Talvez você já tenha ouvido falar de Torto Arado na internet nos últimos meses. O livro é uma sensação da literatura nacional e está fazendo muito sucesso a ponto de alguns dizerem que esse livro já nasceu clássico. Existe a #tortoarado, em que muitos leitores demonstram nas redes sociais seus sentimentos ao ler o livro. Ele também está há semanas nas listas dos mais vendidos do Brasil.
Torto Arado é um livro simples (no melhor sentido da palavra) e a genialidade dele é justamente essa, eu com certeza sou do time que acha que ele já é um clássico e, se você quiser saber um pouquinho mais do hype, vem comigo nessa resenha.
A sinopse do livro é: duas irmãs Bibiana e Belonísia vivem em uma fazenda na Chapada Diamantina na Bahia onde nasceram e vivem com sua família. Um acidente acontece envolvendo uma faca da avó delas quando elas ainda são crianças fazendo com que as duas fiquem muito ligadas ao longo da vida. No desenvolvimento da história várias camadas de um Brasil muito recorrente, mas também muito esquecido são apresentadas com maestria pelo Itamar.
Bibiana e Belonísia fazem parte de uma família que assim como outras tantas trabalham na fazenda Água Negra como agricultores produzindo vários tipos de alimentos. Os donos da fazenda são grandes proprietários de terras que lucram com a produção e que sequer moram lá, apenas aproveitam os lucros que a produção dos alimentos gera.
As famílias trabalham na terra dos patrões e em um pequeno pedaço de terra podem morar e produzir seu próprio alimento. Todos os trabalhadores são descendentes de pessoas escravizadas que chegaram naquela região há muito tempo. Assim como na fazenda Água Negra a região é cheia de fazendas em que os trabalhadores têm condições de trabalho e sobrevivência muito parecidas com as que a família das nossas protagonistas tem.
Nos elementos que contam a história vemos a descrição da rotina super puxada de trabalho na terra e as tradições da religião que eles seguem, o Jarê, uma religião de matriz africana que tem elementos do catolicismo, do espiritismo Kardecista e de outros sincretismos. Também vemos como a sabedoria popular daqueles habitantes das fazendas é rica e cheia de camadas.
A ambientação da história é feita de forma magistral narrando elementos da paisagem local, da fauna e da flora, dos costumes e das crenças. O Jarê, por exemplo, é uma religião que só ocorre na região da Chapada Diamantina e por isso são tão fascinantes as passagens em que eles nos explicam como a religião é presente na vida daquelas pessoas. Além do Jarê a gente ainda vai conhecendo vários nomes de plantas e animais da região.
Acho que boa parte do que dá para falar sem spoiler é isso, mas ainda vou dizer algumas coisas que me encantaram nesse livro. A história tem um forte viés político pois viver é um ato político, mas se engana quem acha que a história não tem elementos de ficção que são de deixar o leitor doido de curiosidade em saber o que vai acontecer. Tem e tem muito.
Trajetória Livro
Outro ponto que me encantou é sobre a trajetória do livro, que é no mínimo peculiar. O Itamar é um geógrafo de formação e que fez doutorado na UFBA (Universidade Federal da Bahia) em estudos étnicos africanos. Ele também é servidor público do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) um instituto que tem, entre outras atribuições, a gestão das terras da União (governo federal).
Servidor público e acadêmico, mas sem contatos com editoras e o mercado editorial, o Itamar já tinha escrito alguns contos, mas nunca tinha publicado um romance. Ele decidiu então pegar o manuscrito do Torto Arado e enviar para um prêmio de Portugal, o prêmio LeYa em 2018. Era uma chance de publicar o livro e também de fazer uma divulgação, coisa que ele não tinha como fazer aqui no Brasil. Assim que foi premiado como melhor romance em língua portuguesa de 2018 ele conseguiu publicar o livro em Portugal e logo recebeu várias propostas de editoras no Brasil. Publicou então Torto Arado no Brasil pela editora Todovia em 2019. Em 2020 ganhou também o Prêmio Jabuti e o Prêmio Oceanos de literatura.
