Hey Judes, como estão?
Ainda não entramos em dezembro, não é natal naquela loja de roupas que não muda o jingle há uns 10 anos ou mais, muito menos é chegado a retrospectiva 2019 naquela emissora do mundo aquático, mas… para esse texto vamos fazer uma brevíssima volta ao início do ano quando faleceu o cantor, musicista, compositor e ativista social Marcelo Yuka – também fundador d’O Rappa e F.U.R.T.O.
No dia 18 de janeiro Marcelo Yuka faleceu no Rio de Janeiro e sua representatividade musical e ativista falou por si. Na verdade, apreciar as composições de Yuka torna impossível dissociar essas duas esferas, além disso, dar eco à sua voz é sempre pertinente. Com uma certa dose de especificidade ao quadro carioca, escolhi a música Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro. Mas, Felipe, este texto será apenas ativista sócio-político? Não, meus caros Judes.
Antes de tudo, que fique claro que esse texto não tem qualquer direcionamento específico à força policial seja no aspecto regional, seja nacional. Trata-se de uma correlação entre canções, seus simbolismos e significados e de que maneira isso se conecta à história social brasileira. No entanto, qualquer semelhança com a realidade atualizada não é mera coincidência.
Escolhi essa música porque estabelece um diálogo historiográfico que vai além do óbvio retratado na letra e permite alcançar um dos elementos presentes na vida pública do compositor que diz respeito às raízes. Raízes de África, de Brasil, históricas, sociais, negras e brancas… raízes que sustentam quem somos e como somos ainda hoje. Se não conhece a música, segue aí o link para letra.
O título sintetiza a mensagem e é basicamente explicativo em si. A letra não é longa muito menos difícil de compreender. E chamam a atenção três aspectos: as duas comparações entre elementos da lei e dominadores/repressores de escravos e a musicalidade que tende a lembrar o Manguetown de Chico Science e Nação Zumbi (será que a escolha dos apelidos foi proposital? Fica a dúvida). Não conhece essa também? Toma aí mais um link. A partir dela podemos estabelecer outro diálogo com Dona Onete e seu No Meio do Pitiú – mais um link. Dessa forma, se fosse para escolher uma expressão para resumir este texto seria preservação de raízes. Cansou de música como referência? Vai mais uma aí: Jorge Aragão, Identidade. Isso porque em cada uma, à sua maneira, expõe suas raízes contemplando a marginalização do que não compunha nem compõe o devaneio branqueador ainda presente na nossa sociedade. Assim, reconhecem-se em meio ao que lhes constitui, inclusive na exclusão, no abandono, na exploração, no preconceito e no esquecimento.
A comparação do policial com o capitão do mato diz sobre o período escravocrata tanto no jugo sobre o negro quanto da origem institucional da força policial no país. São aspectos complementares, tendo em vista possuírem como centro comum a relação de dominação e exploração do negro aliada à desvalorização de tudo que lhe diga respeito e marcando sua inferioridade humana, social e cultural. E mais que isso! A função de capitão do mato era ocupada, normalmente, por ex-escravos que eram contratados, armados – com armamento, equipe auxiliar e cães treinados – e pagos para capturar outros negros, ainda escravizados. Além disso, gozavam de uma falsa ascensão social, visto que ocupavam um lugar intermediário entre os cativos e os senhores – em outras palavras, eram as mãos que se sujavam no trabalho sujo dos escravocratas.
Nesse sentido, o capitão do mato figurava como uma ferramenta de manutenção da ordem e do controle social por meio de violência e métodos coercitivos incorporando os mesmos valores que compõem a gênese da institucionalização das forças militares e paramilitares presentes no município da Corte e em todo o país. Isso porque essas forças apresentam relação direta com as transformações sociais, políticas e econômicas correntes no Rio de Janeiro na ascensão de uma cidade colonial para Corte Imperial. No século XVII haviam os Quadrilheiros – uma espécie de polícia civil ligadoa à Câmara e ao Ouvidor –, os Capitães do Mato e os Alcaides – ligados à Câmara também e nomeados por Carta régia – e outros grupos militares e paramilitares. Em meados do século XVIII, na cidade, coexistiam diversas instituições cujo trabalho era de repressão a escravos e a livres pobres protegendo, assim, a vida e a propriedade da elite. Essa função limitante e coercitiva não deixará de se fazer presente no percurso histórico brasileiro desde a fase colonial até a republicana democrática. Dezoito anos antes da “liberdade”, a força policial já se apresentava mais desenvolvida e contava com recursos teóricos e tecnológicos avançados voltando boa parte de suas atenções aos capoeiristas.
