Devo confessar que eu me segurei por muito tempo para falar sobre a CPI da pandemia aqui no Portal Deviante, não sabia direito como abordá-la. Todos os dias eram muitas informações e alguns depoimentos eram filmes de terror para quem os acompanhava. Confesso também que, no decorrer de todos os textos que escrevi neste ano, tentei fugir ao máximo do tema das atualidades sobre o SUS, apesar de falar praticamente de pandemia e de saúde pública em todos eles.
Já tem umas semanas que a CPI teve um fim. Finalmente algumas das pessoas responsáveis por o Brasil adotar o negacionismo como política pública foram questionadas e espero que muita coisa se desdobre a partir disso. No texto de hoje parto de 3 momentos marcantes da CPI, refletindo sobre a organização do SUS, o papel dos profissionais de Saúde e os tempos sombrios que vivemos.
Descentralização e o modelo Tripartite
“Aprendi que o SUS é tripartite”
Essa frase foi dita no primeiro depoimento de Eduardo Pazuello (dia 20 de Maio de 2021), ministro da saúde durante a maior parte de 2020, quando perguntado “o que o senhor aprendeu na pandemia?” Tudo bem, se você não é da área da saúde pública, não saber desse fato e até mesmo não saber o que é a palavra tripartite. Mas quando quem fala isso é uma pessoa que ocupa o cargo de maior importância do país em saúde pública, que é o ministro, essa frase vem como uma forma de justificativa para negar suas responsabilidades.
Um dos princípios basilares do SUS é a Descentralização. Estabelecida na lei nº 8080/90, ela garante que as ações de saúde devem ser feitas de forma coordenada entre a Federação, Estados e municípios. Sendo este último, por estar mais próximo da população, o responsável final, e que, para isso ocorra, é necessário que a Federação e Estados deem todas as condições técnicas, administrativas e financeiras, baseando-se principalmente nas análises de dados epidemiológicos e de metodologias científicas.
A descentralização é o que permite o SUS ser tripartite. Isso significa que a saúde pública no Brasil é responsabilidade das três esferas de governo, as quais decidem, de forma sincronizada, as ações de prevenção, proteção e recuperação em saúde. O modelo tripartite é super importante pois o Brasil é um país de proporções continentais. É perfeitamente normal, por exemplo, o Estado do Amapá ter uma necessidade em saúde e o Estado do Espírito Santo ter outra.
- Ministério da Saúde: É o gestor principal do SUS, que formula, organiza, fiscaliza as ações de saúde em todo território nacional. O ministério tem a responsabilidade de orientar os Estados se baseando principalmente em dados científicos e técnicos. As necessidades de cada Estado são diferentes e é papal do ministério da saúde saber disso.
- Secretaria Estadual de Saúde: Formular políticas de atenção à saúde direcionada aos municípios, além de prestar apoio a eles. Trazendo o exemplo do Ceará no estouro de casos de Chikungunya e Zika que tivemos no ano de 2016, alguns municípios tiveram muitos casos e foi papel do estado dar o apoio necessário para evitar novos casos e cuidar da população já atingida.
- Secretária Municipal de Saúde: planeja, organiza, controla, avalia e executa as ações e serviços de saúde em articulação com o conselho municipal e a esfera estadual para aprovar e implantar o plano municipal de saúde.
Em resumo – o município compreende melhor as necessidades de saúde daquela região, enquanto o Estado tem o papel de estar ciente da necessidade de dar apoio se necessário, e a Federação deve ser o principal coordenador dessas ações.
Isso é o que está previsto na Constituição desde a redemocratização do Brasil, a organização do SUS serve até hoje de exemplo para o mundo de sistemas públicos de saúde. Esses princípios são aprendidos literalmente ali nas primeiras aulas de saúde pública e é de fundamental importância qualquer profissional que atue na área ter conhecimento prévio deles. Quando Pazuello fala que aprendeu isso ao estar à frente do Ministério em plena pandemia, é algo que mostra como chegamos a marca de mais de 600 mil pessoas mortas pela COVID-19.