Outro ponto super importante é que esse trabalho do Itamar no INCRA como servidor público há 15 anos fez com que ele fizesse várias viagens para a Chapada Diamantina e entrevistasse as pessoas que vivem lá. Ele conversou com muitas pessoas, fez pesquisas sobre a rotina, sobre o Jarê, sobre como aquelas pessoas vivem e enxergam o mundo. Eu garanto que isso fez com que o livro ficasse especial. Mas ele garante que a história de Torto Arado é uma ficção baseada em fatos da realidade que ele coletou na sua vida profissional. Nenhum personagem existe na realidade.
Outra coisa que mostra a genialidade do Itamar é que ele usou elementos de narrativa que não descrevem o tempo em que a história se passa. Você consegue através de algumas pistas que ele deixou no texto saber mais ou menos em que época da história do Brasil a saga de Bibiana e Belonísia se passa. É genial da parte dele porque mostra que a história delas poderia se situar em vários pontos da história do país, o que é triste mas demonstra sem deixar dúvidas que o racismo estrutural e estruturante da nossa sociedade tem muitas marcas até os dias atuais. Outra sacada de gênio do Itamar é que o livro apesar de curto, 262 páginas e com uma linguagem muito fluida e simples (as palavras mais complicadas pelo menos para mim, foram os nomes da fauna local) é dividido em 3 partes e em cada uma delas uma voz narrativa conta a história de sua perspectiva. Isso faz com que a história fique muito especial. A parte 3 é a minha preferida.
Não sei mais do que posso dizer para te convencer a ler, mas ainda posso ressaltar que as personagens femininas são as protagonistas absolutas dessa história, apesar dos personagens homens serem incríveis também (o pai delas é maravilhoso), essa história é delas.
Leia, leia, leia. Você não vai se arrepender.
Bônus para quem se interessou e quer saber mais detalhes por trás do livro.
O Itamar deu uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura no dia 15/02/2021 e nessa entrevista (tem alguns spoiler leves, ok?) ele disse que, como um pai, não tem preferência entre Bibiana e Belonísia quando foi perguntado qual das protagonistas ele preferia.
Itamar adiantou também que o livro faz parte de um projeto maior, em que em uma trilogia serão abordados temas sobre a terra. São universos diferentes, com outros personagens, mas ele adiantou que a próxima história se passará no Recôncavo Baiano, em uma divisão entre a zona urbana e a zona rural em terras que pertencem a igreja católica.
Outra coisa que ele contou nesta entrevista é que ele tinha uma prévia do livro que ele tinha escrito ainda jovem e que tinha cerca de 80 páginas e que ele perdeu em uma mudança. Ele passou muitos anos desanimado em retomar a escrita, mas depois do trabalho no INCRA ele teve contato com tanta história boa que resolveu reescrever a história mudando um pouco a perspectiva do que ele lembrava do manuscrito antigo e saiu Torto Arado. Eu digo sem duvidar, ainda bem que ele insistiu.
O que mais me empolgou com esse hype todo é que o Itamar é um escritor ainda muito jovem 41 anos e vai produzir ainda muito. Senti quase que uma satisfação em estar viva na mesma época que ele para ler o que ainda será lançado. Aguardemos!
Me conta nos comentários o que achou do livro quando ler, tá?
Até a próxima!
Imagem de Capa: Capa do livro em que as duas irmãs protagonistas estão desenhadas juntas e de mãos dadas, cada uma com uma folha de espada de santa bárbara na outra mão. Eles vestem roupas coloridas e usam turbantes. O fundo é rosa e Torto Arado está escrito em cima em vermelho e logo abaixo Itamar Vieira Júnior em preto.
Referências
Entrevista Itamar Vieira Júnio no Programa Roda Viva em 15/02/2021. Disponível aqui
Matéria na Revista Piauí em que o fenômeno da divulgação do livro através das redes sociais. Disponível aqui