Como uma boa parte da população mundial, você deve ter visto imagens e gravações da invasão ao Capitólio americano em 6 de janeiro deste ano. Dentre as bandeiras dos EUA e da campanha de Donald Trump, podíamos ver cartazes e camisetas com a letra Q em referência ao movimento QAnon. Mesmo que você não tenha reparado nisso, com certeza viu um homem sem camisa, com pintura no rosto e um chapéu de búfalo – Jake Angeli. O que talvez você não sabia que ele é mais conhecido como QAnon Shaman. Aqui no Brasil pouco se falou deste grupo de conspiracionistas – talvez você nunca tenha nem ouvido sobre o tema, mas acredite, esta enorme teoria da conspiração teve mais impacto na política americana nos últimos anos do que você possa imaginar.
O que é o movimento QAnon?
Resumindo, o QAnon é uma série de teorias da conspiração que envolvem o o cerne do governo americano que foram “denunciadas” por uma pessoa que teria o mais alto nível de acesso às informações do Pentágono. A letra Q faz referência a este nível de acesso a documentos e o “Anon” vem de “anônimo”, comum no site 4chan – onde tudo começou. Nunca ficou claro quem é o usuário Q, nem mesmo se é uma única pessoa ou se ela realmente é parte do governo.
Originalmente a teoria se restringia a políticos e celebridades americanas, mas o movimento foi abarcando diversos outros discursos de ódio e desinformação como supremacia branca, antissemitismo, ant-vaxxers e negacionistas da Covid-19, até chegarmos às fraudes na eleição americana de 2020.
Como surgiu?
O usuário Q postou em 2017 no site 4chan (um imageboard conhecido pelas teorias da conspiração) que haveria um complô dentro do governo americano que envolvia pedofilia, tráfico de crianças e satanismo. A teoria acusava Hillary Clinton de ser uma das líderes do movimento e que Donald Trump seria o grande salvador. A postagem de Q ficou soterrada sob outras mensagens até que alguns YouTubers de menos relevância decidiram se aprofundar no assunto e buscar pistas nas mensagens de Q – e até mesmo nos discursos do próprio Trump.
Ao longo do tempo, a teoria foi ganhando mais detalhes. Além de Clinton, haveria uma enorme rede infiltrada no governo americano que seria parte de uma “cabala de pedófilos que traficam crianças e dominam o mundo”. Além disso, todas as acusações contra o então presidente Trump eram uma tentativa desta rede de impedir que ele liderasse a “cruzada de libertação.” Não preciso nem dizer que não há nenhum indício de que nada disso seja verdade.
Durante 2017, estes influencers instigaram seus seguidores a encontrar cada vez mais pistas nas mensagens de Q e outros conspiracionistas. E, para tornar esta teoria mais “acessível” ao público leigo, criaram comunidades no site Reddit – um outro imageboard com público mais “normal” como eles mesmos chamavam. Com o combo YouTube + Reddit, a teoria explodiu e começou a ganhar mais e mais seguidores. (Mesmo que conforme as conspirações cresciam e ficavam mais cabeludas, menos e menos evidências apoiavam estas ideias).
Parte da atração ao QAnon é o modelo quase de jogo (me lembra o Arg que jogamos aqui no Deviante, lembram?) em que os seguidores se sentem impelidos a continuar buscando pistas nas postagens de Q que “abram” novos níveis de conspiração. Além disso, os discursos e tuítes do ex-presidente Trump também eram dissecados em busca de informações que confirmassem a batalha contra o Mal.
Todo este movimento acabou se tornando o QAnon que conhecemos hoje, mas que acabou saindo dos vídeos e fóruns para a vida real nos comícios de Donald Trump.
Como QAnon se envolveu com a política americana?
A maior parte dos seguidores da teoria QAnon são extremamente conservadores e tendem a votar no partido republicano. Estas pessoas também são parte da base mais fiel dos eleitores de Trump. E, ao mesmo tempo em que as teorias iam se desenvolvendo e se ligando cada vez mais ao então presidente, ele nunca negou ou denunciou os absurdos e mentiras que surgiam. Muito pelo contrário: ele apoiou diversos candidatos que se diziam seguidores de QAnon. Para os seguidores de qAnon, isso só demonstraria que Trump não podia falar expressamente sobre o assunto, mas que deixaria dicas em seus atos e discursos.
Na realidade, o silêncio era a estratégia perfeita para Trump. Enquanto seu vice, Mike Pence, e outros membros sêniores do partido republicano denunciavam as loucuras de QAnon, Trump ficava calado. Se ele negasse, perderia uma parte de sua base. Se ele abraçasse, seria atacado como maluco e conspiracionista. Nada disso impediu seu filho, Trump Jr, de retuitar teorias QAnon, alimentando ainda mais as especulações.
