Vamos lá, mais uma vez bater nesta tecla. Para azedar todo o clima de Dia dos Namorados e estragar todo o romantismo racionalista-científico deste programa aqui, a Nature publicou uma notícia no último dia 12 de junho (eu sei!) externando preocupação sobre a expansão de um gene que confere resistência a um antibiótico tido como último recurso em infecções resistentes. A droga em questão se chama colistina e o gene de resistência foi batizado de mcr-1 (acrônimo para seu nome em inglês mobilized colistin resistance). Ou seja, o espectro do apocalipse bacteriano está na área mais uma vez, rondando, esperando, afiando o gancho para atacar. Isso já não aconteceu antes? Já não está difícil comprar antibióticos sem receita? Devemos mesmo levar isso a sério?
A resposta para todas as perguntas acima é SIM, todavia, alguns pontos fizeram os pesquisadores levantarem as orelhas e divulgarem este comunicado em um dos periódicos mais acessados do mundo. A colistina é um antibiótico que existe desde a década de 1950, mas raramente era usada em pessoas porque pode causar problemas renais graves. Só que daí muitos países o usam para promover crescimento do gado. Esta prática é que parece ter selecionado as bactérias resistentes à colistina. Isso tem se tornado um grave problema ultimamente, porque, devido à crescente resistência já encontrada a outros antibióticos, os médicos se voltaram cada vez mais para colistina na última década para tratar pacientes não-responsivos a outras drogas. Nas palavras de Lance Price, um pesquisador de antibióticos da Universidade George Washington, “É uma droga tóxica e nossa preocupação em estarmos perdendo seu efeito é um sinal de nosso desespero em relação à resistência bacteriana”.
Desde seu surgimento e descoberta em bactérias de porcos na China há 18 meses, o gene de resistência foi encontrado em todo o mundo em uma taxa alarmante, de acordo com várias apresentações na reunião da American Society for Microbiology (ASM) ocorrida em Lousiana nas últimas duas semanas. Os genes de resistência à colistina evoluem naturalmente em bactérias, mas os especialistas em saúde pública começaram a se preocupar quando pesquisadores na China relataram em 2016 que o mcr-1 havia se mudado do genoma bacteriano para um plasmídeo, ou seja, um pedaço circular de DNA que pode saltar entre espécies de bactérias. Apesar de algumas evidências sugerirem que os plasmídeos que transportam o mcr-1 existam nas fazendas há décadas, sua ocorrência parece que tem aumentado.
De acordo com Guo-Bao Tian, microbiologista da Sun Yat-Sen University, em Guangzhou, ele e seus colegas descobriram que 10% dos genes mcr-1 apareceram nas cepas da bactéria intestinal Escherichia coli que também eram resistentes a outros antibióticos. O grupo encontrou o gene de resistência em 25% dos pacientes em um hospital de Guangzhou em 2016. Esta linhagem de E. coli também continha um gene chamado blaNDM-5 que confere resistência a carbapenêmicos – outra classe de antibióticos de último recurso. Embora os dois genes tenham sido encontrados em plasmídeos separados, é comum que um plasmídeo carregue genes de resistência para múltiplos medicamentos, como informa Catherine Logue, microbiologista veterinária da Iowa State University.
O tratamento com um fármaco pode selecionar bactérias com tais plasmídeos, potencialmente aumentando a quantidade de resistência a vários medicamentos. Diante disso, um único comentário se torna possível: que bela merda! E essa ênfase é necessária, porque Logue e sua equipe relataram terem encontrado genes de resistência a carbapenêmicos e a outros antibióticos da classe que incluem penicilinas em amostras de 107 frangos em aviários no Brasil, que, diga-se de passagem, é o maior exportador de aves do mundo (leia mais sobre isso aqui). Cerca de 60% das amostras apresentaram cepas de E. coli que levavam o mcr-1. Ainda segundo Logue, o gene parece ser particularmente bom em saltar para diferentes organismos, o que poderia torná-lo muito bem-sucedido e difícil de tratar. Se alguém comer carne mal passada ou trabalhar com animais que abrigam bactérias contendo mcr-1, teoricamente seu micróbios intestinais têm o potencial de adquirir o gene de resistência. Ou seja, talvez eu pare de comer carne sangrando por uns tempos até ver aonde isso vai dar (não, carne torrada não dá!).
O que está sendo feito diante destes fatos, no mínimo, preocupantes? Por exemplo, o Brasil proibiu a colistina para uso agronômico em 2016, enquanto a China seguiu o exemplo em 2017, mas não se tem certeza de quanto isso irá reduzir a propagação desses genes. Segundo Lance Price, o que se espera é que o caso mcr-1 pelo menos possa servir de alerta sobre o uso excessivo de antibióticos em animais de fazenda.
Sem imagens engraçaralhas hoje, porque no último dia 20 de junho, enquanto eu terminava este post, eu soube que um colega de trabalho da minha faixa etária havia falecido por conta de uma pneumonia, possivelmente causada por uma bactéria resistente, dado que era uma pessoa saudável. Ou seja, isto está mais próximo de nós do que imaginamos. A seleção natural está se lixando se você acredita nela ou não, ela simplesmente age, como Galileu Galilei já havia resumido em sua frase famosa: Eppur si muove!