esses casos citados foram todos no Estado do Maranhão? 

(imagem 3 – desenho de pessoas com diferentes raças usando mascaras. fonte: link)

Durante esses anos (2019/2022) esteve no poder um governo que tinha como pauta o esvaziamento de políticas públicas reconhecidas mundialmente. Apenas para citar um ex., o que acontece com as campanhas de vacinação brasileira durante a gestão de Jair Bolsonaro é um crime (link).

Alguns desses números bizarros do orçamento secreto são de 2020/2021, e não preciso nem lembrar do caos em saúde pública que foram aqueles anos. Tivemos dias em que morreram mais de 3000 pessoas por COVID-19. Enquanto isso, o governo negava negociar vacinas e estimulava um discurso negacionista. Algo que, de acordo com epidemiologistas, se o Brasil tivesse mantido a média mundial de mortes, teriam sido salvas no mínimo 120 mil vidas (link).   

120.000 vidas, isso não é apenas um número solto, são pessoas que tinham suas individualidades, seus amores, famílias, suas histórias que foram interrompidas por irresponsabilidade dos que estavam à frente do Governo Federal. Talvez esse seja o principal símbolo de que a saúde pública deve ser levada a sério.  

Agora, na próxima parte do texto vamos para um bom exemplo de responsabilidade na gestão em saúde e como isso pode ser usado de modelo nos próximos anos. Sempre do Nordeste que vem a salvação deste país. 

Consórcio Nordeste e seu papel na Pandemia

Nordeste é uma ficção, nordeste nunca houve” essa frase da música “Conheço o Meu Lugar”, do meu conterrâneo, Belchior. Confesso que nunca entendi bem o que ela significa, mas gosto de trazer o suas canções pro meu texto. A música continua com “Não, eu não sou do lugar dos esquecidos. Não, eu não sou da nação dos condenados. Não sou do sertão dos ofendidos. Você sabe bem” (link).   

O Consórcio Nordeste foi criado em março de 2019, com o principal objetivo de “ser uma ferramenta para atrair investimentos e alavancar projetos de forma integrada para a região (…) Dentre as possibilidades abertas estão a realização de compras conjuntas e a implementação integrada de políticas públicas, como nas áreas de educação, saúde e segurança” (link

Chegando então em 2020, tal consórcio teve papel fundamental ao fazer a região Nordeste exemplo no combate à pandemia. Os motivos para isso são variados, dentre eles se destacam a atenção à ciência e a resistência que a nossa população tem ao bolsonarismo (link). 

(imagem 4 – símbolo do consorcio, mapa da região nordeste com diferentes cores)

Desde os primeiros meses, o Nordeste agiu de forma diametralmente oposta ao do Governo Federal. Um mês após o início da pandemia foi formado o comitê científico do combate ao Coronavírus aqui da região, que tinha como objetivo lançar boletins científicos com orientações para os governadores (link). 

Por exemplo, já os primeiros boletins indicavam distanciamento social, uso de máscaras,  ações de apoio para os mais necessitados e monitoramento epidemiológico. Incluíam pesquisas que mostravam a não eficácia da cloroquina e outros medicamentos que foram pregados veementemente pelo Governo Federal, incluindo o até então presidente Jair Bolsonaro.      

Todas as medidas indicadas pelo Comitê científico foram seguidas pelos governadores da região, isso dentro do possível e de acordo com a realidade de cada Estado. Como resultado disso, o Nordeste teve o menor índice de óbitos do país. No Brasil a média de mortes é de 282 por 100 mil habitantes, já no Nordeste esse número é de 143 por 100 mil habitantes (link). 

Sim, ainda são números altos, e o dano que a pandemia causou no Brasil vai demorar muito para ser compreendido. Porém, se a média do Nordeste tivesse sido a mesma do Brasil por volta de 200 mil vidas teriam sido salvas.

(imagem 5 – desenho de pessoas na rua de mãos dadas com uma imagem da saúde no lugar do sol, Fonte: Ilustração de Rose Wong, link)

A pandemia foi cruel com o Brasil, e repito, muito devido à irresponsabilidade de Jair Bolsonaro, sendo ele um dos únicos líderes mundiais a negar constantemente a gravidade da COVID-19 (link) e negar também a importância fundamental da vacina (link). Isso não pode ser esquecido e, sinceramente, o Nordeste não esqueceu, na verdade nunca comprou esse discurso de extrema direita.  

O motivo pra isso acontecer? eu realmente não sei. No decorrer dos próximos anos, sociólogos e antropólogos talvez estudem o que acontece por aqui, o motivo de ser tão discrepante a diferença em termos eleitorais do Nordeste com o resto do Brasil. O discurso extremista não se cria e nunca se criou. Talvez a noção de coletividade das pessoas da região seja maior e entendam a responsabilidade que nós, como indivíduos, temos.

A real é que já passou da hora de o restante do Brasil achar que a gente votou no Lula por causa do Bolsa Família ou algo nesse sentido. Minha região é bem mais complexa que isso, aqui é terra de Belchior que cantou em seus versos “Fique você com a mente positiva, que eu quero a voz ativa, ela é que é uma boa.”

 

Fonte da imagem de capa link

Referências:

  1. BUSS, P. M. Promoção da saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva, 5(1):163-177, 2000.disponível em: https://www.scielosp.org/article/ssm/content/raw/?resource_ssm_path=/media/assets/csc/v5n1/7087.pdf