Este texto tem um tempo médio de leitura de 8 min. Então, sugiro lê-lo ouvindo o concerto Inverno de Antonio Vivaldi (com pouco mais de 8 min)
“Cooked”, do jornalista Michael Pollan, foi um dos primeiros livros de gastronomia que eu li e isso foi há mais anos do que eu gostaria de admitir. Até então, já gostava de gastronomia, mas livros como o dele nos fazem pensar muito sobre toda a dinâmica que envolve cozinhar. Não apenas do ato em si, mas o caminho até o prato. Então, ao abrir o livro tema desta resenha já fiquei feliz em saber que o prefácio seria escrito pelo autor de Cooked.
Nas primeiras páginas, Pollan nos apresenta a autora, Samin Nosrat, e conta um pouco sobre suas aulas com ela. Neste momento, se ainda desconhece a autora, o prefácio irá ajudar muito na construção da imagem desta Chef tão inteligente e apaixonante. Além disso, já começamos a nos familiarizar com sua visão gastronômica e com grandes regras gerais que permearão os quarto pontos cardeais, para ela, da arte de cozinhar. Cito uma: o simples e revelador ato de provar a comida em todos os processos de criação do prato. Parece óbvio, mas ao longo do livro a autora nos municia e nos educa para aprimorar esse singelo ato.
A primeira frase, na introdução, deste livro é: “Todo mundo pode fazer comida boa”. Isso é empoderador, é estimulante! Eu posso, você pode cozinhar boa comida desde que entendamos o que estamos fazendo. Entender o que se faz e o que se estuda é fascinante. Isto, inclusive, é em grande parte o norteador do SciCast (podcast, carro chefe do Portal Deviante): entender tão a fundo diversas áreas do conhecimento que, por fim, elas se tornam divertidas, naturais.
A partir desse ponto ela já derruba uma base de boa parte dos livros e programas de culinária do dia a dia: a receita. Mas, a receita como um dogma que é derrubada. Porque ela nos ensina que receitas têm sim sua serventia, dentro de um contexto, nos inspirando e instigando por caminhos novos, sem o ônus de ser literal.
Para tanto, Samin nos presenteia com o seu conhecimento gastronômico do que ela chama de quatro fatores básicos da boa cozinha. Conhecimento este adquirido em anos de prática profissional em diferentes países e culturas, apresentado de maneira empática e bem humorada, como a própria autora. Sim, ela é minha amiga. Pelo menos foi assim que me senti ao final deste livro.
Mas, chega de mistério e vamos ao…
Prato Principal
O conhecimento científico é fascinante em si, mas aplicá-lo no dia a dia é delicioso. Entender que receptores na língua são responsivos ao sódio é fascinante, mas usar o Sal corretamente, em quantidade e tempo, em uma comida é delicioso. Entender que a textura de um alimento pode complexificar sua experiência ao comer pois está além de uma percepção gustativa, mas passa por aromas, moduladores culturais construídos e características evolutivas, é fascinante. Mas, utilizar a Gordura e o Calor para manipular essa textura é delicioso. Entender como funciona o ph das substâncias é fascinante, mas saber introduzir o elemento certo com a Acidez exata que iluminará e levantará o prato, é delicioso.
Sabendo disso, Nosrat nos diverte ao longo dessas quatrocentas e poucas páginas contando como cada um desses elementos (Sal, Gordura, Calor e Acidez) foi sendo desvendado a medida que ela era desafiada com novos caminhos: um novo restaurante, uma nova cidade, um novo relacionamento. Nesse caminho vamos aprendendo. E, aqui, devo dizer que, seja qual for o seu nível de Remy, há aprendizado. Como já dito, ela vai fundo em explicações e contextualizações no uso dos 4 elementos sagrados.
Particularmente, adoro suas metáforas ao se referir a processos e quantidades, pois da subjetividade aparente vem o humor, porém o contexto bem elucidado nos dá o que precisamos para entender objetivamente. Por exemplo: no capítulo da Gordura há um subtópico intitulado “Desandando e consertando emulsões”. Neste, ela nos explica passo a passo o motivo de algumas emulsões darem errado (já tendo nos esclarecido o que é uma emulsão) e nos dá uma proposta de intervenção: acrescentar 1/2 colher de água quente e bater “loucamente” até começar a espumar. Em seguida ela acrescenta: “Tratando a maionese desandada como se fosse óleo, acrescente-a gota a gota, continuando a bater, com a urgência de um banhista fugindo de um tubarão”.
Antes que eu conte o livro inteiro, vamos a…
Sobremesa
Ao longo desta resenha mencionei algumas vezes o quão detalhadas, bem humoradas e didáticas são as explicações de Samin Nosrat sobre o cientificamente mágico mundo da gastronomia. Isto só foi possível, em grande parte, devido aos desenhos da ilustradora Wendy MacNaughton. Começando pela capa, Wendy conferiu a este livro uma identidade visual linda e divertidíssima. Por quase todas as páginas vemos desenhos que ilustram trechos ou pensamentos da autora, além dos grandes e pormenorizados infográficos (alguns com páginas dobráveis que se abrem aumentando de tamanho e complexidade). A escolha por desenhos, segundo a própria autora, foi propositalmente direcionada para que o leitor se aproxime do prato e entenda que não há somente uma versão visual daquilo.
“A ideia é encorajar a improvisação e o julgamento do que é comida bonita com os próprios olhos.”
Sendo assim, o conteúdo é de óbvia relevância, mas a forma se fez fundamental para compor o todo deste livro.
Por falar em todo, Sal, Gordura, Ácido e Calor são alguns dos capítulos deste livro, mas não tudo. Depois de estabelecidos os pontos cardeais, Samin veste a dólmã e começa a nos ensinar processos básicos que serão fundamentais para quando o leitor decidir se aventurar na cozinha. E então entramos numa grande e detalhada parte onde, guiados pelos elementos básicos, aplicamos, por meio de várias receitas, o que aprendemos na primeira parte do volume. Ou seja, ela nos apresenta e explica os quatro elementos, depois ainda temos metade do livro para que vejamos o quão longe podemos ir partindo da compreensão básica do Sal, da Gordura, do Ácido e do Calor.
Chá
Sal, Gordura, Ácido, Calor: os elementos da boa cozinha é de autoria da Chef e jornalista norte-americana de origem iraniana, Samin Nosrat. Ela trabalhou em vários restaurantes, mas o primeiro deles foi o californiano Chez Panisse. Ilustrações de Wendy MacNaughton, tradução de Nina Horta e prefácio de Michael Pollan. O livro foi ganhador do prêmio James Beard 2018 como melhor livro de culinária. Publicado pela Companhia das Letras.
O fruto de 15 anos de cozinha mais 6 anos de escrita com certeza merece um lugar na sua cozinha. Sim, deixe na cozinha. Pode ser que pingue um molho de tomate aqui e ali, uma manchinha vermelha de beterraba ou mesmo umas gotinhas de azeite. Talvez tenha que limpar a farinha de uma página para continuar lendo, mas livros como esse precisam ser experienciados no seu habitat natural, a cozinha!
Cozinhar, na essência, é sobre independência e sobrevivência. Mas, com toda certeza é um ato de amor. Cozinhe com quem você ama. E sempre que puder divida com quem precisa.