A ligação começou a ficar ainda mais forte em 2018, quando os primeiros posteres de Q começaram a aparecer nos comícios de Trump e ele continuava alimentando as suposições. Paralelalemente, o grupo começou a ganhar contornos violentos e extremistas a ponto do site Reddit banir o fórum sobre QAnon com mais de 20 mil seguidores por “encorajar ou incitar violência e postar informações pessoais e confidenciais de usuários” além expulsar os moderadores do grupo (os mesmo que impulsionaram o assunto no Youtube no ano anterior).
Neste período de 2018 em que o QAnon ganhou mais corpo, diversos grupos extremistas abarcaram e engrossaram o coro destas teorias da conspiração: movimentos de extrema direita na Alemanha e na Austrália, grupos de supremacia branca nos EUA e até mesmo o movimento evangélico americano – que se apoiava nos versos da bíblia postados por Q. Ficou claro que estes grupos englobaram o discurso conspiratório para avançar suas próprias agendas ao mesmo tempo em que engrossavam a base de eleitores de Trump.
QAnon e atos de violência
Conforme o movimento se tornava mais mainstream e atingiu outras camadas da sociedade americana, também começaram a surgir ações radicais fora da internet. Talvez o caso mais conhecido tenha sido o ato perto da represa Hoover. Em junho de 2018, um homem armado com uma AR-15 usou um veículo de guerra para bloquear uma ponte que ligada os estados do Arizona e Nevada. Ele acreditava que Trump não estava agindo rápido o suficiente para localizar e punir os “culpados” e exigia que um relatório OIG (Office of Inspector General) fosse liberado ao público. Este relatório imaginário havia sido citado por Q em um post dois dias antes do incidente, e ele exporia todos os inimigos do presidente e seus crimes.
Mesmo depois disso, poucas medidas práticas foram tomadas, e os fóruns continuavam cheios de conspirações a ponto de um homem ter sido preso em Pensilvânia depois de planejar ir até Washington DC para matar o presidente Trump, seus filhos Trump Jr. e Ivanka, além do marido dela, Jared Kushner. O homem acreditava que a primeira família tinha suas mentes controladas pela CIA – que impedia o presidente de acabar com a “cabala demoníaca no governo”.
Os fóruns ficaram tão violentos e extremistas que o FBI colocou o movimento QAnon sob alerta de violência em 2019. E ainda assim, poucas medidas de segurança foram implementadas para 6 de janeiro de 2021 – e vimos ao vivo o que aconteceu. Conforme as investigações avançam, há cada vez mais indícios de que apoiadores QAnon pretendiam capturar e assassinar membros do Congresso e até mesmo o vice-presidente.
O que há de concreto sobre o QAnon?
As teorias conspiratórias não têm nenhuma base na realidade, nenhuma evidência concreta e nenhuma fonte verificável de informações. Alguns defensores da conspiração defendem que não importa quem é Q, o que importa é a informação. Mas aqui, não há nenhuma informação vinculada à realidade e nem mesmo uma prova de que Q realmente é uma pessoa com acesso a documentos de segurança nacional.
Ainda assim, o culto ao redor do QAnon gerou um léxico próprio, hashtags e codinomes. Há diversas referências à Bíblia além da utilização de linguagem apocalíptica e cultista. Com a incorporação de outros grupos extremistas, não é difícil encontrar mensagens de supremacia branca e antissemitismo. E a hashtag mais famosa do grupo é #WWG1WGA, uma sigla do lema QAnon: “Where We Go One, We Go All” (algo como “onde um vai, todos vamos”).
E agora?
Parece que depois do ataque ao capitólio, as forças de segurança americanas estão prestando mais atenção a este movimento e seus grupos de mensagens (e ameaças). Diversos dos presos pela invasão ao Capitólio têm laços com o QAnon – incluindo o homem-búfalo. Desde 2019 diversas contas, grupos e fóruns vêm sendo fechadas e bloqueadas nas redes sociais.
Mas nada disso parece impedir a disseminação destas teorias conspiratórias: uma pesquisa de 2020 mostra que 33% dos eleitores republicanos acreditam na maioria das alegações de QAnon e outros 23% acreditam parcialmente. Nas eleições do ano passado, duas representantes abertamente defensoras do QAnon foram eleitas para o congresso: Lauren Boebert pelo Colorado e Marjorie Greene pela Geórgia (esta última registrou pedido de impeachment de Biden 24 horas após a posse).
O fato de não haver uma liderança consolidada dificulta o monitoramento de um grupo que só cresce e se torna cada vez mais extremista e violento. O quanto QAnon ainda será capaz de influenciar a política americana ainda deve ser observado, mas certamente eles já foram para os livros de história por participar do maior ataque à capital americana desde os ingleses no século XVIII. E o pior pode ainda estar por vir: sem a presença de Trump como “referência” na Casa Branca, fica a dúvida de quais outras podem surgir ou quais ataques podem ser planejados. Tudo com o objetivo de trazer à tona informações que sequer existem.