No Brasil, todo ano terminado em número par tem a capacidade de mexer com as emoções de milhões de pessoas, seja pelos eventos esportivos que ocorrem na metade do ano, seja pelas disputas eleitorais que ocorrem mais para o final. Neste ano da graça de 2018, tenho certeza que o segundo grande evento tem um potencial emocional muito maior do que o embate esportivo: em outubro, teremos eleições gerais, sendo a eleição presidencial a mais visada e discutida. Se em 2014 a disputa pelo cargo de mandatário máximo de nossa gloriosa nação já foi quente no mundo internético, agora a tendência é termos temperaturas de Super Nova à medida que o candidato X ou Y disparar/encolher nas intenções de voto. Por isso, a poucos dias das eleições, resolvi escrever este pequeno ensaio, não sobre política em si, mas sobre o radicalismo de ideias que vem tomado corpo na sociedade, não só no Brasil, mas também no mundo todo. Este talvez seja o meu texto mais filosófico e viajandão até agora, portanto leia por sua conta e risco!
Minha intenção não é tomar partido de nenhum dos lados, bem pelo contrário, é mostrar por que ideologias radicais demais são erradas por definição. Pretendo explicar o que fomenta este radicalismo, por que de tempos em tempos existem diástoles e sístoles na sociedade e qual é o antídoto para não cairmos nas armadilhas do pensamento radicalizado. Mas, antes, deixa o tio contar duas histórias.
A primeira diz respeito a um animal já extinto, o alce-gigante ou, na sua forma latinizada, Megaloceros. Para fins exclusivamente didáticos, foi chamá-lo a partir de agora de Meguinha. Então, Meguinha não era um alce, era na verdade, um cervo, cuja principal característica distintiva era a presença de chifres enormes, algo que seu próprio nome já indica. Os bandos de Meguinhas habitaram a Eurásia, desde as ilhas britânicas até a Sibéria, sendo que seu último fóssil conhecido foi datado como tendo vivido há 7,7 mil anos. Sua altura média chegava a 2 m, seu peso em torno de 600 kg e seus chifres poderiam medir mais de 3 m de diâmetro e chegar a 40 kg. Dentre as muitas hipóteses em disputa sobre este animais, uma bastante plausível, ainda que não totalmente a única correta, é que os chifres enormes dos Meguinhas machos foram produto de seleção sexual, isto é, as fêmeas sempre tendiam a cruzar com machos com os maiores chifres, o que fazia com que os filhotes com os maiores chifres fossem escolhidos novamente, aumentando cada vez mais o tamanho dos chifres geração após geração. Durante muitos e muitos milhares de anos, esta estratégia reprodutiva andou bem, até que as coisas ficaram diferentes, o clima mudou, os alimentos idem e os predadores também. Meguinha ficou como estava, apostando na sua estratégia evolutiva de chifres gigantes. Isto era uma grande vantagem adaptativa, estava dando certo até ali, por que mudar? Porque aquele momento exigia uma maior flexibilidade de estratégias e a quantia de energia despedida para manter aqueles chifres enormes se tornou um desperdício, um verdadeiro luxo supérfluo. Assim, de uma hora para outra, sem aviso prévio nem nada, o tamanho exagerado dos chifres deixou de ser uma vantagem e se tornou um empecilho aos seus portadores, levando a espécie à extinção.
A segunda história já é um pouco mais moderna, da mitologia grega, e diz respeito a uma pessoa tão ruim que não irei dar apelidinhos carinhosos. Vou chamar a besta pelo nome que tem. Estou falando de Procusto. Esta fábula nos conta que certa feita este personagem cruel possuía uma cama, a qual tinha seu exato tamanho. Quando alguém se hospedava em sua casa, Procusto mandava o visitante deitar-se na mesma. Caso o hóspede fosse maior, as partes sobrando eram amputadas por Procusto. Caso fosse menor, o infeliz era esticado até atingir as dimensões exatas do leito. Procusto foi morto por Teseu, que, já escolado pelas artimanhas do Minotauro, sacou a malandragem e deu ao pilantra o gosto do seu próprio veneno.