As estratégias do Governo Federal adotadas foram: imunidade de rebanho por meio da distribuição de Cloroquina e outros medicamentos que comprovadamente não funcionam para a COVID. Enquanto isso, alguns Estados tentavam fazer as barreiras sanitárias com lockdown e obrigatoriedade do uso de máscaras. Dessa maneira houve uma descoordenação nas ações de saúde. De um lado condutas irresponsáveis que colocam em risco a vida da população e, principalmente, sem nenhuma base científica por trás das decisões. Do outro, os Estados tendo que lidar da melhor forma sem nenhum apoio por parte do ministério.
Sobre a estratégia criminosa de imunidade de rebanho trago as palavras do médico sanitarista Cláudio Maierovitch durante a CPI da pandemia, que presidiu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2003 a 2008:
“Não gosto do termo ‘imunidade de rebanho’. Não somos rebanho, e não há nenhum coletivo da palavra “gente” ou “pessoa” que seja traduzido como rebanho. Temos uma multidão, povo, muitos coletivos nos dicionários, e o rebanho não é um deles. Rebanho se aplica a animais, e somos tratados dessa forma. Acredito que a população tem sido tratada dessa forma ao se tentar produzir imunidade de rebanho à custa de vidas humanas. O governo se manteve na posição de produzir imunidade de rebanho, com essa conotação toda, para a população, em vez de adotar medidas reconhecidas pela ciência para enfrentar a crise.”
Temos o maior sistema de saúde pública do mundo e os melhores epidemiologistas. Já fomos exemplo, há não tanto tempo, de como se combate uma pandemia, seja no combate ao HIV/AIDS (que até hoje é modelo mundial e é oferecido gratuitamente pelo SUS desde o diagnóstico até o tratamento) ou ao H1N1 em 2009, quando conseguimos vacinar 88 milhões de pessoas em 3 meses. Nenhum país conseguiu vacinar tanta gente e tão rápido quanto no Brasil.
Voltando às palavras de Maierovitch:
“O que poderíamos ter tido desde o início? A presença do Estado, por exemplo, com um plano de contenção, antes de a pandemia entrar no Brasil, para detecção rápida, testagem, isolamento e rastreamento de contatos. Tínhamos experiência pra fazer isso no SUS. O plano deveria prever uma organização, com planejamento de insumos como oxigênio, kit de intubação, profissionais, etc. E com monitoramento, como estávamos acostumados a trabalhar com isso em diversas crises, com a construção de um Comitê de Operações de Emergência em Saúde acompanhando as respostas e as necessidades de cada estado.”
A descentralização junto ao modelo tripartite permite que os Estados e municípios tenham um pouco de autonomia nas suas decisões, porém isso não exime o Governo Federal de suas responsabilidades. Até o momento que escrevo esse texto, Novembro de 2021, não temos um plano de combate a COVID-19 com: testagens em massa, distribuição de máscaras e tratamento das sequelas deixadas pela doença. Isso deveria ser sim função do Ministério da Saúde.
O papel do profissional de saúde
“O quê que eu levo pra provar que existe, sim, evidência?”
Essa frase foi dita pela médica Mayra Pinheiro, vulgo Capitã Cloroquina, na preparação de seu depoimento na CPI (dia 26 de Maio 2021). Ela ocupa até hoje o cargo de secretária no Ministério da Saúde. No caso da frase acima ela quer saber de um artigo científico que mostre que a cloroquina funciona.
A distribuição de remédios que não funcionam foi uma das estratégias do Governo Federal no combate à pandemia. Nessa segunda parte do texto não quero me aprofundar nas evidências de que a Cloroquina não funciona, já existem inúmeros artigos falando sobre isso. O que quero abordar aqui é a responsabilidade dos profissionais de saúde. É duro pensar nisso, mas, se esse medicamento foi distribuído, é porque muitos profissionais aceitaram receita-lo.
Qual o papel de um profissional de saúde, seja Médico, Enfermeiro, Fisioterapeuta, Psicólogo, Educador Físico e tantos outros que englobam essa área perante a sociedade? Vou tentar responder essa pergunta com um filme de ficção científica, lançado em 2021, que passou um pouco despercebido chamado Passageiro Acidental (título original: Stowaway, Netflix).
A trama do filme é a seguinte – a tripulação passou a vida inteira se preparando para um missão de dois anos em Marte. A equipe é composta por 3 pessoas, uma mecânica e capitã, um botânico espacial e uma médica. Logo nos primeiros dias que a nave partiu, eles descobrem que por acidente um funcionário também está a bordo da nave, o que coloca toda a tripulação em risco por não ter oxigênio o suficiente para quatro pessoas.
