Dias desses eu esbarrei em um artigo para lá de interessante. Intitulado “Isolation and characterization of live yeast cells from ancient vessels as a tool in bio-archaeology”, algo como “Isolamento e caracterização de células vivas de leveduras de vasos antigos como uma ferramenta da bioarqueologia” (link aqui), o artigo estudou leveduras encontradas em recipientes antigos que eram usados para produzir cerveja e hidromel. E quando eu digo antigos, eu quero dizer muito antigos mesmo. Me acompanhe para entender como isso é possível e qual a importância de um estudo desse.

Para começar, você pode se perguntar: quanto vive um microrganismo em uma superfície? Pois é, os autores também se perguntaram e fizeram um teste prévio com jarros que continham cerveja e tinham sido enterrados por três semanas. Outro teste foi feito com um vaso de cerâmica que tinha sido usado para armazenamento de vinho por menos de dois anos e os microrganismos que estavam lá dentro continuavam vivos! Incrível, não é? O que acontece é que os recipientes usados para a produção e armazenamento de cerveja e outras bebidas fermentadas eram feitos de cerâmica, um material que possui muitos poros bem pequenos, onde as leveduras responsáveis pela fermentação das bebidas alcoólicas podem ter criado micro-habitats que propiciaram que sua sobrevivência ao longo de tanto tempo.

Vamos lembrar aqui que o tamanho de uma célula de levedura é muito pequeno na escala de micrômetros (mil micrômetros equivalem a um milímetro, certo?), e os poros dentro de um vaso de argila são abrigos perfeitos para esses microrganismos, que deveriam estar presentes em grandes quantidades durante o processo de fermentação, sendo muito provável que tenham vencido a batalha por espaço e nutrientes contra outros microrganismos menos adaptados ao meio. Os poros em determinadas superfícies eram tão importantes durante o processo de produção de cerveja que, em algumas culturas, o cervejeiro possuía uma colher que não costumava ser lavada. Acreditava-se que tal equipamento, que era mergulhado em todos os caldos que seriam fermentados, continha um “ingrediente ativo” que era passado para as futuras cervejas enquanto o líquido era remexido durante o processo de produção. O que esses cervejeiros são sabiam era que o ingrediente ativo nada mais era do que leveduras que moravam nos poros da colher, que costumava ser de madeira.

Muito interessante, né? Mas você já se perguntou como esses pesquisadores conseguiram afirmar com tanta certeza que os microrganismos isolados dos recipientes eram leveduras capazes de realizar fermentação? Isso foi simples, foram isoladas leveduras de diversas superfícies, desde outros objetos encontrados nos mesmos sítios arqueológicos, mas não eram relacionados à produção ou armazenamento de bebidas (tais como potes de cozinhar alimentos e lamparinas), até do ambiente ao redor (como pedras e plantas). A quantidade de leveduras encontradas nesses outros ambientes foi significativamente menor. Na verdade, foram isoladas apenas leveduras de pedras e lâmpadas de óleo de argila, que não foram capazes de produzir uma cerveja palatável quando utilizadas em um processo fermentativo. Uma levedura encontrada nas pedras, inclusive, foi identificada como Candida albicans (sim aquela mesma responsável pela candidíase) e provavelmente se originou de alguma contaminação de origem humana.

Já nos recipientes que se acreditava terem sido utilizados para armazenar bebidas alcóolicas, foram recuperadas seis leveduras diferentes. Esses recipientes pertenciam a períodos históricos diversos e foram encontrados em quatro locais diferentes em Israel. Pelo tipo de cerâmica, formato dos vasos e hieróglifos presentes neles, pode-se identificar os recipientes de dois dos locais como pertencentes a Egípcios que viveram por volta de 3100 AEC (Antes da Era Comum) em Canaã. Em um terceiro local foram descobertos recipientes com bico e um filtro lateral que foram identificados como pertencentes aos Filisteus, em 850 AEC. Os últimos vasos eram típicos da região da Judéia, durante o início do período Persa. Nesse local, foram encontrados resíduos de hidromel, além de cerveja.

Jarro antigo de cerveja. Fonte: Science Focus

As leveduras isoladas desses vasos foram primeiramente analisadas na tentativa de identificar semelhanças com espécies atuais que pudessem ser relacionadas como parentes dessas leveduras. Algumas comparações foram feitas, sendo uma das isoladas muito semelhante a uma estirpe de Sacharomyces cereviseae, a levedura mais conhecida como fermentadora da atualidade. Ou seja, os pesquisadores estavam no caminho certo!

