Recentemente recebi uma prima de Brasília aqui em casa. Era a primeira vez dela em São Paulo e como um bom anfitrião paulista, combinei com minha namorada de levarmos ela para conhecer alguns pontos turísticos da capital, pelo menos aqueles possíveis de ir em meio a pandemia atual. Fomos ao Viaduto do Chá, à Avenida Paulista e Largo de São Bento. Depois desse passeio, quando voltamos pra casa, a terra da garoa resolveu fazer uma surpresa. Caiu um toró descomunal e ficamos encharcados. Após chegarmos em casa e nos secarmos, conversei com minha prometida e perguntei para ela: quando foi a última vez que você tomou um banho de chuva?

Não, não estou falando de ser surpreendido pela instabilidade temporal de uma cidade como São Paulo e virar um picolé aquático. Estou falando de ir intencionalmente se molhar em um dia de céu escuro, assim como fazíamos quando éramos crianças. Eu pessoalmente não lembro quando foi o meu, assim como não lembro quando foi a última vez que eu brinquei com meus colegas de infância. Aquele futebol na frente de casa, do lado de um barranco com um pé de chuchu e altas probabilidades de um machucado bem feio, nesse lugar ficou toda a lembrança da última risada sem preocupações de boletos. Mas a partir dessa pergunta, surge o questionamento: por que esquecemos coisas tão triviais?

A memória é uma coisa muito interessante, eu particularmente sou fascinado com essa habilidade dessa massa gordurosa que habita nossas cabeças. Conseguimos guardar de alguma forma desde o número do nosso CPF até o ano que a Segunda Guerra Mundial terminou. Mas melhor do que lembrar, por que esquecemos? Um pesquisador, no século XIX, também teve essa indagação. Seu nome era Hermann Ebbinghaus e em 1885 ele bolou um experimento muito interessante para medir o quanto esquecemos as informações. Inicialmente foi montada uma lista de palavras aleatórias sem sentido a qual tinha que ser decorada, e após isso ele fazia uma quantificação de quanto tempo a informação era esquecida, sendo coletados os dados em intervalos de tempo pré-determinados. Com esses dados, ele montou uma curva de esquecimento, na qual é demonstrada como a perda de informação é mais intensa no primeiro momento (principalmente nos dois primeiros dias) e depois ela se torna suavemente constante. Isso demonstra que a partir do momento que nos propomos a aprender algo, no primeiro momento muito pouco do que foi aprendido é efetivamente retido.

Em 1890, William James, outro intelectual, escreveu um livro denominado Principles of Psychology, no qual dedicava um capítulo inteiro sobre a memória, onde afirmava existir dois tipos de memória: a primária e a secundária. A primária seria um registro efêmero, durando pouquíssimo tempo e sendo extremamente suscetível a interferências. Já a secundária seria um registro mais duradouro, passando por um processo de consolidação mais permanente. Esses dois conceitos acabaram por ser traduzidos na nossa cultura como aquilo que conhecemos por “memória de curto e longo prazo”. No frigir dos ovos, o que podemos concluir é que se em atividades que estamos focados, a curva de esquecimento já é acentuada, imagine para situações que apenas estávamos curtindo o momento, como se não houvesse amanhã. Tais memórias foram perdidas nas areias do tempo, sendo a única possibilidade de imortalidade a captura através de uma lente de câmera.

Talvez você tenha tentado lembrar a última vez em que vossa bela face foi tocada de forma intencional e divertida por gotas oriundas da abóbada celeste. Provavelmente você não se lembrou de algo, mas se lembrou, foi algo envolvendo alguns amigos, um dia de chuva intensa como uma chuva de verão e a sua memória tem cores quentes e intensas, como se tivesse um HDR ligado na câmera, com muita energia das crianças envolvidas nesse enquadramento. Se você não se identificou com essa descrição, tudo bem. Talvez você seja um jovem de apartamento que trocou a perda da famigerada “cabeça do dedão” pela tendinite por jogar demais League of Legends ou Fortnite. Mas se você se identificou com a situação descrita, pense de novo. Nem as minhas lembranças deveriam ser assim, afinal onde eu cresci era bem frio e nem um pouco charmoso pros padrões de Hollywood. Você caiu no poder da sugestão das lembranças falsas.

Dois pesquisadores em 1974 estabeleceram um novo jeito de encarar os processos de falsificação de memória. Elizabeth Palmer e John Palmer fizeram um experimento no qual apresentavam uma cena de acidente de carro causado pelo avanço de um motorista em uma placa de “dê a preferência”. Depois, o experimentador sugeria para metade do grupo estudado que a placa na verdade era de “pare”. No terceiro momento, os sujeitos eram instruídos a reconstituir a cena original, entretanto, alguns reconstruíam com a placa de “pare”. Esse experimento é apenas um entre inúmeros que consolidam o paradigma da falsa informação. Quantas vezes em um rolê com os amigos, alguém te falou: “pô fulano lembra aquele dia que a gente dançou lambada com seu primo tecladista?” e você respondeu: “claro vei foi muito louco aquele dia”. Você nunca dançou lambada nem tem primos, mas naquela fração de tempo você acredita fielmente que estava lá nesse dia.

Nossa memória é incrível. Mais do que guardar lembranças, o registro de tudo o que já aconteceu em nossas vidas faz parte de quem somos. Talvez você não gostasse tanto de suco de laranja se naquele dia sua mãe não tivesse dito que você é incrível. Quem sabe você escolheu a sua profissão porque alguém disse que você não seria capaz. E até podemos supor que esse texto fique na sua memória, por qualquer motivo que seja.

 

*Agradecimento especial a Giseli Dias, minha companheira que sempre suporta minhas ideias sem sentido. Obrigado.

Referências bibliográficas:

https://www.bbc.com/portuguese/geral-39477636

– Pavão, Rodrigo. Aprendizagem e memória. Revista da Biologia – Volume 1 – Dezembro de 2008.

– Stein, Lilian Milnitsky; Neufeld, Carmem Beatriz. Falsas Memórias: Porque lembramos de coisas que não aconteceram? Arq. Ciências da Saúde Unipar. – 5(2): 179-186, 2001.