A ideia de direito geralmente remete à de justiça. Em geral, o imaginário (coletado de indagações que faço aos meus alunos) é de que são coisas próximas, mas que nem sempre coincidem na prática. Contudo, essa relação, por vezes, parece de contradição diante de casos reais. Por vezes, ouvimos comentários de que a decisão de um juiz que aplicou o direito não foi justa, ou elogios a um juiz que não seguiu a lei, mas fez justiça.
Atualmente, com o STF sempre tomando decisões importantes na mídia e com várias ações penais em evidência, que levam a destaque juízes como Sérgio Moro, essa discussão se torna cada vez mais importante e esse é um estudo que é recorrente na área chamada “Teoria do Direito”. Mas, como é de praxe nas ciências humanas e sociais, para entender a relação entre direito e justiça, precisamos ver como essa se comporta ao longo da história.
Eu poderia voltar bem antes no tempo, mas quero começar . Nesse momento anterior à consolidação dos Estados (ouçam o Scicast 190, “Estado e nação”), o poder era descentralizado, o que significa que ninguém mandava muita coisa. Se não tinha uma única fonte de poder, também não tinha só uma fonte de direito: a Igreja criava o direito canônico; o rei, o direito régio; os senhores feudais, o direito local; fora o direito dos costumes, que nascia da própria sociedade. Já dá pra imaginar o caos que era pro advogado te defender. Era mais fácil passar pela provação de fogo e tentar se curar das queimaduras pra provar a inocência.
De qualquer forma, além desses direitos diferentes e independentes, chamados de direito positivo (que foi posto ou reconhecido por uma autoridade), se tinha uma ideia de direito natural, esse sim, ligado à justiça (no caso, uma justiça vinda de Deus).
Nesse cenário, o juiz não era vinculado ao Estado (que não existia), mas à própria sociedade. Em razão disso, também não era vinculado a uma das muitas fontes de direito existentes. Portanto, ao se deparar com um conflito, ele, o juiz, era livre para utilizar do direito que melhor se adaptasse ao caso. A ideia, portanto, era que o(s) direito(s) eram ferramentas a livre disposição do juiz, que deveria escolher a mais adequado para alcançar a justiça naquele caso. Nem preciso falar que não dava muito certo e, de vez em quando, o seu porco era condenado por assassinato ou você era condenado por bruxaria porque os ratos mataram alguém (para visualizar melhor esse cenário indico o filme “The advocate” ou “Entre a luz e as trevas” em pt-br, especialmente as cenas no tribunal, de onde esses exemplos foram tirados).
O grande problema, nesse ponto, pelo menos ao ver dos chamados jusnaturalistas racionalistas, particularmente os autores iluministas, era que essa falta de um critério objetivo permitia que cada juiz decidisse conforme suas paixões, resultando em sentenças imprevisíveis e infundadas. Por isso, esses autores, começaram a defender que o direito natural (agora fundado na razão, e não na vontade divina) fosse positivado (escrito ou declarado) em textos e leis. É só a partir desse ponto que a lei se torna um dos principais instrumentos do direito.
Para os jusnaturalistas, o conteúdo do direito natural (ainda vinculado a uma ideia de justiça) poderia ser descoberto pela razão. Dentre as várias propostas do que fossem os direitos naturais, talvez a que mais teve sucesso foi a de John Lock, que dizia que os seres humanos nascem livres e iguais e que, por serem livres, tem a propriedade sobre si mesmos, o que justifica que também sejam proprietários de tudo aquilo que foi produzido com seu próprio esforço. Daí, os três principais direitos naturais: liberdade, igualdade e propriedade (nada de fraternidade).
Mas qual seria a função de saber esses direitos? Esses direitos foram, inicialmente, escritos em declarações (como a declaração dos povos da Virgínia de 1776 e a declaração francesa de 1789 , recomendo a leitura, são bem curtas), mas é importante lembrar que essas declarações não são leis, mas apenas documentos político-filosóficos. Para que esses direitos naturais se tornassem direito positivado (e, portanto, exigível) seria necessário que o legislador, representante do povo, os transformasse em lei. Assim, a justiça seria apenas um guia para a criação da lei.
O interessante nesse ponto é que autores como Montesquieu e Becaria vão dizer que o juiz deve se ater a aplicar a lei, sem nunca interpretá-la (será que é possível?). Outros, como Portalis (legislador do Código de Napoleão) entendiam que o juiz poderia recorrer à justiça apenas quando a lei fosse incompleta. Portanto, em regra, o direito natural ficava apenas como inspiração para o legislador e, caso esse não o respeitasse, restaria ao cidadão, segundo Locke, se rebelar.
A partir da criação do Código de Napoleão (1804), que tinha como intenção conter leis claras e que previssem como resolver qualquer conflito que pudesse existir (tarefa simples), fica fácil romper totalmente direito e justiça. É exatamente isso que faz a chamada Escola da Exegese (século XIX) dizer apenas que a lei é direito, não importa se justa ou não (um dos brocados da época é “sed lex, dura lex”, ou “a lei é dura mas é a lei”). Em outras palavras, não importa se o direito é justo, nem se existe direito natural, apenas importa estudar a lei, especialmente o Código. É nesse ponto que nasce o positivismo jurídico (que engloba pensadores que desconsideram o direito natural como direito).
