Seja em algo mais global, como a crise do capitalismo, ou algo mais momentâneo, como trends de redes sociais, em algum momento foi ultrapassada a linha da ficção representada em filmes de terror e a realidade está se confundindo. Como exemplo vamos pegar essa frase “Mulher come propositalmente ovos de tênia para emagrecer e desenvolve lesões cerebrais”. Saiu de um filme de terror ou da realidade?
Chegamos a mais um halloween e no texto de hoje quero abordar a proximidade dos filmes de terror com a nossa vida real, passando por assuntos como a busca de um corpo considerado ideal e o capitalismo tardio.
A substância e o Ozempic
Durante parte considerável da minha adolescência, por volta de 2010, o discurso de aceitação do próprio corpo começava a ganhar destaque, entendendo que os corpos são variados e que, apesar de tudo, o importante é buscar sentir-se bem consigo mesmo. Pode ser um discurso básico mas naquele início de popularização da internet era o bastante para se iniciar um debate sobre a imposição da magreza, principalmente essa pressão sobre as mulheres.
Chegamos em 2024. Um remédio que tem como funcionalidade o tratamento de diabetes tipo 2 virou “trend” no tiktok por um dos seus efeitos colaterais ser emagrecer. O Ozempic vem sendo usado de modo usado off label — ou seja, fora das indicações da bula — para a perda de peso. Isso acontece devido à semaglutida, principal componente presente no medicamento.
Apenas deste componente ser aprovado pela ANVISA como medicamento para emagrecer, pouco se sabe sobre os efeitos a longo prazo do seu consumo sem o acompanhamento médico.
De acordo com o CFF (Conselho Federal de Farmácia) os efeitos colaterais, como náuseas e dores de estômago, levantam questões sobre os efeitos de longo prazo e o que acontece quando a medicação é interrompida.
Aqui voltamos para a manchete lá do início do texto “Mulher come propositalmente ovos de tênia para emagrecer e desenvolve lesões cerebrais”, e sim, ela é real, cápsulas contendo ovos de tênia vem sendo comercializadas com o objetivo de emagrecer.
De acordo com matéria no site Terra, a moça em questão encontrou o anúncio desse método “controverso” para emagrecer e, ao começar a fazer uso mesmo com os efeitos colaterais, como desconforto abdominal, sentiu-se satisfeita com o resultado. Até sentir fortes dores de cabeça e procurar o médico, e o que ela descobriu já sabemos.
Você aceitaria tomar uma substância que traria de volta à sua versão “ideal”? Esse é o enredo do que vem sendo considerado um dos melhores filmes de terror do ano, The Substance (2024). Dirigido por Coralie Fargeat, estrelado por Demi Moore e Margaret Qualley, o longa aborda questões de estética e os sacrifícios na busca do corpo idealizado. – Leves spoilers pela frente –
O filme conta a história de Elizabeth (Demi Moore) uma famosa professora de aeróbica da televisão que vê o seu programa perder a audiência conforme ela vai envelhecendo. No dia em que é demitida, por não ter o corpo ideal, a personagem entra em contato com um novo medicamento.
Junto ao medicamento existe uma série de regras, um novo corpo irá surgir e esse corpo novo precisa cuidar do corpo velho e, por sete dias, corpo velho e jovem trocam de lugar. Desse modo existe uma relação direta de dependência entre os corpos, fazendo com que as escolhas de um influenciem no outro.
Para além de uma crítica da busca do corpo ideal, o longa aborda temas como o envelhecimento e a objetificação das mulheres na indústria e contém referências que vão desde O retrato de Dorian Gray (livro clássico de 1890) até A Mosca (filme dirigido por David Cronenberg no ano de 1987).
Aliás, até onde vale a pena colocar seu corpo em risco para se encaixar na sociedade patriarcal? The Substance (2024) é um retrato cruel e que, apesar de estar no campo ficcional, não está muito longe das tendências de magreza dos últimos anos.
Alien e o capitalismo
Agora vamos para a seguinte manchete: “Falha de controle em exames pode ter levado a HIV em transplantes”, essa foi mais popular nas últimas semanas, então já sabemos que não foi um filme de terror, e sim a realidade. Porém a falta de responsabilidade do meio privado para com a população é algo digno de ser subtema de uma das maiores franquias do cinema.
Em “Alien: Romulus” (2024), dirigido por Fede Alvarez, no fundo de uma das cenas ouvimos a seguinte frase “Eles nos vendem esperança para nos manter escravizados”. O longa se inicia em uma colônia espacial de trabalhadores mineradores, que, para sair daquele ambiente, devem pagar uma passagem caríssima à qual nunca terão acesso.
No decorrer do filme acompanhamos um grupo de jovens de segunda geração dessa colônia, cujos seus pais morreram por negligência da empresa responsável. Sabendo que não conseguirão sair de lá por vias legais eles buscam esperança em uma nave abandonada, que entrou em órbita próximo de onde estão.
A franquia que teve início em 1979 com Alien, O oitavo passageiro (Direção de Ridley Scott), teve uma série de sequências com diferentes diretores e abordagens na história, por vezes até saindo do gênero terror. Porém tem algo em comum em todos os filmes da franquia, o principal vilão. Você deve estar pensando: o Alien que dá título aos filmes. Não, a Companhia.
Ellen Ripley (Sigourney Weaver), personagem principal dos primeiros filmes da franquia, no decorrer dos filmes trava duas lutas, “uma contra o Alien, para defender a humanidade do não humano, e outra contra A Companhia, para defender a humanidade de si próprio”. Desse modo o filme traz referências da luta da classe trabalhadora com fortes críticas às corporações e sua forte obsessão de visar o lucro em cima de vidas humanas (Duarte, 2018).
Voltando para matéria do início sobre pessoas infectadas com HIV em transplantes, tal fato decorre de diversos anos de precarização do SUS e a entrada do meio privado, que tem como objetivo principal lucro. Esse é apenas um exemplo de descasos. Porém a saúde é um bem inegociável, por isso, em território brasileiro, a saúde é considerada um direito, e cabe ao Estado fornece-la de modo universal e seguro para todos os cidadãos que aqui estão.
O que ocorreu no caso dessa matéria foi por uma série de negligências da saúde privada. De acordo com a reportagem da Agência Brasil, “as investigações detectaram negligência na checagem da validade dos reagentes, ou seja, dos produtos químicos que reagem com o sangue contaminado e indicam a presença do vírus”. Ou seja, o lucro foi colocado acima do bem-estar das pessoas.
A cultura pop, ao seu modo, reflete a sociedade em que vivemos, são retratos do momento. No terror, o objetivo principal é causar medo, esse gênero então reflete os medos da sociedade. Talvez a loucura que o mundo vem apresentando ultimamente, de crise climática a ascensão de um discurso extremista, explique o motivo de sairem tantos bons filmes de terror ultimamente.
Feliz Halloween!
Imagem de capa – filme A Substância ( 2024)
REFERENCIA:
DUARTE, Luciana Teixeira. Medo e alteridade no cinema de ficção científica: uma análise a partir dos filmes O Planeta dos Macacos e Alien-o oitavo passageiro. 2018. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.