No ano de 2019 pautas relacionadas a saúde pública ficaram em segundo plano, o SUS vinha sendo sucateado e aos poucos deixando de ser universal. Agora nesse ano incomum que vem sendo 2020, quando saúde se torna o tema principal por razões óbvias de pandemia, o assunto vira algo que se resume a opinião. Não me entenda mal, opinião é extremamente importante em políticas públicas, porém não consigo imaginar algo lúcido que justifique líderes de grandes nações receitar remédio para a população.
No texto de hoje vamos analisar como saúde se tornou opinião partindo de 3 principais aspectos; a falta (ou dificuldade) de evidência científica de algumas técnicas na saúde, o viés de confirmação que todos estamos suscetíveis e a internet.
As coisas mudam e na ciência também
Na saúde, assim como em todas as áreas, tem sempre aquele assunto polêmico que, mesmo não tendo comprovação científica, é utilizado por alguns profissionais. A homeopatia e o reiki são ótimos exemplos, ambos são considerados pseudociencia com inúmeras provas de que não funcionam, porém ainda assim são adotados como válidos.
Dentro da Fisioterapia Respiratória existe uma técnica chamada tapotagem, um método de percussão feito por meio das mãos (como mostra a imagem abaixo) que tem como função o deslocamento das secreções na região do pulmão, geralmente usadas em crianças. Qual motivo de eu estar falando dessa técnica aqui? Então, ela não funciona, porém ainda assim é utilizada.
A Fisioterapia é ferramenta fundamental no acompanhamento de doenças respiratórias, porém, quando se analisa especificamente a técnica da tapotagem, sempre se destaca a falta de evidências que comprovem sua eficácia. Além de existirem dificuldades em sua avaliação que vão desde o tempo de aplicação à habilidade do terapeuta em realiza-lá, há outras técnicas com melhor resultado, a exemplo da PEP, sigla para Pressão Expiratória Positiva (1).
“A tapotagem ainda é bastante utilizada, porém deve ficar claro que sua eficácia é limitada (…) Outro fator limitante desta técnica é a capacidade da mão humana gerar a frequência necessária em hertz para que a ação proposta (mobilizar secreções localizadas no interior do pulmão) sejam alcançadas. (2)”
A tapotagem é um exemplo de técnicas da saúde que antes eram utilizadas e hoje, quando melhor analisadas dentros da metodologia científica, mostram não ser eficazes. As coisas mudam, dentro da ciência também. Anteriormente eu falei que a PEP mostra melhor resultado que a tapotagem, amanhã pode aparecer outro método que descarta o anterior. Isso deve ser avaliado e questionado dentro do método científico. O mesmo vale para remédios e questões de saúde pública.
Dentro da Fisioterapia tem-se a frase “o tratamento sempre deve se basear em evidências”, porém mesmo com a metodologia científica e a informação que chega de maneira fácil (por meio da internet), ainda assim somos reféns de crenças e vieses de confirmação.
Bugs, Vieses e Tsunami
No livro de Dean Buonomano “Cérebro Imperfeito” (2012), o autor comenta:
“Nosso cérebro é capaz de realizar algumas tarefas com grande perfeição, mas é mal preparado para outras. Infelizmente, uma de suas fraquezas é o não reconhecimento das tarefas para as quais não está apto. Por isso, na maior parte do tempo, ficamos inocentemente felizes sem saber até onde nossa vida é governada pelos bugs do cérebro“ (4)
Bugs esses que estão cheios de vieses de confirmação, nos levando acreditar naquilo que convém. Não é difícil imaginar que, em uma situação de pandemia, que sozinha já é um momento tenso, e principalmente em que chega muita informação, um indivíduo acredite que “olha só, já temos o medicamento do Corona, mais tarde eu posso sair para beber com os amigos!’’
A pessoa do exemplo acima não quer saber sobre a curva da pandemia, a metodologia aplicada, o superlotamento do SUS e todos os requisitos que devem ser atendidos para uma ida ao bar ser segura. Ela quer uma resposta simples e direta como “o remédio X funciona”.