Pronto, historinhas contadas, acabou o recreio, vamos voltar a nossa programação normal, que é falar de radicalismo ideológico: de onde vem, como se espalha e como evitá-lo. Começando do começo: o que é uma ideologia? Bem, entre uma miríade de definições, das mais neutras às mais críticas, escolho definir ideologia como um conjunto de ideias e conceitos padronizados que se destinam a explicar a realidade de maneira sucinta. Ideologia é, portanto, uma solução heurística de reflexão e pensamento. Em princípio, não há maiores problemas em se usar atalhos mentais para explicarmos a realidade. Todos os seres humanos fazem isso, é algo evolutivamente fixado por conta de suas vantagens práticas: o cérebro humano, em termos de gasto de energia, equivale a um Opalão 8 cilindros, daqueles que gastam quatro litros de gasolina por quilômetro rodado. É um órgão grande e gastão, portanto. Se todas as vezes em que tivéssemos de tomar uma decisão sobre o que fazer precisássemos pensar por longas horas, seria o tigre-dentes-de-sabre quem estaria dirigindo um Opalão, não os seres humanos. Como espécie, estaríamos extintos por incapacidade de rapidamente resolvermos impasses que garantissem a sobrevivência. O problema começa quando usamos heurísticas para tudo, para emitir opiniões e tomar decisões sobre qualquer problema, desde os mais simples e com impacto limitado até os mais complexos e de larga escala. Aí é que a porca torce o rabo.
Não devemos olhar a realidade através de uma teoria pré-estabelecida por outrem, em uma situação específica, que serve de solução para uma demanda restrita. Isso não dá certo, porque sem demora, iremos ter que martelar as coisas para elas se encaixarem na forminha da nossa teoria. A realidade é tão intricada que as soluções devem se adaptar a ela e não o contrário. O tipo de pensamento padronizado que uma ideologia proporciona não deve ser usado indiscriminadamente para responder a todas as pergunta, sob o risco de reduzirmos nossa complexidade de ideias a uma cama de Procusto mental. E isso é ainda mais grave em se tratando de cientistas, sejam eles por profissão ou opção. Cientistas, por definição, devem fazer exatamente o contrário: olhar a realidade em todas as suas nuances, elaborar uma teoria para tentar explicar os fatos da melhor forma possível e, na primeira contradição, reformular esta teoria até que os novos elementos se quedem encaixados.
A aquisição do conhecimento, de modo geral, é dialética, ou seja, necessita de uma argumentação, de um jogo de perguntas e respostas (dialética e diálogo têm a mesma origem etimológica, afinal). De um ponto de vista estritamente hegeliano, a aquisição de um conhecimento, seja estritamente científico ou de senso comum, obedece a um encadeamento dialético lógico no sentido que temos a hipótese (ideia inicial), confrontamos esta ideia com a realidade através de testes, dos quais surgem as contradições (antíteses) e no final o que sobra é a tese (hipóteses – antíteses = tese ou teoria). Para que este processo ocorra satisfatoriamente, devemos evitar os vieses cognitivos ao máximo. Isto é algo muito difícil, uma vez que cada um enxerga a realidade através de um filtro, o qual é influenciado por vivências muito pessoais e intransferíveis. Mas, por mais difícil que isso seja, vale a pena o exercício diário de tomar consciência para fugir destes vieses.
Um bom começo é não nos definirmos como pertencentes a algum grupo pré-determinado, para evitar condicionamentos mentais prévios. Quando nos identificamos com alguma coisa e explicitamos isso (“sou comunista, capitalista, taxista, engolidor de espada”, etc.), na verdade, o que fazemos é nos dar um rótulo. Rótulos servem para identificar e definir coisas. Definir, pela própria etimologia, significa dar um fim (do latim, de finire), isto é, impor um limite em algo: daqui para cá é isto, daqui para lá é outra coisa. A dialética, quando corretamente aplicada, parte de uma realidade concreta e tenta explicá-la. Quando a realidade muda, a hipótese deve mudar também, senão, vira crença. E, como já coloquei em textos anteriores, nada errado com as crenças, de maneira nenhuma. Todavia, quando a realidade deve se encaixar no que você acredita que ela seja e não no que ela é de fato, cuide somente para usar o termo correto para o fenômeno: fé.
O apego ferrenho a uma ideologia, sem espaço para maiores reflexões, para contrapontos de ideias, sem abertura para um debate pelo menos civilizado com alguém que pensa um pouco diferente, ou seja, o radicalismo por excelência, não raramente leva a um destino semelhante ao dos Meguinhas: uma retro-alimentação tão forte de uma característica específica que, quando o mundo muda, a pessoa ou a sociedade vivendo sob estes paradigmas é pega com as calças na mão e não sabe o que fazer. No caso específico dos Meguinhas, o destino foi a extinção. No caso de uma pessoa específica, pode ser dissonância cognitiva extrema. No entanto, grave mesmo é quando isso acontece com sociedades inteiras, porque o destino final pode ser o colapso de toda uma civilização, com muito sangue e sofrimento no processo. E sabemos que isso é perfeitamente possível de acontecer, afinal, débâcles civilizacionais acontecem de tempos em tempos. Mas, por que este tipo de situação extrema acontece periodicamente, se o saldo final muitas vezes é trágico?