Essa relação já deflagra a deficiência de integração do negro na sociedade, que foi exponenciada quando da abolição com a marginalização como destino em todos os aspectos. Com o desenvolvimento da ideia de branqueamento do país alastrada pelos elementos culturais, além da tonalidade da pele e do campo político-econômico, vemos o esforço marginalizante e excludente de tudo que atrelaria ao negro assim como pobres, nordestinos, nortistas e qualquer outra classe ou grupo que não constitua uma elite agrária, microempresária e centro-sulista.
É nesse cenário que se inserem as demais canções. A de Jorge Aragão aborda a perversa herança daquele tempo dialogando intimamente com o projeto de branqueamento social e a respectiva desvalorização da ancestralidade de África e afro-brasileira. A composição de Chico Science apresenta o crescimento desordenado da cidade de Recife que se estendeu por sobre os manguezais locais, mas que esse crescimento não se refletiu sobre a qualidade de vida daquele povo que ainda dividia espaço com os urubus na vida de coleta de caranguejos. Chama também a atenção que a condição de vida desses recifenses os põe à margem da sociedade. A dose eufêmica fica por conta da relação que ele espera construir com uma mulher com a liberdade que as asas cedidas pelos urubus lhe permitem a pequenos momentos de prazer e lazer. No entanto, essa mulher que ele venha a encontrar viverá na mesma realidade que ele, reforçando o abismo social já existente e a manutenção da ordem estabelecida.
O mesmo urubu que oferta suas asas à liberdade contingenciada do recifense é o que estrela a canção de Dona Onete ao refletir a costumeira vivência em uma das partes do mercado belenense do Ver o Peso quando, principalmente, da chegada dos peixes por volta do amanhecer. O carimbó de Dona Onete reflete uma valorização da cultura popular paraense representada pelo Ver o Peso, pelo conhecimento da natureza observando o comportamento do urubu, a ocorrência das chuvas “com hora marcada”, típicas da cidade, e também pelo próprio estilo musical da artista, um traço regional. O Ver o Peso se destaca pela importância que ganhou durante a Belle Époque quando figurava como o maior entreposto comercial do norte brasileiro.
Essas são algumas das raízes brasileiras expostas em quatro canções. Busquei cumprir o conceito de “nacional” trazendo elementos que fugissem à violência desvelada das metrópoles do centro-sul para reconhecermos uma violência mais disfarçada que é a da exclusão, de relegar ao esquecimento, e até mesmo da retomada do olhar exploratório que se tem observado direcionado às regiões norte e nordeste. Infelizmente, essa é uma outra raiz brasileira.
REFERÊNCIAS:
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro;
http://www.unirio.br/cch/escoladehistoria/pos-graduacao/ppgh/dissertacao_joice-soares
http://www.historia.uff.br/stricto/td/2126.pdf
http://nc-moodle.fgv.br/cursos/centro_rec/docs/a_policia_carioca_imperio.pdf
http://mapa.an.gov.br/index.php/component/content/article?id=642
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/828
Neder, G., Naro, N. P., Silva, J. L. F. W., & Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. (1981). A polícia na Corte e no Distrito Federal, 1831-1930. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Divisão de Intercâmbio e Edições.
Felipe Figueiredo. Pesquisador independente interessado em diálogos improváveis e viciado em associações livres. Amante de música, culturas em geral, livros e conhecimento científico. Pensante fora da caixinha, caminhante fora da casinha.