Ronaldo Pilati, no livro Ciência e Pseudociência (2018), reforça justamente isso:
“existe uma restrição que nos impede a compreensão da realidade (…) Podemos entender que as limitações mentais nos levam, facilmente, a acreditar em explicações que se distanciam do verossímil. Mesmo assim teimamos em acreditar. Não porque existem evidências de que a explicação seja boa, mas porque queremos acreditar” (5)
No ano de 2005 em um programa super conhecido na região do Ceará, um vidente profetizava que naquele ano viria um tsunami em Fortaleza. Era início dos anos 2000 a internet não era tão acessível e o termo fake news nem existia. Muitos acreditaram em tal vidente. Veio a data prevista e… não teve tsunami na capital do Ceará. O vidente voltou ao programa e disse ter “errado nos cálculos” e deu outra data. Não é spoiler dizer que estava errado nessa e em todas as outras vezes que previu tal acontecimento
O caso acima é um exemplo claro (até engraçado) da teoria da dissonância, que explica o mecanismo pelo qual as pessoas acomodam incoerências entre suas crenças e seu comportamento. Isso nos ajuda a compreender como e por que somos capazes de acreditar em coisas que não possuem evidências na realidade. Acreditamos mesmo que tenhamos evidências contrárias àquilo que acreditamos (5).
O fato das pessoas crerem que poderia vir um tsunami em Fortaleza se dava ao episódio ocorrido tempos antes na Tailândia. Todo mundo assustado e era fácil imaginar “e se algo assim acontecesse comigo?” mesmo não existindo a menor possibilidade de ter algo no litoral do Ceará.
Voltando à saúde, pandemia e COVID-19, o fato das pessoas acreditarem que um remédio funciona milagrosamente – mesmo o mundo tendo parado e muita gente morrido devido à doença – em partes se dá também pelo medo. Tal indivíduo escolhe acreditar que “a pandemia é exagero” mesmo quando todas as evidências dizem o contrário.
Quando você quer construir um prédio de quem vai ser a opinião mais importante: de um cara que faz hamburger ou de um engenheiro/ arquiteto? O mesmo vale em questões de saúde pública. Importante ressaltar que: pode acontecer de uma pessoa com formação adequada para tal errar nas decisões tomadas, por também estar refém de vieses, crenças e bugs no cérebro. Cabe aos profissionais reconhecerem tais limitações por meio novamente da metodologia científica corrigi-los.
Enquanto isso na Internet
Já vimos que algumas técnicas de saúde podem se tornar ultrapassadas com o tempo e, como o nosso cérebro tem uma propensão a acreditar naquilo que escolhe acreditar, agora veremos o papel da internet sobre o assunto. Aqui dentro do Deviante já escrevi três textos sobre como as redes sociais influenciam a nossa vida (links nas referências).
Voltando um pouco no tempo, vejamos uma parte da conversa sobre internet entre Terry Pratchett (autor de livros como Belas Maldições e Discworld) e Bill Gates cofundador da Microsoft (@discworldbr/tradu%C3%A7%C3%A3o-terry-pratchett-alertou-sobre-as-not%C3%ADcias-falsas-na-internet-em-uma-entrevista-de-1995-f3de71e47fa4">link), que aconteceu no ano de 1995:
Pratchett teorizou “OK. Digamos que eu me chame de Instituto para Alguma Coisa-ou-Outra e decido promover um tratado falso dizendo que os judeus eram inteiramente responsáveis pela Segunda Guerra Mundial e o Holocausto não aconteceu. E isso é divulgado na Internet e está disponível nos mesmos termos de qualquer pesquisa histórica que tenha passado por revisão por pares e assim por diante. Há uma espécie de paridade de estima da informação na internet. Está tudo lá: não há como descobrir se esse material tem alguma base ou se alguém acabou de inventá-lo”.
Bill Gates se mostrou mais otimista afirmando que “Não por muito tempo. A eletrônica nos dá uma forma de classificar as coisas. Você terá autoridades na internet, e porque um artigo está contido em seu índice, isso significará algo. Para todos os efeitos práticos, haverá uma quantidade infinita de testes e você só receberá um texto através de níveis de direcionamento, como um amigo que diz ‘ei, leia isto’, ou o nome de uma marca que está associada a um grupo de peritos, ou a um especialista em particular, ou a pareceres de consumidores, ou o equivalente a um jornal… eles mostrarão as coisas que são de um interesse particular. Todo o caminho por onde você pode verificar a reputação de alguém será muito mais sofisticado no Novo do que é no impresso hoje”.