O melhor é que, em respeito à liberdade e à vontade das pessoas, que eram “livres e iguais”, essa lei previa, por exemplo, que tudo que se contratasse, era justo. Então, se você colocou uma tira de couro como garantia de um contrato, tinha que pagar (referência a outro filme interessante, tirando pelo antissemitismo do Shakespeare, O mercador de Veneza, história também retratada no nosso O auto da compadecida). Coitado de quem costuma apostar outras coisas jogando truco.
Daí, passamos para o século XX, no qual um dos principais autores do direito, Hans Kelsen, vai fazer toda uma teoria em que só vai se preocupar com o estudo puro do direito. Para ele, assim como para o imaginário geral que eu apontei no início, direito e justiça podem ou não ter relação um com o outro, pois, geralmente, o legislador busca criar leis que ache justas, mas essa relação é acidental, porque pode existir um direito injusto e nem por isso ele vai deixar de ser direito.
O mais interessante é que Kelsen era um austríaco e social democrata de família judaica e, apesar de ter escrito isso na primeira edição da Teoria Pura do Direito em 1937, fez questão de manter e reiterar explicitamente sua posição na edição que escreveu em 1960, já vivendo nos Estados Unidos após ter fugido do nazismo.
Quem não reiterou sua posição, contudo, foi um jurista chamado Gustav Radbruch. Após a segunda guerra mundial, ele mudou seu pensamento juspositivista ao colocar a culpa do despreparo dos juristas em enfrentar o nazismo no fato de que, havia um século, não discutiam mais a questão da justiça. Em razão disso, Radbruch cria a sua fórmula da injustiça extrema, na qual diz que uma lei não deixa de ser direito por ser injusta, mas que não será mais direito se for extremamente injusta, o que ocorreu em várias situações no Estado Nazista.
Atualmente, essa ligação entre direito e justiça é retomada por alguns autores.
Ronald Dworkin diz que existem direitos jurídicos anteriores a qualquer lei. Esses direitos vêm de um alvo coletivo da comunidade como um todo e se expressam na forma de princípios. Princípios seriam normas jurídicas que devem ser obedecidas por uma exigência de justiça, equidade ou alguma dimensão da moralidade. Ainda, eles não se aplicam ao tudo ou nada, como as regras, mas têm uma dimensão de peso que deve ser considerada em um caso concreto. A aplicação desses princípios ocorre principalmente nos casos difíceis, especialmente aqueles casos em que a aplicação de uma regra jurídica traria um resultado injusto, contrário a um desses princípios provenientes da sociedade.
Robert Alexy também traz a justiça ligada aos princípios ao dizer que, em casos envolvendo direitos fundamentais, o juiz deve ponderar princípios para trazer a solução, ou seja, colocar os direitos na balança e ver qual tem mais peso no caso. O exemplo mais clássico é o conflito envolvendo a liberdade de expressão e outros direitos, como privacidade, honra etc. Pode alguém proferir palavras que exponham a vida privada ou ofendam outra pessoa? Para Alexy, isso deve ser visto no caso concreto, por exemplo: a pessoa ofendida é uma pessoa pública, como um político? Qual foi a ofensa? Dentre outas circunstâncias. Isso é bem fácil de entender: em geral, eu posso falar ou fofocar da vida dos políticos, porque isso é relevante pra sociedade, mas xingar e fofocar da vida dos nossos conhecidos é crime de injúria e difamação (sim, vocês que falam mal e fofocam dos outros são todos criminosos).
Para Alexy, essa ponderação de princípios funciona exatamente como forma de entrada da justiça na decisão judicial. O juiz, por meio da argumentação, traz a moral para dentro do direito e, com isso, vai o aperfeiçoando com o tempo.
Ocorre que essa ideia de os princípios, que não costumam expressar comandos muito claros, trazerem a justiça para dentro do direito, traz um problema chamado “ativismo judicial”, que é a decisão do juiz sem uma base clara no texto das leis e da constituição, mas fundada, de forma clara ou não, em princípios.
Com os princípios, os juízes acabaram se dando mais liberdade para trazer a justiça para o direito. Mas qual justiça? Esse é o problema: o que acaba prevalecendo é o que o juiz acha justo, com o que eu posso ou não concordar. Para pegar algumas decisões do STF, eu acho certo que pessoas do mesmo sexo possam se casar ou constituir união estável, mas eu acho complicado prender pessoas que ainda podem fazer recursos para o STJ e STF (até porque cada juiz está aplicando o que ele acha que é certo). Alguém que está lendo pode pensar exatamente o contrário.
E aí, o que deve valer? O que eu acho justo, o que o juiz acha justo ou o que está na lei, ainda que seja injusta? Como vimos, a resposta para essas perguntas é complicada e muda de tempos em tempos. Deixo pra você pensar e chegar a essa resposta. Disso tudo, eu tiro duas conclusões: a primeira é que é interessante ver que qualquer resposta vai trazer problemas, seja de deixar muito poder pro juiz decidir o que quer, seja de permitir decisões injustas com base na lei; a segunda, decorrente da primeira, é que a resposta prevalente vai mudando conforme os problemas que aparecem em cada sociedade.
Algumas referências:
ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. 2. ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2007.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.