Toda a parte de análise molecular está bem detalhada no artigo e eu não vou abordar aqui no texto para não ficar complicado demais. Acho interessante apenas comentar que quase todas as leveduras isoladas foram identificadas como parentes de espécies utilizadas antigamente na produção de cerveja e hidromel na África, sendo uma delas conhecida como contaminante de alimentos encontrada comumente em cervejas. Duas das espécies não foram relacionadas diretamente com processos fermentativos, mas eram geneticamente similares a leveduras isoladas em figos africanos, o que pode indicar que essas frutas eram misturadas à cerveja para fornecer um sabor ou aroma diferente (e você achando que a moda da cerveja artesanal de todos os sabores possíveis era recente). Essas duas últimas tiveram seus genes comparados com leveduras usadas atualmente para a produção de cerveja e, explicando de uma maneira bem simples, uma delas possuía mais genes semelhantes aos das leveduras atuais e foi capaz de produzir uma cerveja palatável, enquanto a outra, que apresentou menor semelhança, não se mostrou apta para tal.

E chegamos então à parte que mais interessa, a produção de cerveja! Todas as leveduras isoladas, incluindo as provenientes do ambiente, foram testadas. Uma estirpe utilizada comercialmente serviu de parâmetro para comparação do desempenho de cada uma delas. Todas aquelas isoladas de frascos relacionados com bebidas cresceram de maneira similar à cepa comercial, entretanto, nem todas as cervejas produzidas durante a fermentação ficaram com gosto e cheiro agradáveis. Aquelas cervejas que passaram na primeira triagem, sendo consideradas palatáveis, foram comparadas com a cerveja produzida pela estirpe comercial e apresentaram bons resultados, com características semelhantes às cervejas consumidas atualmente, tanto no grau alcoólico quanto na presença de compostos específicos. Não é de se espantar que uma das leveduras a produzir boa cerveja foi aquela identificada como Sacharomyces cereviseae.

Pesquisadores provando as cervejas produzidas. Fonte: Science Focus

Mas isso significa que os pesquisadores provaram uma cerveja ancestral com o gostinho do que se tomava naquela época? É claro que não e eu vou explicar porque:

  • O método de produção das cervejas utilizado foi um atual e provavelmente difere bastante da maneira como a produção acontecia milênios atrás;
  • Por mais que morassem dentro de frascos utilizados por povos antigos para produzir e armazenar cerveja, esses microrganismos isolados não são exatamente os microrganismos usados na época. Ao longo dos séculos e após diversos brotamentos (modo de reprodução das leveduras), pode-se afirmar que as leveduras ali presentes são possivelmente descendentes das leveduras antigas, mas não se pode dizer que são justamente as mesmas. Podem ter acontecido mutações, transformações dentro das colônias, além de uma diminuição de diversidade de espécies por competição por espaço e alimento.

Ainda sobre as leveduras, embora elas devessem predominar no caldo durante a fermentação por já morarem nos jarros, elas definitivamente não estavam lá sozinhas. Ainda não se conheciam os microrganismos nas épocas dos utensílios estudados e, com toda a certeza, os recipientes, o caldo e até mesmo as mãos de quem manipulava tudo isso não deviam ser estéreis, havendo sempre contaminação com algum microrganismo novo a cada ciclo de produção. De qualquer maneira, pode-se dizer que as leveduras que prevaleceram foram praticamente domesticadas, afinal, elas passaram a ter alimentos fornecidos periodicamente e abrigo em um ambiente livre de predação em troca de desempenhar uma função específica.

Quanto à levedura relacionada a contaminação de alimentos e bebidas, ela não foi testada para a produção de cerveja, por motivos óbvios. Já as cervejas produzidas por leveduras que não estavam em recipientes de bebidas (como pedras e lâmpadas), essas possuíam gosto e cheiro ruim.

Que tudo isso é muito interessante, não há dúvida, mas qual a finalidade de se estudar microrganismos presentes em objetos antigos? Essa é mais uma forma de se aprender sobre os hábitos dos povos. A bioarqueologia, citada no título do artigo, oferece um complemento importante para a arqueologia, permitindo um número muito maior de informações coletadas de corpos, objetos e seu entorno. Um exemplo foi a indicação de que figos eram utilizados para saborizar as cervejas. Outro, que eu não comentei anteriormente, mas é discutido no trabalho, foi a identificação das leveduras encontradas na lâmpada de óleo, que são leveduras presentes no azeite.

E aí? Você já tinha ouvido falar desse tipo de pesquisa? Achou importante? Ficou com vontade de tomar cerveja? Tem muita coisa ainda para ser estudada e ferramentas como as moleculares (que analisam o DNA) são extremamente úteis para o entendimento da dieta, cultura, ferramentas técnicas de produção empregadas pelos nossos antepassados.

 

Texto baseado em: AOUIZERAT T, GUTMAN I, PAZ Y, MAEIR AM, GADOT Y, GELMAN D, SZITENBERG A, DRORI E, PINKUS A, SCHOEMANN M, KAPLAN R, BEN-GEDALYA T, COPPENHAGEN-GLAZER S, REICH E, SARAGOVI A, LIPSCHITS O, KLUTSTEIN M, HAZAN R. 2019. Isolation and characterization of live yeast cells from ancient vessels as a tool in bioarchaeology. mBio. 10:e00388-19.

 

Imagens do artigo da Science Focus: https://www.sciencefocus.com/news/unbeerlievable-ancient-egyptian-ale-recreated-from-5000-year-old-yeast/