E a Música Brasileira tem dessas coisas!

Caetano Veloso nos pergunta na letra de “Podres Poderes”: “Será que apenas os hermetismos pascoais, E os Tons, os Mil Tons, seus sons e seus dons geniais nos salvam, nos salvarão dessas trevas e nada mais?” e eu respondo: ultimamente quase que somente eles são capazes de manter nossa sanidade. A música tem sido um grande suporte para atravessar esse momento de caos social em que vivemos!

Mas, não é porque surgiram problemas mais evidentes que os problemas de antes deixaram de existir. E um dos grandes, que há tempos é notícia constante e material de estudo das ciências sociais, é a violência (física e psicológica) contra a mulher.

Nesse quesito, o “Tom” que vem nos salvar não é ninguém menos que o Tom Zé. O grande compositor e músico baiano, consagrado desde a época do Tropicalismo ao lado de outros grandes como ele, propõe, a nós homens, uma reflexão mais que profunda nesse trabalho maravilhoso que tem como temática o tratamento dispensado, ao longo da História, às nossas fiéis companheiras.

O álbum de 2005, intitulado Estudando o Pagode – Na Opereta Segrega Mulher e Amor, que vem com o pressuposto de ser uma continuação do disco Estudando o Samba de 1976, deste traz apenas a referência na capa: uma cerca de arame farpado e uma corda, que à época faziam referência à ditadura militar, dessa vez traz, além desses elementos a figura de uma mulher. Tão próxima, mas ainda separada, segregada em um mundo à parte, sem direito ao respeito e à igualdade.

A obra temática encerra em si uma discussão importantíssima ainda nos dias de hoje. Sem cair no didatismo, ao longo das dezesseis faixas do álbum, divididas em três “atos”, Tom Zé, ladeado por um time de músicos de primeira, nos põe a pensar nas injustiças impostas à mulher: “o macho pela vida se valida a molestar a mulher se diverte. Atormentada, ela, que se péla, pouco pára de pé e padece.” Canta em “Mulher Navio Negreiro”, quinta faixa do álbum.

Tom Zé busca uma discussão feita pela Sociologia e pela Filosofia. As mulheres ainda têm sido preteridas em suas lutas e reivindicações por igualdade de tratamento e colocadas, de maneira  desvalorizada, na esfera  do privado, enquanto o homem foi posto em evidência na esfera de ação pública.

Segundo Hannah Arendt, viver na esfera privada significa estar privado de ser ouvido e visto por todos numa comunidade política em que os indivíduos partilham objectivamente uma ação política num espaço comum. A esfera privada limita-se a um interesse pessoal circunscrito aos condicionalismos da sobrevivência biológica na família e na casa. Na Antiguidade, os romanos compreenderam que a esfera privada e a esfera pública deveriam coexistir simultaneamente. A esfera privada oferecia atividades “espirituais” como o estudo das ciências e das artes, embora nunca pudesse substituir a ação política na condução dos assuntos públicos. Contudo, enquanto os romanos nunca sacrificaram a esfera privada face à maior importância do espaço político, os gregos ao invés denotaram sempre na esfera privada da casa e da família a ausência da essência da condição humana – a ação política.

Para essa mesma autora, “a esfera privada é a casa da família, o  reino  da  violência,  onde  somente  o  homem  exerce  o  poder.  À  mulher  compete  procriar  e cuidar dos filhos e, ao homem, exercer um poder totalitário sobre a vida e a morte.”

Simone de Beauvoir já nos aponta em 1949, no livro “O segundo Sexo”, a necessidade de entendermos o que significa o “gênero” na sociedade contemporânea. O que entendemos por “homem” e “mulher” são frutos de uma construção social que varia de  acordo  com  a  cultura  e  o tempo histórico. Chamamos  de  gênero os  comportamentos, maneiras de  vestir  e  de  se  relacionar  impostos  ao  masculino  e  ao  feminino,  que  variam  conforme  a  lógica cultural  de  cada  sociedade. Assim, o lugar imposto à mulher na sociedade de hoje é sintomático dos valores machistas e sexistas que ainda vigoram.

Michel Foucault, em seus estudos, observa que a sociedade se organiza em torno das relações de gênero, do controle dos corpos através das instituições sociais e dos discursos de poder.

Tom Zé, como de costume, coloca o dedo em uma grande ferida da nossa sociedade.