Depois de 25 anos, a internet tem um papel fundamental como forma de comunicação e é fácil vê como Pratchett estava incrivelmente certo. A verdade virou opinião e o contrário do que eu penso tornou-se algo abominável. E, 9 anos após o filme Contágio, vendo como o presidente escolheu combater a pandemia, a vida imita a arte às vezes de forma bizarra.
De acordo com escritor Jason Lanier,
“Antes se consumia propaganda de forma coletiva, ou seja você estava na sala com sua família assistindo uma novela e no intervalo todos viam o mesmo comercial. Não era adaptado individualmente, era uma abordagem sorrateira e passageira (…) todos que estão nas redes sociais recebem estímulos individualizados, continuamente ajustados, sem trégua; é só estar usando o smartphone. O que antes podia ser chamado de propaganda deve agora ser entendido como uma modificação de comportamento permanente e em escala gigantesca” (6).
Se eu acho que um lockdown em meio a pandemia um exagero, na internet tal fato se tornará verídico na minha bolha. Encontrarei pessoas que concordam com essa visão e até mesmo “especialistas” com estudos científicos que “comprovam” tal afirmação, ou seja falar exatamente o que quero ouvir.
Então saúde se tornou opinião quando…
Desde o inicio da saúde, os tratamentos, técnicas e medicamentos foram se moldando conforme se comprova a sua eficácia. Isso não é novo e vai continuar, é ferramenta fundamental na ciência. Porém, quando isso é usado fora de contexto, acaba por se tornar perigoso. Um ótimo exemplo é a cloroquina. Não é por esse medicamento “não ter comprovação científica de que não funciona” que devemos tomar ele.
Não são novos também os vieses de confirmação, crenças, pseudociências e pessoas com interesses. Porém, quando se tornam verdade absoluta, acabam colocando a vida de pessoas em risco, a exemplo da origem do movimento antivacina ou, para manter o tema na pandemia, o debate entre “vidas versus economia”.
Então saúde se tornou opinião quando isso foi potencializado pela internet e pela guerra de narrativas, que é a única forma que alguns líderes mundiais sabem lidar com crises (Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil são ótimos exemplos). A ciência sempre deve ser soberana, a metodologia científica é que deve nos guiar a caminhos possíveis em um novo mundo que se apresentará pós pandemia.
No meu texto que escrevi aqui no Deviante sobre “Fake News em saúde”, eu faço uma citação direta que trago aqui novamente
“Sem o método científico estaríamos lidando com as crenças e dogmas. A ciência permite conhecer os fenômenos e questioná-los, possibilita o acréscimo de conhecimentos sobre aqueles já adquiridos e possibilita que a humanidade caminhe em um crescente de conhecimentos sobre as coisas. O conhecimento científico nos permite agir com segurança e precisão. Nos ajuda a evitar riscos e perigos” (3)
Existem mais dois aspectos que pretendo abordar em textos futuros: o da saúde ter ficado em segundo lugar e as guerras de narrativas do que é verdade. Por hoje é isso, sempre vale uma olhada nas referências do texto.
Paz.
Textos, podcast e vídeos complementares:
Redes Sociais e sociedade Part I, Part II e Part III
Scicast #380 A Ciência e a COVID-19
Jason Lanier falando ao NYT sobre: um possível futuro da internet
Referências:
(1). OLIVEIRA, E. A; GOMEZ E. L. Evidencias Científicas das Tecnicas atuais e Convencionais de Fisioterapia Resp. em Crianças. Fisioterapia Brasil – Ano 2016 – Volume 17 – Número 1
(2). RUIZ, V. C. et.al. Efeito da fisioterapia respiratória convencional e da manobra de aspiração na resistência do sistema respiratório e na saturação de O2 em pacientes submetidos à ventilação mecânica. Acta Fisiátr 1999;6(2):64-9.
(3).VIZZOTTO, M ; et. al. Breve reflexão sobre a importância do método científico. Copyright © 2016 Instituto Metodista de Ensino Superior CNPJ 44.351.146/0001-57.
(4). BUONOMANO, D. O cérebro Imperfeito, 2012, Elsevier Editora Ltda.
(5). PILATI, R. Ciência e Pseudociência: Por que acreditamos apenas naquilo que queremos acreditar? 2018, Editora Contexto.
(6).LANIER, J. 10 argumentos para você deletar suas Redes Sociais, de 2010, Intrínseca.