Conheço pessoas que não acreditam em dinossauros. Minha primeira tentativa de trazer essas pessoas para a realidade é perguntar sobre fósseis. O que teria produzido esses moldes petrificados de esqueletos? Negar a relação entre dinossauros e fósseis soa como desenterrar um esqueleto humano no quintal de casa e negar que são os restos mortais de um humano. “Não, é tudo um plano secreto para donos de necrotério enriquecerem”. “Não, é tudo um plano secreto do Estado para justificar os impostos que sustentam o IML”.
Sustentar esse ceticismo exige um malabarismo e tanto. Teorias conspiratórias entram aí. Perdi as contas de quantas vezes já ouvi que fósseis são “colocados lá”. São criados por cientistas e enterrados em algum lugar para enganar a população. Por que alguém se daria ao trabalho? O que ganharia? As respostas são inconsistentes e variam, mas geralmente têm a ver com eclipsar a autoridade da religião, da Bíblia e etc.
Com as vacinas ocorre algo parecido. Céticos se recusam a acreditar que vacinas previnem doenças. Essa negação geralmente é justificada por teorias conspiratórias envolvendo grandes corporações farmacêuticas ou o Estado.
De onde vem esse ceticismo em relação às vacinas? Você deve estar se coçando para responder que tudo não passa de analfabetismo científico. Mas não é exatamente isso.
Mais conhecimento, mais negacionismo
É natural supor que pessoas inteligentes e informadas baseiam suas crenças em lógica, coerência e evidências. Isso não está totalmente errado. Por exemplo, pessoas mais racionais compartilham mais informações de fontes confiáveis, e também seguem pessoas com o mesmo perfil de compartilhamento.
O problema é que isso parece valer menos para assuntos muito polarizados, que esquentam os ânimos. Uma metanálise recente mostrou que pessoas mais escolarizadas não necessariamente tiveram atitudes mais pró-vacina. Tudo bem, pessoas mais escolarizadas não necessariamente sabem explicar detalhadamente como as vacinas funcionam e para que servem. Ainda assim, saber como as vacinas funcionam não parece ajudar muito. As pessoas não apenas podem não mudar de opinião, como também podem desconfiar ainda mais da imunização depois do treinamento. Por outro lado, assistir de 5 a 10 minutos de propaganda antivacina já diminui a intenção de se vacinar. Ou seja, a vida não é justa.
Estar do lado certo pode ser pura coincidência
Parte da explicação para esse cenário desolador é que as pessoas não são tão racionais quanto elas acham que são. Isso vale inclusive para você, que é limpinho, tomou todas as vacinas e comprovou com uma foto no Instagram.
Na realidade, na maior parte do tempo, nossas decisões se baseiam em intuições. A racionalidade é usada depois para justificar uma decisão que já seria tomada de qualquer forma. É por isso que o marketing funciona tão bem para fazer você comprar algo que você nem sabia que queria. É por isso que você não precisa nem ler o programa de governo do seu candidato preferido à presidência. Você já sente o que deve ser feito. Envolver essa decisão intuitiva com vários airbags racionais é uma escolha sua, e quanto mais escolarizado e inteligente for, mais hábil em fazer isso.
Um dos fatores não racionais que pode influenciar negativamente a disposição de alguém se vacinar é a aversão. Algumas pessoas simplesmente vêm de fábrica mais “nojentinhas” do que outras. Elas reagirão mais aversivamente a cheiros ruins, por exemplo. São aquelas pessoas que pensam duas vezes antes de dar uma provada na coxinha mordida do amigo.
Não estou afirmando que não provar o salgado mordido prediz as atitudes diante da vacinação, mas o mecanismo por trás das duas coisas parece ser o mesmo: a facilidade com que a aversão é ativada. Muitas pessoas não se vacinam porque possuem uma forte intuição de que é errado injetar organismos estranhos no próprio corpo. Confrontadas por esse gut feeling elas encontrarão qualquer argumento racional que possa ser exposto publicamente — e que possa convencer a si mesmas de que possuem bons motivos.
É basicamente isso que acontece entre aqueles que desconfiam de alimentos geneticamente modificados. Diante dessa sensação de repugnância, começamos a coletas no ambiente tudo que confirma tal sensação. Por isso é tão comum ouvir alguém dizer que percebeu que o filho se tornou autista depois da vacina. Sensações primitivas se transformarão em teorias conspiratórias, em interesses sombrios da Big Pharma ou do Estado.
Gut feelings como trampolins para diferenças ideológicas
Eu sempre digo que negacionismo científico não é coisa da direita ou da esquerda, mas é uma coisa humana. Pessoas diferentes defenderão ideologias diferentes, que racionalizarão cada uma a seu modo a desconfiança em relação às vacinas.
O movimento antivax nos Estados Unidos começou basicamente com a esquerda natureba da geração beatnik. Sim, o mesmo pessoal que se opôs a celulares e microondas por causa de suas supostas ondas cancerígenas, que protegiam os filhos da alergia à eletricidade. Eles eram frugívoros e meio hippies como Steve Jobs, sendo comum a desconfiança por tudo que fosse industrializado, que viesse de grandes corporações — mais ou menos como é hoje com os adeptos da pedagogia Waldorf.
Muitos antivacina surgiram nesse nicho. Apesar da direita estar protagonizando todo tipo de negacionismo sobre a covid-19, inclusive a preferência por hidroxicloroquina em detrimento das vacinas, nos EUA, os democratas têm vozes potentes contra a imunização. Robert F. Kennedy, sobrinho de JFK, democrata, é um militante antivax que também luta contra o uso de alimentos geneticamente modificados. Ao seu lado estão grandes astros, como Jessica Biel, Jim Carrey, Rob Schneider, Charlie Sheen, Mayim Bialik (Amy, de The Big Bang Theory), Robert DeNiro e outros (não necessariamente todos democratas).
Os motivos que levam a direita e a esquerda a negarem algum aspecto associado às vacinas geralmente são diferentes. Enquanto a direita tem problemas com o Estado tornando a vacinação compulsória, a esquerda tem problemas com a Big Pharma. Alguém como Trump vai dizer que o Estado está à beira da tirania, violando o direito de ir e vir. Alguém como Kennedy Jr vai desconfiar que grandes corporações farmacêuticas estão criando doenças para vender soluções fabricadas por elas mesmas, ou que as vacinas são a fonte dessas doenças fabricadas.
O alerta
Esse texto não é uma defesa da irracionalidade, mas sim um alerta. É difícil ser racional. Reservamos a maior parte de nossa energia cognitiva para sermos analíticos ao dar troco no trabalho, ao negociar com um cliente, ao revisar as contas de casa. Durante todo o resto do tempo, nos demais assuntos, simplesmente pode não compensar ser racional.
Por exemplo, compensa perder 12 horas do seu dia comparando programas de governo para decidir em quem votar? Avaliando de forma puramente racional, pode ser um desperdício de tempo. Seu voto sofisticado e informado vai se diluir no meio de uma turba que provavelmente votará com base em intuição.
A mesma coisa pode servir para dinossauros ou vacinas. No final das contas, o incentivo para repensar suas crenças em dinossauros é baixo. Compensa mais evitar a fadiga, e mais ainda, é mais recompensador simplesmente se conformar às opiniões do seu grupo. Com relação à vacina o raciocínio é parecido. É quase sempre menos trabalhoso fazer o que seu grupo de referência está fazendo. Claro, você vai arranjar um bom motivo para justificar isso. E o perigo mora aí. Estejamos sempre vigilantes.