Na época em que vivemos, os escritos de George Orwell nunca pareceram mais necessários e precisos. Para mim, o momento mais emblemático sobre a atualidade dos escritos de Orwell aconteceu após a eleição de Donald Trump em 2016, quando 1984 – obra prima do autor – voltou à lista de mais vendidos, talvez pelo temor de que estaríamos caminhando em direção a um “Ministério da Verdade” e de um mundo de pós-verdades. A realidade é que chegamos cada vez mais perto da vida descrita na distopia de Orwell, a cada notícia de proliferação de fake news e bots nas redes sociais, sempre que há a manipulação de informações ditas “oficiais” e com o uso cada vez mais sistemático de “pós-verdades”. E, com precisão temporal, chega essa coletânea de textos cujo fio condutor é a Verdade – um conceito que o próprio Orwell considerava abstrato, vago e tão coletivamente aceito a ponto de ninguém saber o que realmente significa.

É importante ressaltar que o livro é composto de diversos recortes selecionados, mas essa seleção demonstra que, para Orwell, a Verdade nada mais é que a descrição da realidade, sem partidarismos. É a lógica de que dois mais dois é, e sempre será, quatro. É o julgamento teoricamente isento de qualquer ação política. E aqui entra a hipocrisia de diversas sociedades ditas avançadas e democráticas. Um dos exemplos mais contundentes descritos no livro é a diferença de tratamento por parte da opinião pública inglesa entre as humilhações dos alemães contra os judeus e os aplausos aos desfiles que expuseram francesas colaboracionistas após a retomada de Paris. O apego de George Orwell à verdade era tão intenso que ele, curiosamente socialista, condenava até a hipocrisia do sistema soviético – ao ponto de fazer da “Revolução dos Bichos” sua alegoria perfeita.

Um dos artigos selecionados comenta a dificuldade do autor de conseguir publicar uma obra que claramente comparava os soviéticos a porcos tirânicos. Com um conteúdo tão escancaradamente crítico aos russos – que naquele momento eram parte crucial dos esforços Aliados contra Hitler – editores e autoridades temiam as consequências políticas de tal publicação e colocavam empecilhos à obra. Tal artigo traz um comentário que exemplifica bem o conceito de Verdade no entendimento de Orwell: a não publicação do livro era para ele a forma mais pura de censura – mesmo que não institucionalizada ou autocrática – pois impedia o público de ter acesso à realidade (Verdade) nua e crua. Falar dos crimes soviéticos deveria ser necessário a todos os meios de imprensa, mas isso foi pouco comum numa Inglaterra que escolheu virar as costas para as ações questionáveis de um importante aliado no front. Orwell então questiona qual a liberdade teórica e senso crítico que realmente permeiam a imprensa inglesa, que preferia ignorar toda a matança promovida pelos soviéticos. Se o que Hitler fazia era abominável e estampava jornais, por que o que Stalin fazia não era tratado da mesma forma?

Assim como as referências à Segunda Guerra, as citações históricas deixam alguns trechos datados, mas há inúmeros outros fragmentos – como o abaixo – que poderiam ter sido produzidos hoje em dia se Orwell estivesse vivo:

“O que me impressiona cada vez mais — e impressiona muitas outras pessoas também — são a extraordinária virulência e a desonestidade do debate político em nossa época. Não quero dizer com isso apenas que as controvérsias são cáusticas. Elas têm de ser assim quando se trata de questões sérias. Estou me referindo ao fato de que quase ninguém parece convencido de que um oponente merece ser ouvido com isenção ou que a verdade objetiva importa, a menos que seja para marcar pontos na discussão.” (p. 73)

Não seria essa a descrição perfeita do debate que vemos não só no Brasil mas em tantas outras partes do mundo? O fato que a “verdade” não tem valor em sim mesma em qualquer debate político moderno deveria ser motivo de preocupação para a sociedade e seus líderes, mas são esses últimos que desmontam e alimentam a virulência descrita por Orwell. Ele já avisava: “Ninguém busca a verdade, todos estão defendendo uma “causa”, com total desconsideração pela imparcialidade ou pela veracidade, e os fatos mais patentemente óbvios acabam ignorados por quem não quer saber deles.”

George Orwell talvez fosse um visionário, mas provavelmente era só um homem com medo do que o futuro reservava. Para ele a guerra em si era desimportante, mas o pós-guerra e o prospecto de mundo desprovido de verdade objetiva e análise crítica deveriam ser motivo de preocupação por cada cidadão. Mas parece que caminhamos na direção oposta. Em uma de suas alegorias mais interessantes, o autor se impressiona com a quantidade de pessoas que ouviram a transmissão radiofônica de “A Invasão Marciana” e acreditaram nela. Esse episódio é o exemplo perfeito da incapacidade das pessoas de questionarem a veracidade das informações entregues pelos meios de comunicação. O que ele diria se visse as correntes compartilhadas pelo WhatsApp e as desinformações na internet?

Em certos momentos do livro, Orwell me lembra seu conterrâneo e contemporâneo Winston Churchill, que não era tímido em falar dos erros da democracia, mas enfático ao defendê-la: “A democracia é a pior forma de governo, com a exceção de todas as demais”. Por mais que Churchill incorporasse parte da hipocrisia imperialista inglesa, ele era crítico explícito de Stalin e defensor da Verdade – o que isso significasse para ele. Não era exatamente isso que Orwell buscava comunicar em seus textos?

 

Outro ponto para o qual Orwell nos chama a atenção é a questão instrumentalização da informação e da verdade aos objetivos do orador. Mesmo que o conceito de “nós contra eles” ainda não tivesse se formado como conhecemos hoje, Orwell já apontava as incongruências do uso político da verdade, perfeitamente resumidas em “O que se nota é que a verdade vira mentira na boca do inimigo”. E quando isso caminha de mãos dados com a falta de questionamento da imprensa que comentamos acima, “Todos acreditam nas atrocidades do inimigo e duvidam daquelas cometidas por seu próprio lado”. E não é esse o quotidiano das redes sociais?

Longe de mim desmerecer a obra de Orwell, mas o fato que vivemos os mesmos temores autocráticos, deturpadores da verdade e manipulador de fatos 80 anos depois deveria dizer mais sobre o nosso momento histórico do que sobre o brilhantismo do autor. Este livro me mostra não importa quantas pós-verdades existam por aí, haverá sempre aqueles que levantam sua voz para defender a Verdade. Talvez o grande problema seja diferenciá-los da gritaria ao nosso redor.