No desenrolar do filme, eles tentam de todas as maneiras uma forma na qual quatros pessoas consigam sobreviver com um suporte de vida planejado para três. Ao ver que não existe nenhuma solução, os tripulantes originais da nave fazem uma votação para que o passageiro acidental se retire, o que obviamente causaria a sua morte. Aqui entra o papel do profissional de Saúde: preservar a vida acima de tudo.
Não vou dar mais spoiler do filme, a reflexão que quero trazer a partir dele é a de que os profissionais de saúde, mais do que todos os outros, devem ter uma visão de que a vida deve ser preservada, mesmo que essa coloque a sua própria em risco. E quero que fique claro: discordo totalmente com a afirmação de “os profissionais da saúde são heróis“. Somos trabalhadores que devemos ter direitos e salários justos.
O papel do profissional de saúde perante a sociedade, e principalmente potencializado a sua importância na pandemia, é o de preservar a vida, o de ser exemplo, uma fonte segura para aqueles que estão à sua volta. Esses profissionais devem sempre usar os seus conhecimentos baseados principalmente na ciência. Não que todo profissional tenha que ser cientista ou saber tudo, mas tem que, sim, estar sempre atualizado na sua área.
Entre os vários motivos de a cloroquina e todos os outros remédios que não funcionam serem adotados como política pública foi por ter total apoio de profissionais como Mayra Pinheiro, Nise Yamaguchi, o CFM (Conselho Federal de Medicina) e tantos outros que se calaram perante aos absurdos do governo de Jair Bolsonaro.
Tive inúmeros colegas da saúde que entraram na narrativa da Cloroquina, de minimizar a pandemia (não usando máscaras, viajando e estando em aglomerações em pleno auge da COVID-19 no Brasil) e de ser antivacina… me faz pensar. Na saúde talvez seja a área que mais temos contato com as pessoas, principalmente em momentos de possível fragilidade. Nossa formação deveria ser a mais humanizada e com uma consciência política de coletividade bem maior.
Julgamento dos Médicos em Nuremberg
“Óbito também é alta”
No dia 28 de Setembro, a CPI recebeu a advogada Bruna Morata, representando um grupo de médicos que elaboraram um dossiê contra a empresa de saúde privada Prevent Senior. Segundo a advogada, a orientação da empresa era
“pacientes internados em determinadas unidades de terapia intensiva, cuja internação tivesse mais de 10 ou 14 dias, a esses o procedimento indicado era a redução da oxigenação. O nível dos respiradores era reduzido e, esses pacientes, segundo informações dos médicos, morriam na própria UTI. “Então, havia uma liberação de leitos. A expressão que ouvi ser muitas vezes utilizada é: ‘Óbito também é alta”’.
Ainda de acordo com ela o procedimento era visto como algo positivo, pois assim haveria a liberação de mais leitos.
A Prevent Senior também está envolvida no estudo mentiroso de que o uso da cloroquina seria eficaz contra covid, em que houve a ocultação de mortes com o objetivo de preservar a narrativa de que tal medicamento funcionava. Vamos parar um pouco e pensar quanto tempo vai levar para entendermos o quão absurdo são as notícias acima? Algo assim jamais deveria passar despercebido, e principalmente, esquecido. São casos gravíssimos que representam os tempos sombrios que vivemos nesse ano.
Na história da humanidade já tivemos casos parecidos nos quais usaram seres humanos, sem o consentimento, em experimentos que colocavam suas vidas em risco. Um dos mais conhecidos é o chamado “Julgamento dos Médicos em Nuremberg”, que completou 76 anos em 2021.
Logo após o final da segunda guerra mundial, um tribunal se formou na cidade de Nuremberg, local simbólico pois havia sido palco de grandes discursos nazistas um pouco antes do início da guerra. Este tribunal julgou os crimes cometidos por médicos em experimentos durante o período. Hoje estima-se que em torno de 250 mil mortes ocorreram decorrentes de tais experimentos, o chamado Projeto T4.