Para tentar responder a esta pergunta, primeiro precisamos delimitar os três aspectos fundamentais da vida de um indivíduo, em ordem de importância, os quais ditam todos os rumos da discussão política: como interagimos com os outros (costumes), como nos sustentamos (economia) e quem escolhemos para mandar em nós (forma de governo). O rompimento sucessivo e em cascata desta sequência leva ao ocaso dos status quo colocados e ao surgimento de novos paradigmas. As teses outrora consolidadas entram em confronto com as antíteses e temos novas teses, que perduram até o ciclo recomeçar. Nosso momento atual, minha opinião, está no apogeu da terceira fase (modelo de governo), embora todas as outras fases ainda persistam, uma vez que as coisas acontecem em um contínuo. Por isso, estamos enfrentando esta radicalização nas discussões envolvendo política, com ambos os lados tentando demarcar posição de maneira extremada e até violenta. Se quem entrou não quer sair e quem chegou quer entrar, o choque se torna inevitável. Como chegamos aqui?
Boa pergunta! Apesar das inúmeras teses conflitantes para tentar explicar este fenômeno, meu palpite é que iniciamos em meados da década passada uma crise de definições nos conceitos sociais, mais ou menos no sentido daquilo que Zygmunt Bauman definiu como “Modernidade Líquida”, ou seja, uma época em que diversos paradigmas têm sido quebrados ao mesmo tempo, redundando em fluidez de conceitos e indefinições, as quais geram angústia. A angústia de nossa sociedade atual, para usar a definição existencialista de Sartre, começou no momento em que, de uma hora para outra, nos vimos inundados com opções de escolha geradas pela hiperconectividade do mundo. Este acesso à informação sem precedentes na história humana começou precisamente quando Steve Jobs lançou o iPhone (2007). O aparelho em si não era grande coisa na época (escutem este pessoal aqui reclamando de suas limitações), no entanto, o maior feito da empresa de frutas foi ter lançado o conceito de “tudo em um”: redes sociais, vídeos, podcasts, músicas, até ligação telefônica ele faz, veja você! A facilidade com a qual nos comunicamos hoje alterou a forma como interagimos com as outras pessoas, pois permitiu que conhecêssemos mais de perto realidades antes só conhecidas de “ouvir falar”. Esta maior interação tende a gerar maior ou menor empatia, o que, na margem, leva a mudanças nos costumes.
A esta primeira ruptura na ordem social, somou-se a quebra do Banco Lehmann Brothers e o estouro da bolha do sub-prime, cerca de um ano depois do iPhone. O que se pensava que teria impactos somente locais tomou proporções mundiais, derrubando a economia de dezenas de países e gerando uma massa de desempregados. A esta crise econômica generalizada seguiram-se ondas de protestos em diversas regiões de maioria muçulmana (a chamada Primavera Árabe), as quais tiveram seus sucedâneos também em outros países (as Jornadas de Junho/2013 no Brasil, só para ficar em um caso). Estas manifestações, tidas como “espontâneas e sem líderes”, originaram a crise de refugiados e as migrações em massa do Oriente Médio para a Europa e foram fomentadas pelas redes sociais, tornadas acessíveis graças ao lançamento da empresinha da maçã.
Então, depois de todas estas peças colocadas, só nos resta re-montar o Humpty Dumpty e obtermos uma resposta sobre como chegamos ao radicalismo ideológico que vivenciamos hoje. Primeiro veio o acesso fácil e rápido à informação e à interação com outras pessoas, pondo em cheque os costumes que conhecíamos e tínhamos como a “verdade revelada no deserto”. Depois veio uma crise econômica epidêmica causada pela incompetência e ganância generalizadas de diversos atores governamentais e do mercado financeiro, colocando em perigo o padrão de vida de inúmeras famílias. Finalmente, como corolário, soergueu-se uma desconfiança generalizada das populações sobre que tipo de pessoa deveria estar no comando, levando a queda de inúmeros regimes e a ascensão de inúmeros nomes fora da política tradicional. Além disso, como uma espécie de cola a unir todas estas peças, temos uma estrutura etária mundial que vem mostrando um predomínio de jovens na faixa entre 14 e 25 anos de idade ano após anos desde o começo do nosso século. Ora, a impulsividade adolescente já é bem estabelecida cientificamente e jovens insatisfeitos com o status quo tendem a se rebelarem contra as autoridades estabelecidas. Eu mesmo fui um adolescente assim, pertenci a grupos “revolucionários”, tive meus momentos de querer mudar o mundo e outras coisas que ficaram em um passado que não vem ao caso. E mesmo que nem todos queiram fazer uma revolução, se só 10% da juventude mundial dê vazão a seus ímpetos, já é gente suficiente para causar um barulho.