O álbum, além de trazer discussão tão relevante, vem com os típicos arranjos desconstruídos e irreverentes do compositor de Irará – BA e conta com produção de Jair Oliveira. Os arranjos vocais e a percussão são um show à parte! Tem participações especiais também de Luciana Mello, Zélia Duncan, Edson Cordeiro e Patrícia Marx.

Escutamos ao longo do álbum diversos sons pouco usuais na música popular, como garrafas, assovios e um “instrumento” bastante inusitado: a folha de ficus. O próprio compositor explica como trouxe essa ideia para o estúdio:

O fícus tem uma folha maleável. Em Irará as crianças dobram essa folha e amassam uma das pontas do canudo resultante, de forma que fica igual a uma biqueira de oboé.

Se a assopramos com cuidado conseguimos um som nasal e renitente.

Em São Paulo, o Colégio Batista, em Perdizes, é cercado de fícus; um dia eu peguei algumas folhas e levei para o estúdio de Paulo Lepetit.

Com ele e Gilberto Assis, passei um dia gravando tudo que eu conseguia com o incipiente instrumento. Interessava-me justamente a dificuldade de ele adaptar-se à escala diatônica, produzindo um som glissado e microtonal.”

Algumas faixas têm uma temática um pouco diferente, discutindo a importância social do samba, mas não deixando também de tocar no assunto principal da obra. O álbum traz também, na faixa “A Volta do Trem das Onze”, uma belíssima homenagem a Adoniran Barbosa – o imortal sambista de São Paulo.

Tom Zé, em sua carreira, sempre se preocupou em fazer uma crítica sofisticada e mordaz às estruturas sociais. A partir de seu olhar de homem criado no interior do sertão baiano, ele consegue desmantelar o verniz social para revelar, lá no fundo, o ser humano em seu estado bruto: insensível, egoísta, violento e, ao mesmo tempo, frágil e desesperado.

Ao longo do álbum, encontramos um Tom Zé sarcástico em alguns momentos e sensível e lírico em outros, cantando as agruras e as dificuldades do homem em compreender a alma feminina em sua plenitude. O lirismo e a poesia presente em todas as faixas transbordam na décima quarta faixa: “Teatro (Dom Quixote)”, na qual o compositor, em dueto com Jair Oliveira, nos encanta com versos bem construídos e encaixados em uma métrica precisa:

 

Dom Quixote: Tem teatro no canto do bode, Agora também no pagode.

Que somente os dementes, os loucos, os teatros,

Os corações, os quixotes, os palhaços,

Podem vencer os dragões aliados

Aos caminhões e aos supermercados.

E assim retornando essa doce loucura

Que o transe, o abandono e o delírio procura

Pra devolver ao amor plenitude

No êxtase ter-se outra vez a virtude.

Que a inocência, essência do sonho, devolva

Os sais abissais do amor às alcovas.

Desta casa onde casa e se cria

Um degrau

Da minha catedral

O teatro do ator que recria Quixotes de Espanha

La Mancha e Bahia.

E pelo arauto

No alto do palco

Onde o mito vomita uma história

Que repete a estória da história.

O canto do bode

Espermatozóide

E o pagode na prece

Do samba-enredo reconhece

Sancho Pança: Que somente os dementes…

Ouvir “Estudando o Pagode…” mexe bastante com a gente, seja homem ou mulher. Os sons quase mágicos criados pelo artista são a moldura perfeita para uma análise profunda do quanto nossa sociedade precisa repensar alguns valores.

Para mim, desde que conheci a obra, é necessária uma audição anual para repensar minhas posturas, principalmente diante da minha companheira e de outras mulheres do meu convívio. E também para me deliciar com as harmonias e versos maravilhosos de um dos maiores artistas desse país, que, infelizmente, ainda é mais conhecido e reverenciado no exterior do que no próprio Brasil.

Viva a Música Brasileira! Vida longa ao Mestre Tom Zé.

Link para a ficha técnica do álbum no site oficial do artista:

Link para o álbum no Spotify

Fonte da imagem

Bibliografia:

ARENDT, Hannah (1997). A Condição Humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 8ª edição revista.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1980 [1949]. 2 v.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, v.I: Vontade de saber. Rio de Janeiro. Graal, 1988.


Anderson Couto é historiador, professor, podcaster, colaborador do Time de História do Portal Deviante e host do Podcast “Quem Foi? Como Foi?” (quemfoicomofoi.wordpress.com/)