“Liderado pelo médico Karl Brandt, o programa incentiva por meio de por autoridades públicas para que pais de crianças com deficiências as internassem com a finalidade de um tratamento em clínicas indicadas pelo Estado na Alemanha e na Áustria. Em tais locais, as pequenas vítimas eram assassinadas por injeções letais ou por inanição. O programa, então, passou a matar jovens de até 17 anos e logo foi estendido aos adultos (…) as vítimas eram levadas e assassinadas, sem consciência do destino que lhe aguardava, também ignorado por suas famílias que acreditavam que seus entes queridos estavam sendo bem cuidados. Somente passavam a saber da morte quando recebiam as cinzas em urnas e cartas de condolências com falsos diagnósticos e causas da morte.”
Como resultado do julgamento, todos os 22 profissionais envolvidos, entre médicos e generais do exército, foram condenados. 12 deles à pena de morte. Ainda se produziu um documento, reconhecido mundialmente, chamado o Código de Nuremberg, de 1947, o qual garante que “nunca mais seres humanos sejam usados em experimentos científicos que coloque sua vida em risco sem o seu consentimento livre e esclarecido, além do direito desta se retirar no momento que desejar.”
E aqui volto para a frase “óbito também é alta”. Quanto peso isso carrega? a representação de tempos no qual o ódio é entendido como solução, de um governo que nos trata como nada. A frase clichê mais sempre verdadeira “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo” se faz presente aqui, em meio aos momentos mais sombrios da história da nossa sociedade.
…
No decorrer deste ano pensei muito em como no futuro a minha geração vai explicar o que aconteceu nesses últimos anos desde a eleição de Bolsonaro, o início da pandemia e agora o ano de 2021. Tudo é muito confuso e acho que em meio a isso não tivemos tempo de refletir. A COVID-19 chegou e colocou tudo a vista, todos os problemas que já tínhamos desde antes até desafios futuros que temos que enfrentar. Mas, para que isso ocorra, é preciso compreendê-los.
Já falei neste texto e em tantos outros que o SUS é o maior sistema de saúde pública do mundo e ele foi um dos poucos pilares que sustenta esse país na pandemia. Olha o que a gente vem conseguindo fazer com a vacinação, apesar de toda a corrupção disfarçada de negacionismo como a CPI mostrou! Hoje somos um dos países que mais consegue entregar vacina no braço da população. Agora imagina o que conseguiríamos fazer se a saúde pública fosse valorizada por aqui.
Quando a pandemia deu início no Brasil, eu, como profissional de saúde, sabia o tanto de dificuldades que enfrentaria e confesso que alguns dias preferia ser advogado, engenheiro, uma pessoa de TI. É inaceitável, nesse momento que o mundo vive, termos pessoas da saúde negacionistas. Já passou da hora de nos organizarmos politicamente e ter um forte debate sobre a humanização desde a nossa formação até atuação na área.
A frase “óbito também é alta” ecoa na minha cabeça desde o dia que ela foi dita na CPI. E me dói muito ver como isso simplesmente passou, vieram outras notícias, outros absurdos advindo do governo e tudo segue. Não sei responder quanto tempo vai demorar para que as pessoas responsáveis sejam punidas, ou até mesmo reconhecer que casos assim não podem jamais se repetir.
Seja como for, a pandemia vai passar, teremos o momento certo de punir os principais culpados e vamos ter que lidar da melhor forma possível com o rastro que a COVID-19 vem deixando no Brasil. E, principalmente, é preciso estar atento para que o que vem acontecendo por aqui jamais se repita nos próximos desafios de crises já anunciadas como o da questão climática.
REFERÊNCIAS
Fonte de imagem da capa foto: Roque de Sá/Agência Senado.
-Na parte de descentralização do SUS recomendo a leitura da lei 8080 (link) onde explica como a nossa saúde pública se organiza, o artigo do site PenseSUS (link) e o artigo no site do Ministério da Saúde sobre o papel de cada ente federativo (link), as frases do médico sanitarista Cláudio Maierovitch estão disponíveis pela Agência Senado (link)
-Sobre o papel dos profissionais de Saúde o filme “Passageiro Acidental” disponível na Netflix (trailer) o artigo “A humanização do cuidado na formação dos profissionais de saúde nos cursos de graduação.” (link)
-Sobre o julgamento de Nuremberg o artigo da BBC “75 anos dos julgamentos de Nuremberg: o que exames psicológicos revelaram sobre nazistas?” (link), o artigo da Le monde “Óbito também é alta: o novo mantra do terror.” (link), o episódio do podcast Medo e Delírio em Brasília – Dia 1001 a 1003 (link), artigo da Superinteressante (link).