O grande erro que muitos analistas cometem, e me arrisco aqui a dizer isso para meus quatro leitores habituais, é que estas pessoas ainda pensam em termos de um antagonismo entre Direita e Esquerda, naquele velho esquema tradicional. Na verdade, Direita e Esquerda nos seus sentidos mais restritos estão perdendo o sentido na medida em que o mundo se torna mais complexo. O que parece estar em voga atualmente, e crescendo, é o debate entre liberdades individuais vs. controle estatal (indivíduo livre vs. Estado poderoso). Esta é a tônica das demandas sociais atuais, que poderiam ser resumidas como economia liberal (Uber, criptomoedas, serviços em aplicativos, etc), costumes liberais (aborto e drogas legalizados, porte de armas para defesa pessoal, união civil homossexual, etc) e governos conservadores (no sentido de líderes fortes que impeçam revoluções). Notem que estas pautas misturam conceitos de ambos os lados tradicionais de embate ideológico, ou seja, as pessoas estão buscando por definições claras para se posicionarem, sem ligar muito para qual espectro político elas deveriam pertencer. E, por serem tendências, não significa que está acontecendo tudo ao mesmo tempo em todos os lugares. Então, diante desta realidade líquida, como navegar neste mar de lama sem cair no debate raso e improdutivo?
O antídoto contra o radicalismo de ideias é a procura pelo contraditório. Sempre procurar ouvir o outro lado, o antagonista imediato de qualquer ideia, tentando analisar não a pessoa que fala, mas o conteúdo do que é falado, atentando-se às falhas na lógica do discurso, aos vieses, às “forçações de barra” e distorções do problema inicial. Feito isso, segue-se o momento de reflexão, o qual é necessário para que toda a poeira se assente, os resíduos decantem e se consiga ver através da água do copo, agora calma e translúcida. Para que haja exposição satisfatória a estas antíteses, não devemos ter nenhum pudor de ouvir ou ler quem quer que seja, não devem existir “autores proibidos” ou “filmes que nunca deveriam existir” ou “podcasts que deveriam ser banidos do Universo”. Isso vale tanto à “direita” quanto à “esquerda”. A informação em si pode até ter sido gerada com intenções, mas é neutra no sentido que a interpretação da mesma é você quem extrai. Isto não é tão difícil de ser feito, uma vez que existem pessoas que o fazem com maestria. Sigamos seus exemplos, portanto!
O que temos que ter sempre em mente é que não existem “causas nobres”, existem causas e ponto. A nobreza ou não de uma causa está tão somente relacionada àquilo que alguém pensa ser correto, não em um bem ou mal em si. Excetuando-se aqueles comportamentos bem tipificados no Código Penal, ou seja, flagrantemente criminosos, não existem coisas como o “mal puro” e o “bem puro”. Não é porque eu me acho uma pessoa boa que aquilo que eu penso automaticamente é o lado certo e que o pensamento diferente do outro lado está errado. Isto só funciona (e muito bem) em histórias ficcionais, quando estamos mimetizando a realidade por meio de arquétipos, de simulacros, justamente para reforçar uma mensagem e passar uma lição de forma simples e didática.
O melhor ícone para resumir a realidade em que vivemos é o símbolo clássico do Yin e Yang, o qual encerra uma sabedoria de vida fantástica, daquelas de tirar o fôlego e fazer pensar por semanas a fio. Este símbolo é um círculo onde duas cores contrastantes representam o “bem” e o “mal”. Cada um dos lados coloridos tem um ponto menor com a cor do lado oposto incorporada. A linha que separa estes lados é a linha de equilíbrio, a qual é sinuosa ao contrário de ser reta. Reflitam sobre este ícone e interpretem a realidade desta maneira. Garanto que as chances de cura de uma obtusidade mental incipiente são muito altas. E que venham debates saudáveis a partir daqui!
Até a próxima!